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CVM ainda precisa detalhar normas do Marco Legal das Startups, diz professor

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22 de agosto de 2021, 7h51

Apesar das importantes disposições societárias, o novo Marco Legal das Startups, por si só, não garante sucesso definitivo para empresas do tipo. É necessária ainda uma regulação pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) que permita a captação de investimentos via mercado de capitais.

É o que diz à ConJur o professor e consultor em regulação financeira Isac Costa, formado em Direito pela Universidade de São Paulo (USP), onde também está se doutorando, além de mestre pela FGV-Direito e engenheiro de computação pelo Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA). Para ele, a nova lei teve boas intenções, mas não trouxe uma densidade suficiente para orientar a atuação da CVM e efetivamente facilitar o financiamento das startups.

Isac, 43 anos, defende um modelo de financiamento no qual as startups possam emitir valores mobiliários para fundos de investimento acessados pelo mercado. Assim, os fundos intermediários assumem os riscos dos negócios e proporcionam maior segurança jurídica às startups e aos investidores.

Um ponto elogiado por Isac é a criação das sociedades anônimas simplificadas — que se tratam, na verdade, de condições facilitadas para o acesso de pequenas companhias ao mercado de capitais. Segundo o professor, o novo regime é uma das principais mudanças na legislação societária desde a Lei das S.A., de 1976.

Apesar disso, Isac não vê grandes vantagens nas previsões do Marco Legal sobre sandbox regulatório — um ambiente experimental temporário, aplicado por órgãos da Administração Pública, para testes de projetos inovadores em atividades regulamentadas. De acordo com ele, houve apenas uma formalização: "Essa regra da lei, especificamente, não tem uma eficácia prática muito maior do que os próprios reguladores já vinham fazendo".

Nesta entrevista exclusiva, Isac também fala sobre as criptomoedas — como o Bitcoin —, sua importância na própria captação de recursos para startups, a necessidade de alguma regulação sobre o tema e a forma como esses ativos vêm sendo tratados pela Justiça brasileira.

Leia a entrevista:

ConJur — O Marco Legal veio com objetivo de estabelecer condições mais favoráveis à criação de startups. De uma forma geral, é possível dizer que o texto final da lei cumpriu esse seu papel primordial?
Isac Costa — No Brasil a gente deposita muita esperança nas leis, mas a gente tem que entender que muita coisa vem depois da lei. A lei é um ponto de partida só. Ainda é muito cedo para dizer se essa lei realmente vai ter algum efeito dentre aqueles que motivaram a sua elaboração.

O fato de uma lei estar em vigor não significa que ela tenha eficácia social. Os advogados, a Receita Federal e as autoridades tributárias precisam conhecer a lei, entender o modelo e aplicá-lo corretamente. Sobretudo o Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração (Drei) e as juntas comerciais precisam se adaptar.

ConJur — Um desses incentivos da lei é o sandbox regulatório. Essa medida seria uma das principais vantagens para as empresas?
Costa —
Existe muita expectativa em torno do sandbox regulatório, mas eu entendo que não. Na minha leitura, essa não é uma das vantagens. Essa disposição na lei confere mais legitimidade e segurança jurídica para as autoridades — sobretudo para as autarquias federais, como é o caso da CVM, da Superintendência de Seguros Privados (Susep) e do Banco Central — poderem implementar o seu sandbox regulatório. Essa disposição veio apenas complementar o que as autarquias já vinham fazendo nos seus próprios sandboxes regulatórios. É uma inovação importante que permite ao regulador realizar alguns experimentos, mas essa regra da lei, especificamente, não tem uma eficácia prática muito maior do que os próprios reguladores já vinham fazendo. É uma norma muito mais formal do que efetivamente prática.

