Opinião

A disputa tributária sobre software e as repercussões na economia digital

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22 de agosto de 2021, 6h03

O Supremo Tribunal Federal havia consolidado a sua jurisprudência sobre a tributação na elaboração do programa de computador, delimitando que o licenciamento ou cessão do direito de uso de determinado software customizado estaria sujeito a ISS, enquanto o ICMS seria devido se houvesse processos em larga escala para comercialização (off the shelf) (por exemplo., STF, RE 176.626/SP, ADIMC 1.945/MT, RE 191.732, STF, Súmula 662).

Segundo a Excelsa Corte, os conceitos de mercadoria e de circulação passaram por uma acomodação semântica para contemplar, respectivamente, bens incorpóreos e outros meios de transmissão que não apenas a física. Assim, pode-se dizer que a incidência de ISS ou ICMS dependia da análise da predominância do serviço ou da entrega da mercadoria.

Neste ano de 2021 (Informativo nº 1024), o STF formou maioria para superar o entendimento anterior, sagrando-se vencedor o voto do relator ministro Dias  Toffoli, que decidiu pela incidência de ISS sobre as operações de licenciamento ou a cessão de direito de uso de programas de computador (software), independentemente se sob encomenda ou padronizado, excluindo, portanto, a possibilidade de incidência do ICMS (ADI 5659).

Para o ministro, o tribunal, como de costume, não poderia se furtar de realizar uma interpretação que acompanhasse a modificação da realidade, atitude indispensável para alcançar o significado dos textos. Utilizando-se das premissas do IVA como referência, defendeu que o software deveria ser tratado como serviço, enfatizando que sempre haveria esforço humano no seu desenvolvimento, seja ele padronizado ou não. Ademais disso, ressaltou que a própria LC nº116/03, no seu papel de dirimir conflitos de competências, previa a incidência de ISS sobre o licenciamento e a cessão de direito de uso de programas de computação, não se valendo dos critérios que o STF vinha adotando para efeitos de distinção.

O ministro caminhou bem quando acentuou a flexibilidade do IVA, diretiva seguida por países como a Alemanha, onde tradicionalmente a regulamentação pelo Executivo é aceita, inclusive, com vinculação do Judiciário quando a medida está fundada no princípio da igualdade [1]. Os EUA, igualmente, seguem o mesmo princípio, não levando a efeito as retóricas formalistas tão arraigadas no direito brasileiro. Enfim, o pragmatismo nesses países atrela o Direito Tributário a consequências práticas da vida real, tais como a equidade na tributação, equilíbrio na distribuição da carga tributária, eficiência na arrecadação e no cumprimento das obrigações.

Ocorre que a interpretação evolutiva pregada em quase todo voto acabou se chocando com algumas das construções rígidas firmadas mais ao final.

Foi o caso da afirmativa peremptória de que "não há dúvida de que, para o desenvolvimento de um programa de computador, faz-se necessário um fazer humano". À evidência, a premissa fecha os olhos para o avanço já existente na área da inteligência artificial. A necessidade de intervenção humana, não só no desenvolvimento de programa de computadores, mas, inclusive, noutros afazeres materiais, não é questão de "se", e, sim, de "quando".

Especialmente no campo da linguagem algorítmica, atualmente no estágio avançado de deep learning, é inevitável que, antes mesmo do advento da singularidade da máquina, será desnecessário o esforço físico ou intelectual humano na elaboração do produto ou na prestação do serviço.

Por essas razões, pensamos que a linha tênue entre operações envolvendo a prestação de serviço ou a comercialização de mercadorias não mais se soluciona com base em elementos criteriais objetivos e formais (vide distinções entre obrigação de fazer/dar, customizado/padronizado, meio de fornecimento — físico, download ou depositado em nuvem —, com ou sem intervenção humana etc.). No próprio voto de sua excelência, é possível extrair as dificuldades práticas de se incluir referido evento em alguma das duas categorias jurídicas estanques, quando assinala que "existe a transferência de um bem digital, consubstanciado, usualmente, no arquivo digital ou no conjunto de arquivos digitais", para depois concluir que "há uma operação mista ou complexa, envolvendo, além da obrigação de dar um bem digital, uma obrigação de fazer".

Fazendo um corte temporal, verifica-se como a percepção em torno dos conceitos dessas materialidades tributárias passaram por (re)visões perante a Suprema Corte. Mutações desse gênero, contudo, não são anomalias, como bem anotado no voto do relator.

Muitas vezes, o texto diz mais do que o seu autor pensava; outras, diz menos. Em face de nossa mobilidade histórica, o contexto é elemento determinante na significação [2]. Assim, a distância temporal possui relevância fundamental na compreensão dos textos legais, sendo um dos motivos que explica a diferença prática entre texto/norma e regra/ princípio.

Na era digital, as revoluções tecnológicas ocorrem com uma maior frequência e intensidade, provocando saltos cada vez maiores. Segundo o "Ciclo de Hype" (de Gideon Gartner), o crescimento das tecnologias emergentes se inicia devagar e, de repente, já estamos imersos em uma nova realidade sem nos darmos conta. Sob o aspecto da esfera tributária, a criação do SPED exemplifica as etapas de "gatilho de inovação" e de "rampa de entendimento", uma vez que tem possibilitado aplicações diversas, gerando ganhos de eficiência e dinamicidade exponenciais no nível de compliance das obrigações acessórias. Diante desse fenômeno da tecnologia disruptiva, a obrigação tributária principal, bem assim a compreensão acerca da legislação de regência, não pode ficar a reboque das reconfigurações do mundo exterior.

Em virtude da desmaterialização dos limites entre os conceitos de serviço e produto, entendemos que a preservação da segurança jurídica, neutralidade e não discriminação demandam a unificação dos tributos, adotando-se a premissa de uma base ampla, com a respectiva repartição da receita entre os entes; ou mesmo a concentração da competência em um único ente, transferindo ao outro uma nova fonte proporcional à perda de arrecadação.

De arremate, uma efetiva reforma na tributação sobre o consumo pressupõe a alteração na postura com que os próprios textos são interpretados. Um sistema fechado, centrado no dogma da tipicidade cerrada, exigindo um detalhamento semelhante à lista anexa da LC nº 116/03, além de não trazer maior segurança jurídica, acaba sendo atropelado pelas mudanças da realidade. Em um cenário cada vez mais mutável, é preciso que os usuários das normas jurídicas possam ter maior cognoscibilidade, certeza e previsibilidade acerca dos modos com que elas serão aplicadas, mas isso somente se alcança quando estão em maior conformidade ao contexto no qual estão inseridas. Dessa forma, um sistema aberto, fundado em princípios coerentes entre si, mostra-se mais propício para se adaptar às novas circunstâncias, exigências e expectativas do mundo digitalizado.

 


[1] ZILVETI, Fernando Aurélio. A evolução da teoria da tributação: análise das estruturas socioeconômicas na formação do sistema tributário. São Paulo: Saraiva, 2017, p. 410.

[2] GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método, tradução de Flávio Paulo Meurer. Petrópolis: Vozes, 1997.

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