Opinião

Acordo de leniência e ação de improbidade: o poder público é uno, e não vário!

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23 de agosto de 2021, 6h36

"Patere quam ipse fecisti legem".
"Todos temos o Patrão Vasques, para uns visível, para outros 
invisível (…)".

Bernardo Soares
[1]

Acordo de leniência é celebrado, em meio a uma ação de improbidade em curso, na qual se imputam os mesmos fatos objeto de transação. Qual o destino da demanda? Deverá prosseguir em face dos transatores? A questão é relativamente recente e a jurisprudência hesita, ora a extingui-la [2], ora a determinar seu prosseguimento, ad cautelam [3]. Caberá ainda ao STF a palavra final.

O tema parece pomposo, mas não é. E se, na prática, apresenta-se complexo, não deveria ser. A solução, a rigor, está na própria lei de regência da ação de improbidade (Lei nº 8.429/92). Seu artigo 17, parágrafo primeiro, na redação original, vedava "transação, acordo ou conciliação". Agora, com a redação dada pela Lei nº 13.964/19 (Lei anticrime), foi revogada a vedação e o dispositivo passou a admitir expressamente "a celebração de acordo de não persecução cível". Este texto, pois, terminaria aqui — aliás, nem teria sido escrito — se a celeuma não subsistisse.

E subsiste, sobretudo, por vaidade — vanitas vanitatum do poder (et omnia vanitas). Vaidade, aliás, e oportunismo, segundo a nossa tradição. Diante de um evento, seja de ordem cível, seja de ordem criminal, todos do poder (em todos os seus degraus federativos, órgãos e entidades) querem sua fração pecuniária do ilícito. Isso não é da ação de improbidade, é desde sempre, et partout — as ações coletivas estão aí para confirmar essa prática já institucionalizada. É a propalada autonomia das instâncias, a independência das esferas, a indisponibilidade do interesse público… Emplastos jurídicos não escritos, embutidos silenciosamente como dogmas. E as gerações se sucedem sob o jugo irrefletido dessas verdades de bastidores. O poder público não é uno, nem coerente, ele é profuso, e absorvente, e sua sombra, ubíqua e massiva, estende-se irrefreada por todos os lugares.

Em relação especificamente a ações de improbidade, elas subsistem, como têm subsistido, em face de transatores porque as mais das vezes o poder público que transacionou com o particular não é o poder público autor da demanda. São, quer dizer, seriam, supostamente, poderes públicos diferentes. Um exemplo imaginário, mas recorrente na realidade: a Controladoria-Geral da União firma acordo de leniência com um particular, acerca de fatos que são objeto de ação de improbidade. A Lei nº 12.846/2013 lhe confere competência e autonomia para tal, no âmbito do Poder Executivo federal. O acordo é juntado aos autos da ação de improbidade, que conta com a assistência da União. O Ministério Público Federal, no entanto, se opõe à extinção da demanda, sob a alegação de: 1) tratar-se de res inter alios acta; e a pretexto de 2) perseguir a reparação in integrum.

Os argumentos não colhem. O primeiro sofre de crise de identidade. Acordo firmado pelo poder público — após, como é suposto, criteriosa apuração prévia, seguido de ponderado juízo de oportunidade e conveniência — não é nem pode ser considerado res inter alios acta em face do próprio poder público. Este, afinal, tem o dever, jurídico e moral, de ser uno e coerente, até para que seja confiável. Não há espaço, então, aqui, para dúvidas existenciais, ou disputas internas de poder. Se assim não o for, qual segurança teria o particular ao colaborar? Se assim não for, Estado de Direito, que é estado de clareza, vira Estado de pantomima, em que os particulares são as marionetes e o poder público as mãos invisíveis que manipulam os fios dos atos e dos movimentos por trás das cenas. Mas no Estado de Direito, quando o poder vem a público, e celebra acordos, não pode guardar em gavetas, escaninhos ou atrás de cortinas resíduos surpresas, não revelados. O poder público, enfim, não pode dar com uma mão e depois tirar com a outra; não pode estimular um ato para, em seguida, por outros órgãos ou entidades, burlá-lo; seria legalizar, para o público, a possibilidade de roer sua palavra. Nesse quadro, a autonomia funcional do Ministério Público, ou sua competência concorrente para buscar a reparação do dano [4], ou mesmo para firmar acordos de mesma natureza [5], nada disso pode sobrepor-se à necessária segurança jurídica — postulado constitucional — que se deve conferir ao instituto da leniência. Do contrário, resultará ineficaz essa política de combate à corrupção [6].

O segundo — o da reparação integral — assenta-se num sofisma, a girar, sem fim, num circuito vicioso. Não cabe, com efeito, rediscutir-se ou tentar rediscutir-se a extensão das penas e dos valores ajustados com próprio ente lesado, e que devem ser levados ainda ao crivo do juiz natural. Se há transação, há concessões recíprocas; se há concessão recíprocas, não há que falar em reparação integral; houvesse reparação integral, não haveria transação, e a espiral estende-se ad infinitum. O fato é que, ao oferecer um lenitivo nas penas e reparações a serem pagas, o poder público obtém em troca informações (que podem ser) relevantes ao próprio interesse público. Na verdade, tem-se aqui uma falsa questão. Na prática, o poder público já é reparado pela empresa leniente, no limite dos ilícitos admitidos e, portanto, sob essa ótica, obtém a reparação atribuível ao colaborador. Ao mesmo tempo, o poder público não fica impedido de perseguir a reparação integral dos eventuais demais atos ilícitos, desde que o faça em face de não colaboradores [7] — essa a leitura lógico-sistemática a ser feita.