ConJur — A lei facilitou o financiamento das startups? Trouxe, de fato, formas significativas de proporcionar investimentos nessas empresas?
Costa — Eu não vejo dessa forma. Eu acho que a lei não facilitou tanto quanto poderia. Ela não trouxe balizas suficientemente densas para orientar a produção de normas pela CVM. Por exemplo, a comissão vai ter muito trabalho para tentar criar um regime para facilitar o financiamento das pequenas e médias empresas, via mercados de capitais. A lei apenas trouxe uma espécie de delegação de poder normativo, uma ordem para a CVM fazer alguma coisa. Mas ela careceu, na minha visão, de uma densidade normativa mínima para orientar a atuação da Comissão de Valores Mobiliários.

Outro problema também é que ela não tratou adequadamente de alguns dispositivos que acabaram sendo retirados ou muito alterados ao longo da tramitação. Particularmente, os mútuos conversíveis em participação — um instrumento muito comum, que tem sido utilizado pelas startups — e principalmente o contrato de vesting para atrair e reter talentos. Os contratos de vesting são as stock options. A possibilidade é de adição de participações por empresários, por pessoas que contribuem com a empresa. Já os mútuos conversíveis em participação são títulos de dívida que podem ser convertidos em participação acionária na sociedade. No meu entender, o mercado tem tratado esse instrumento como uma forma muito importante de financiamento, mas ainda não há, mesmo com o Marco Legal das Startups, segurança jurídica suficiente para esse tipo de instrumento.

ConJur — O argumento para não incluir as stock options (os planos de opção de compra de ações) no Marco Legal foi de que seria necessária uma legislação própria. O senhor concorda com esse entendimento ou considera que seria importante alguma previsão sobre esses planos na lei?
Costa — Eu acho que seria importante ter tido alguma previsão mínima. É difícil dizer o que levou o Congresso a retirar esse dispositivo para além do que foi divulgado oficialmente. Mas, certamente, existem pressões, possivelmente no que diz respeito à legislação trabalhista e à legislação tributária. Eu acho que esse é um tema que não poderia ter ficado de fora.

ConJur — O senhor considera que o regime chamado de sociedade anônima simplificada é um avanço importante no acesso das pequenas empresas ao mercado de capitais?
Costa — Definitivamente eu entendo que essa é uma das principais mudanças na legislação societária desde 1976. Eu destacaria que a Lei 10.303/2001, que trouxe o conjunto de direitos minoritários, foi uma mudança muito importante. E essa agora, com a criação da sociedade anônima simplificada, talvez seja uma mudança tão importante quanto. Nós temos agora no nosso ordenamento jurídico brasileiro uma sociedade de capitais muito mais enxuta, com um regime mais flexível, e que pode, sim, ser utilizado como veículo interessante para a captação de investimentos — substituindo, muitas vezes, a utilização da sociedade limitada, que tem um regramento precário no Código Civil, no que diz respeito, principalmente, à realidade complexa das startups.

ConJur — Mas ainda falta algum amparo para a CVM?
Costa — No que diz respeito à disciplina societária, o novo Marco Legal das Startups trouxe um conjunto de regras suficiente. Mas é preciso agora fazer com que essas sociedades sejam capazes de captar via mercado de capitais. E isso vai ser feito não por meio de lei, mas por meio de normas da CVM. Essas disposições ainda vão ser objeto de consulta pública e de debate. Ainda precisamos de algum tempo para ver como essa inovação vai ter espaço para a captação via mercado de capitais.

ConJur — O Marco Legal também trouxe previsões sobre investidores-anjo e fundos de investimento em participações (FIPs). Esses pontos não seriam inovações importantes para o financiamento das startups?
Costa — São boas tentativas, com boas intenções. Mas é preciso haver um diálogo entre advogados, agentes econômicos e o Estado para que essas disposições tenham eficácia. Os fundos de investimentos de participação e qualquer tipo de mudança dos regulamentos dos fundos também precisam passar pela CVM. Todos os comentários a respeito da sociedade anônima simplificada, no tocante à regulamentação de fundos, de alguma maneira também se aplicam. Ainda vai ser preciso um detalhamento dessa lei por parte de normas da CVM, para que a gente possa realmente ter uma inovação completa. Se esse regramento se mostrar insuficiente, ou complexo demais, essa inovação legislativa será inócua.

