Segunda Leitura

Os imprevisíveis rumos do Direito Penal na atualidade

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

22 de agosto de 2021, 8h00

O Direito Penal brasileiro acompanha as direções apontadas pelos modelos da Europa Central, em especial de Espanha, Itália e Portugal. Assim foi com os rigorosos Código Criminal do Império (1830) e  Código Penal da República dos Estados Unidos do Brasil (1891).

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Atualmente, encontra-se em vigor o Código Penal de 1940, do qual se mantêm alguns tipos penais clássicos (v.g., artigo 121, matar alguém), que convivem com alguns obsoletos (artigo 234, parágrafo único, inciso II: "Realiza, em lugar público ou acessível ao público, representação teatral, ou exibição cinematográfica de caráter obsceno…") e com muitos dispositivos oriundos da criminalidade contemporânea (artigo 337-N, nas licitações ou contratos administrativos, "obstar, impedir ou dificultar injustamente a inscrição de qualquer interessado…").

Ocorre que o Direito Penal brasileiro chegou a um ponto contraditório em que: a) a doutrina preponderante aponta para um caminho preocupado com os direitos e garantias individuais, com intervenção mínima do Estado; b) as reivindicações de minorias, interesses econômicos ou grupos com poder político conquistam espaços de punições mais severas.

Nas salas de aula do Direito Penal ou Processual Penal, raramente se encontrará um professor que não seja garantista. As lições do italiano Luigi Ferrajoli são pregadas enfaticamente, com a lembrança de que o juiz não deve aplicar a lei penal apenas porque está descrita em determinado texto legislativo (e.g., furto de bagatela), devendo buscar, também, justificativa ético-política do Estado e do Direito.

A seguir tal raciocínio, considerando o extenso rol de direitos e garantias individuais e sociais expressos nos artigos 5º e 6º da Constituição da República, fácil é ver que muitos tipos penais existentes no Código Penal e na legislação especial podem ser confrontados no momento da decisão.

Mas, no outro lado da moeda, diversos e variados interesses consideram as medidas garantistas por demais benevolentes e, por não acreditarem na efetividade do Direito Penal, postulam e, por vezes, conseguem, o agravamento das sanções penais. Vejamos alguns exemplos:

a) As lesões corporais praticadas contra as mulheres, por força da chamada Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340, de 7 de agosto de 2006), teve sua pena aumentada. Mais recentemente, a Lei nº 14.188, de 28 de julho passado, dispôs que se a lesão for praticada contra a mulher, por razões da condição do sexo feminino, a pena será de um a quatro anos, e introduziu o artigo 147-B, tipificando a ameaça psicológica.

b) Os idosos, que representam um elevado número de eleitores, foram protegidos de forma especial pelo seu estatuto (Lei nº 10.741, de 1º de outubro de 2013), que criou nada menos do que 13 tipos penais. Alguns, como o artigo 96, §1º, surpreendem ao punir com pena de reclusão de seis meses a um ano quem desdenhar de um idoso. É dizer, a má educação é elevada à categoria de crime.

c) O artigo 32 da Lei dos Crimes Ambientais (Lei nº 9.605, de 12 de fevereiro de 1998) recebeu acréscimo do parágrafo 1º-A, que elevou a pena de maus tratos a cães e gatos para dois a cinco anos de reclusão, multa e proibição da guarda (Lei nº 14.064, de 2020).

Essas três iniciativas revelam, a meu ver, a descrença nas sanções administrativas ou penais pouco significativas, decididas nos Juizados Especiais Criminais. Esse descrédito leva os interessados a buscar leis mais rigorosas. Por vezes, criando situações curiosas, como punir a lesão a um cachorro com pena maior do que a um ser humano.

Para evitar furiosas mensagens, deixo claro que sou totalmente favorável à rigorosa punição de quem agride as mulheres, desrespeita os idosos ou maltrata animais. Estou apenas mostrando as contradições da legislação.

No âmbito do Processo Penal, vivenciamos uma situação inédita no Brasil.

Recentes conflitos de natureza política levaram o ministro Alexandre de Moraes, do STF, a decretar medidas coercitivas contra várias pessoas, por delitos contra a honra (injúria, difamação e calúnia) e ofensa ao estado democrático de direito.

Os tipos penais ofendidos seriam os previstos na Lei de Segurança Nacional (Lei nº 7.170, de 14 de dezembro de 1983), provavelmente o artigo 18 ("Tentar impedir, com emprego de violência ou grave ameaça, o livre exercício de qualquer dos Poderes da União ou dos Estados") ou o 22 ("Fazer, em público, propaganda: I de processos violentos ou ilegais para alteração da ordem política ou social").

Não li uma só peça do inquérito instaurado no STF e por isso nenhum comentário farei a respeito. Mostro apenas que essas medidas judiciais têm tido um rigor inusitado e no sentido contrário das últimas reformas do artigo 311 e seguintes do Código de Processo Penal e dos dispositivos que impuseram aos juízes formas de controle, sob pena de incidir em crime de abuso de autoridade (Lei nº 13.869, de 5 de setembro de 2019).

Por outro lado, "A Câmara dos Deputados aprovou nesta terça-feira (4) a proposta que revoga a Lei de Segurança Nacional (LSN) e acrescenta no Código Penal vários crimes contra o Estado Democrático de Direito (PLs 2462/91, 6764/02 e apensados)" [1] O Senado, no dia 10 passado, aprovou o referido projeto de lei [2]. Se sancionada a revogação da LSN haverá extinção de crimes imputados a diversas pessoas.

Concomitantemente aos paralelos caminhos adotados na legislação penal e processual penal, segue o Brasil perdendo pouco a pouco os requisitos essenciais para a existência do Estado: povo, território e soberania.

Sim, porque em diversos pontos o domínio do território não é mais do Estado, mas, sim, de organizações criminosas. O clássico exemplo é o do domínio de parte da cidade do Rio de Janeiro pelas milícias. Nessas áreas, o poder público municipal nada controla e não é por outro motivo que construções desabam ou pegam fogo.

Áreas de preservação ambiental são invadidas de sul a norte sem que o Estado tenha meios de impedir.

Terras de indígenas também não são poupadas. Organizações criminosas refugiam-se em terras indígenas, onde estão protegidas. Um exemplo: em maio deste ano, "uma equipe de agentes da Polícia Federal foi recebida a bala no rio Uraricoera, um dia após garimpeiros integrantes do PCC atacarem também a tiros indígenas Yanomami" [3].

Como se vê, vive a repressão penal rumos pouco definidos e isso cria uma situação de insegurança pública e jurídica, com tendência a crescer. Um ponto de equilíbrio e de bom senso precisa ser encontrado, antes que se torne este "gigante adormecido" mais uma desacreditada republiqueta latino-americana. Para que isso ocorra é preciso agravar as penas de alguns crimes (v.g., contra a honra), menos bravatas, mais equilíbrio emocional e visão de Estado.

Autores

  • é ex-secretário Nacional de Justiça no Ministério da Justiça e Segurança Pública, professor de Direito Ambiental e de Políticas Públicas e Direito Constitucional à Segurança Pública na PUCPR e desembargador federal aposentado do TRF-4, onde foi corregedor e presidente. Pós-doutor pela Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP) e mestre e doutor em Direito pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Foi presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibraju).

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