Sem circunlóquios, o que o Ministério Público queria era reunir em si todos os anéis, e deter o monopólio do poder de transacionar — o que ele não tem, porque a lei não lhe deu. Sua resistência, portanto, é política, e não jurídica. Acordos, ademais — e aqui se diz para além de acordos de leniência, para referir-se a simples contratos, da ordem do dia —, valem pouco entre nós, porque a liberdade vale pouco ("tudo no Estado"); porque o indivíduo vale pouco ("nada contra o Estado"); porque a iniciativa privada vale pouco ("nada fora do Estado"), de modo que, sob a invocação do público, a porta fique sempre entreaberta, para que o poder possa sempre tomar posse da sala.

Mas há regras elementares de convivência com as quais não se pode transigir, e se o próprio Direito o fizer, ele se torna ilegítimo, a convolar-se em nada além do que força organizada: "sujou, limpa"; "quebrou, conserta"; "errou, repara"; "prometeu, cumpre". No âmbito do poder público, o postulado elementar é: "suporta a lei que tu próprio fizeste". Eis o primo mandamento, inerente à segurança jurídica, que é a essência do Estado de Direito. Na hipótese ora examinada, tal compromisso ético-jurídico é duplo: a) o poder público deve suportar os efeitos da própria lei federal que editou, ínsita ao microssistema de combate à corrupção, e que permite a celebração de acordo de leniência, com a extinção, se houver, de ações de improbidade; b) e deve suportar os efeitos do acordo de leniência que, no caso concreto, houver firmado. Uma coisa é o conteúdo em si do acordo; outra, é a idoneidade das informações ali trazidas; e outra, ainda, é a validade das provas ali carreadas; tudo isso é delicado e relevante, mas não é disso que se trata aqui. O ponto é: se o poder público firmou o ajuste, e se ele é válido, honre-o, de modo harmônico e orgânico, sem escapismos.

Supremacia do interesse público, independência das instâncias, colegitimações plúrimas (superpostas e gulosas), presunções de todas as ordens, tudo são bricabraques … Outro é a autonomia do Parquet para seguir em voo solo sobre qualquer assunto, a qualquer hora, e para qualquer fim. Na hipótese aqui examinada, v.g., ela não faz nenhum sentido. E se "todos temos o patrão Vasques", a síndrome do xerife omnipotente não é senão um resquício autoritário a salgar o caldeirão do nosso publicismo integralista. Ao fim e ao cabo, em nome da defesa da supremacia do interesse público, vilipendia-se o próprio interesse público. Há, contudo, de florir o dia em que o regime tutelar total há de declinar, e as liberdades sorrirem, dos que respiram e se autodeterminam seguros, num ambiente de clareza. Nesse dia, toda a palavra não será (mais) uma arapuca armada.

 


[1] Pessoa, Fernando, in "Livro do Desassossego", Lisboa, 2014, Tinta da China, p. 257.

[2] V.g.: TRF-4, 3ª Turma. AI nº 5042782-55.2018.4.04.0000, rel. Des. Vânia Hack de Almeida, j. em 5.6.2019; TJPR, 5ª Câmara Cível. Agravo de Instrumento nº 0015912-21.2020.8.16.0000, rel. Des. Luiz Mateus de Lima, j. em 28.7.2020.

[3] V.g.: TRF-4, 4ª Turma. AgIn nº 5055839-72.2020.4.04.0000, rel. Des. Vivian Josete Pantaleão Caminha, j. em 28.4.2021.

[4] CF, artigo 129, III e LIA, artigo 17.

[5] CF, artigo 129, IX

[6] Dados divulgados pelo CNJ em 2015[5] apontaram que em apenas 4% das ações de improbidade pesquisadas foi alcançado o ressarcimento integral do dano e em somente 6% alcançou-se o ressarcimento parcial. Em números, portanto, revelou-se o que qualquer operador do direito que atua nessa seara já constatou: os meios tradicionais de persecuções, cíveis e criminais, para apuração e sanção de desvios são absolutamente ineficientes. Esbarram, muitas vezes, em insuperáveis obstáculos na obtenção de provas concretas de organizações e esquemas ilícitos mais complexos e organizados (In Lei de improbidade administrativa: obstáculos à plena efetividade do combate aos atos de improbidade. Coordenação Luiz Manoel Gomes Júnior, equipe Gregório Assegra de Almeida… [et al.]. — Brasília: Conselho Nacional de Justiça, 2015, pg. 69). Tais fatores levaram ao aprimoramento do microssistema anticorrupção, com a adoção de vias alternativas à opção tradicional do processo judicial, por meio de institutos que permitam soluções consensuais, que, notadamente, viabilizam o acesso a provas e ensejem, pois, a responsabilização dos agentes envolvidos, com a recuperação de valores aos entes lesados. Afinal, no combate a determinados tipos de infrações, a obtenção de resultados concretos na detecção de ilícitos depende da existência de incentivos para que os envolvidos em tais práticas tragam os fatos delituosos ao conhecimento das autoridades públicas (SPAGNOLO, Giancarlo. What Do We Know About the Effectiveness of Leniency Policies? A Survey of the Empirical and Experimental Evidence. 2014). Desprestigiar a transação seria, pois, um retrocesso.

[7] Essa é a intepretação lógicos-sistemática que decorre dos arts. 5º, 12 e 17, §1º, da LIA e dos arts. 6º, §3º, e 16, §2º, da Lei Anticorrupção, especialmente à luz do primado da segurança jurídica do Estado de Direito.

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