No tocante ao investimento-anjo, eu entendo que as disposições legais não tenham uma relação tão direta com o próprio conceito econômico. Essa inovação, na minha leitura, tem pouco potencial para ter um impacto efetivo na realidade das empresas em termos de financiamento. Já os fundos de investimento em participação, por outro lado, a depender da regulamentação da CVM, podem ser, sim, uma inovação relevante.

ConJur — O senhor acha que, no Marco Legal, faltaram incentivos fiscais ou mais vantagens tributárias às startups e aos investidores?
Costa — Sim. Eu acredito que a realidade econômica não foi devidamente transposta para os dispositivos legais. Houve uma perda de informação no meio do caminho, na hora de traduzir o que o mercado precisa e o que o Direito pode fornecer para o mercado, principalmente em matéria tributária.

ConJur — Quais outras soluções ou iniciativas seriam interessantes para tentar melhorar o financiamento das startups, ou seu acesso a investimentos?
Costa — A CVM neste momento está discutindo uma reforma abrangente do regime de ofertas públicas de distribuição. O regulador hoje está tentando encontrar um caminho para simplificar a regulação, para que esta não sufoque a inovação.

Eu vejo uma outra alternativa, que ainda não está sendo devidamente considerada pela legislação: fazer com que as startups possam emitir valores mobiliários para fundos de investimento mediante ofertas públicas de distribuição com esforços restritos. E, por sua vez, esses fundos de investimentos possam atuar como gatekeepers, para que esses produtos das startups sejam acessados pelo mercado. Ou seja, as startups não acessam diretamente a coletividade, elas acessam fundos de investimento, e os fundos de investimentos acessam a coletividade.

Qual é a vantagem desse modelo? Os fundos de investimento e seus gestores terão o dever de verificar o risco desse tipo de negócio, a veracidade das informações fornecidas. E, caso sejam detectadas fraudes ou ocorra algum tipo de problema, a CVM e as demais autoridades poderão responsabilizar as gestoras de fundos de investimento. Com isso haveria maior segurança jurídica.

O grande problema hoje é que o modelo das startups é sujeito a muita incerteza e risco. Os investidores perdem dinheiro e ninguém ganha. O mercado perde credibilidade e abre a porta para a realização de golpes, de fraudes e de divulgação de informações que não são verdadeiras ou fidedignas. Então, a ideia é colocar uma camada de proteção entre a startup e os investidores, para que esses intermediários possam garantir o mínimo de segurança nesses investimentos, e sobretudo a adequação do perfil de risco dos investidores para esse tipo de investimento que, certamente, é mais arriscado.

Vale a pena mencionar a relevância dos fundos para oferecer investimentos em criptoativos. Não diretamente, mas por meio de cotas de fundos de investimento. Dessa forma, investidores institucionais e também pessoas que não têm familiaridade com o mundo cripto se sentem mais seguras de investir nesse tipo de ativo. Porque os fundos são regulados. Esse é um exemplo de que se você colocar, entre um empreendedor que está iniciando uma empresa — emitindo ou não criptoativos — e o investidor final, um intermediário que é regulado, você pode ter maior segurança jurídica e com isso fazer com que tanto o mercado tradicional cresça, como também essas inovações da criptoeconomia sejam desenvolvidas, encontrem amparo nos investidores e consigam florescer.

ConJur — As criptomoedas, como o Bitcoin, parecem ser um tema ainda muito desconhecido pelo meio jurídico. Os criptoativos necessitam de uma regulamentação específica no Brasil?
Costa — A criptoeconomia e a sua regulação (ou não) é um tema intimamente ligado à disciplina jurídica das startups. A emissão de criptoativos tem se mostrado um veículo interessante para captação de recursos por meio de startups.

No entanto, hoje nós estamos em um vácuo normativo nessa matéria. A CVM, o Banco Central e a Receita Federal têm considerado que as leis e normas atualmente existentes devem ser aplicadas para estes modelos de negócio. À exceção da Receita Federal, que editou instrução normativa para poder tributar os bens de capital e operações com criptoativos, CVM e Banco Central ainda aguardam alguns desdobramentos e uma interlocução com os ouvintes econômicos, para poder editar algum tipo de norma.

Só é possível garantir que esse tipo de investimento seja apto a financiar a atividade econômica se houver um nível mínimo de segurança jurídica. E nós só conseguiremos essa segurança jurídica com a edição de algum tipo de regulação sobre essa matéria. Do modo como nós estamos hoje — em que os empreendedores ficam com dúvidas sobre como os reguladores vão aplicar as normas existentes para esses novos modelos de negócio —, nós não temos, na minha opinião, segurança jurídica suficiente para financiar a atividade econômica por meio de criptoativos.

ConJur — Não precisaria ser necessariamente uma lei específica?
Costa — Definitivamente não seria necessário. Embora nós tenhamos no Congresso hoje cinco projetos de lei em tramitação sobre o tema.

ConJur — O STJ tem decisões diferentes sobre a competência para se julgar crimes relacionados a criptomoedas. Afinal, os criptoativos podem ser considerados como valores mobiliários? Nesse caso, a competência seria da Justiça Estadual ou Federal?
Costa —
Essa discussão depende da caracterização de um contrato de investimento coletivo como valor mobiliário ou não, para os fins do disposto no inciso IX do artigo 2º da Lei 6.385/1977. A CVM já teve oportunidade de analisar alguns casos. E não é possível responder essa pergunta em abstrato.

Desde 2017, a CVM e todos os reguladores do mundo, por meio da Organização Internacional de Valores Mobiliários (Iosco), têm sinalizado que alguns criptoativos são valores mobiliários e outros não. Quando isso acontece? Isso vai depender da aplicação, no caso concreto, de um teste que corresponde à verificação dos elementos normativos naquela operação econômica.

Em 27 de outubro de 2020, o diretor Gustavo Gonzalez julgou um precedente muito importante no processo administrativo sancionador envolvendo uma empresa chamada Iconic. Naquela ocasião, a CVM se manifestou oficialmente sobre quais são os critérios que ela utiliza para verificar se um determinado contrato de investimento coletivo é ou não valor mobiliário.

Então, eu entendo que o STJ, em sede de apreciação de conflito de competência, deve verificar como a CVM tem apreciado essa matéria, a fim de entender que: se for valor mobiliário, o tema deve ser julgado pela Justiça Federal; caso contrário, deve ser julgado pela Justiça Estadual. Mas a priori não é possível dizer que o tema pertence a uma ou a outra competência.

ConJur — A Justiça do Trabalho vem autorizando buscas de critpomoedas em execuções, mesmo não sendo elas reguladas ou controladas pelo Banco Central. Como o senhor enxerga isso? É uma medida correta, ou memo efetiva?
Costa — Os criptoativos, em última análise, são ativos digitais, que podem ser impedidos, a despeito da ausência de regulação, como bens móveis e suscetíveis de avaliação econômica, que integram o patrimônio dos indivíduos. Tanto é assim que a Receita, por meio da Instrução Normativa 1.888/2019, exige a declaração de operações envolvendo criptoativos e reconhece o bem de capital como sendo o fato gerador para a incidência do imposto de renda sobre a pessoa física ou jurídica.

Nesse sentido, o que a Justiça do Trabalho ou qualquer Justiça — inclusive a Justiça Estadual — pode determinar na execução de um processo é exatamente a catalogação de todos os criptoativos que pertencem a um determinado indivíduo.

E elas fazem isso por meio de ofícios que são enviados às exchanges de criptoativos, que são obrigadas a ter essas informações em virtude da legislação tributária. Essas exchanges informam que uma determinada pessoa tem aquele saldo. Uma vez que esse saldo representa um ativo, juridicamente não há impedimento algum para a decretação da constrição desses bens.

O maior problema reside no fato de que nem sempre é possível determinar quando uma pessoa tem criptoativos, sobretudo se ela negocia em exchanges fora do Brasil, ou se ela não negocia por meio de exchanges. Nesses casos, a Justiça não poderá fazer nada.

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