Embargos Culturais

'Menos Marx, mais Mises', de Camila Rocha

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

22 de agosto de 2021, 8h00

Há uma emblemática passagem no Quixote de Cervantes na qual o cavaleiro da triste figura, destemido e ousado, entra na jaula de um leão. Para espanto de todos (e principalmente para o espanto de Sancho Pança), o leão não se incomoda com o Quixote, que assim, mais uma vez, vencia onde todos pressentiam o fracasso. Tomo essa passagem de forma alegórica para me referir (entusiasticamente) ao livro de Camila Rocha "Menos Marx, mais Mises", publicado pela Todavia [1]. O leitor já verá a razão da imagem.

Spacca
Metodologicamente o livro é exemplo para todo pesquisador. Ganhou o prêmio de melhor tese de doutorado da Associação Brasileira de Ciência Política e levou também o prêmio Tese Destaque USP na área de Ciências Humanas. Camila Rocha segue à risca a máxima de Max Weber, para quem o pesquisador deve atuar sine ira et studio, isto é, sem motivos pessoais ou preconceitos. Há neutralidade e distanciamento, que revelam sinceridade de propósitos, em texto curto (cerca de 175 páginas). Percebe-se que houve consulta a vasta documentação. Há também referência a inúmeras entrevistas. Camila Rocha não apresenta conclusões. Ao leitor fica essa tarefa, que é a tarefa que qualifica a mediação entre texto e leitor. "Menos Marx, mais Mises" é convite ao diálogo, alternativa civilizada para tempo de tanto desentendimento.

Camila Rocha desvenda a concepção e a trajetória de uma nova direita. Retoma, e explica, ainda que nas entrelinhas, a direção do próprio F. Hayek. Para esse pensador, o fato de que grande parte de pensadores progressistas aderirem ao ideário socialista não significava que esqueceram o que os pensadores liberais sobre as consequências do coletivismo. Com base no significado mais profundo e representativo da ideia de liberdade, Hayek contrapôs que a adesão dos progressistas ao socialismo decorria tão somente de equivocada expectativa de liberdade, no contexto até ficcional de uma grande utopia (the great utopia).

Para Hayek, a ânsia pelo planejamento estatal acenderia inusitado desejo por um ditador, o que de fato ocorreu na Alemanha. A presença do Estado no modelo econômico promoveria, ainda segundo Hayek, a criação de regimes de monopólio, determinantes de privilégios, que deveriam ser combatidos, uma vez que determinariam disfunções que resultariam no empobrecimento e na ruína dos Estados que admitem a proliferação desses esquemas.

A liberdade negocial é ponto principal no pensamento de Hayek, que defendia um Estado mínimo como condição para o desenvolvimento. Ao ser humano deve ser garantido o direito de escolha, de optar pela profissão, pela atividade econômica, elegendo dentre as várias formas de vida, a que melhor lhe parece. Essa liberdade, promovida por um Estado garantidor do exercício de atividades econômicas, fixaria os exatos contornos de uma organização política desejável. Para Hayek, ao Estado exige-se apenas que não interrompa, não incomode e não limite.

O Estado, na perspectiva de Hayek, apenas assiste ao livre jogo do mercado, olimpicamente, promovendo a livre concorrência e garantindo aos mais aptos a vitória no jogo do capitalismo. Logo no fim da Segunda Guerra Mundial, Hayek convocou e realizou uma reunião em Mont Pèlerin, na Suíça, da qual participaram Miltom Friedman e Karl Popper, entre outros. Fundaram uma espécie de franco-maçonaria neoliberal, altamente dedicada e organizada, com reuniões internacionais a cada dois anos. As reflexões acima sobre Hayek são minhas, não constam do livro de Camila Rocha, mas de algum modo podem marcar pano de fundo para a discussão.

Camila Rocha parte do tema do enfrentamento à hegemonia cultural da esquerda, com lastro na herança de Ludwig von Mises. Refere-se a uma direita "um dia envergonhada", na defesa hesitante do livre mercado, e aparentemente contraditória na aproximação com um conservadorismo difuso. No plano prático da obra Camila Rocha explicita o papel do Instituto Liberal (no Rio de Janeiro, onde pesquisou). Tratou também dos think-tanks, ambientes alternativos de pesquisa e produção de ideias. São centros propulsores de combate, bem ao gosto da tradição do pragmatismo norte-americano. Em âmbito de think-tanks, lembro-me de Francis Fukuyama, que polemizou sobre o fim da história e o último homem, no fim dos anos 80. Fukuyama é um ícone do neoconservadorismo.

Em "Menos Marx, mais Mises" o novato com temas de direita familiariza-se com termos como "chicaguista", "leftlib", "ancap", "conserva", e ainda aprende que o preto e o amarelo seriam as cores do anarcocapitalismo. No livro de Camila Rocha compreende-se as principais linhas de frente que oporiam a nova direita ao pacto democrático progressista que predicaria na Constituição de 1988. Camila Rocha liga pontos e personagens de nossa história, em notável esforço de esclarecimento.

Trata de Plínio Correia de Oliveira (TFP), de Dom Hélder Câmara (na juventude simpático ao integralismo, na maturidade fortíssimo opositor do regime), de Carlos Lacerda (comunista na juventude, liberal e reacionário para alguns na maturidade), de Eugênio Gudin, de Roberto Campos, de Ives Gandra, de Henry Maksoud, de Otávio Gouveia de Bulhões, de Miguel Reale. Alcança Ricardo Vélez Rodriguéz (que foi Ministro da Educação por pouco tempo), Paulo Mercadante (que estudou a consciência conservadora no Brasil) e Antonio Paim (autor de livro fundamental sobre a história das ideias no Brasil). Lembrei-me de Leonardo Prota, italiano de Bari, sacerdote que abandonou a batina, que trabalhou com Paim. Fui aluno de Prota, intelectual católico de uma personalidade ímpar, delicada, afetuosa e instigante. Leonardo Prota faleceu em 2016. Um grande intelectual, a espera de uma biografia à altura de sua contribuição.

No estudo sobre a nova direita brasileira Camila Rocha explicita com muita clareza a importância do Instituto Liberal, do Instituto Atlântico, do Atlas Network, e de editoras como o Grupo Editorial Record. Faz referência ao papel de Paulo Rabello de Castro, economista que presidiu o IBGE, o BNDES, autor do "Mito do Governo Grátis", e que hoje antagoniza com alguns setores do governo, a quem Camila Rocha também se refere. Camila Rocha de algum modo sistematiza os passos dessa nova direita, a partir do Movimento Endireita Brasil, cujo presidente já esteve à frente do MMA. Membros do MBL, bem como todos os principais atores das manifestações antipetistas, estão ao longo do livro. Camila Rocha mapeou o papel das redes sociais na expansão do pensamento conservador, a partir do uso do Orkut e da posterior migração para o Facebook. Umberto Eco e Manuel Castells já intuíram (muito tempo antes) o inegável potencial desses meios de comunicação.

A autora (doutora em Ciência Política pela USP) parece-me expoente da tradição de esquerda. No entanto, foi recebida em ambiente liberal, que se aproxima da nova direita, e em ambiente supostamente hostil (como na jaula do leão) dialogou, aprendeu, observou e compreendeu. O ambiente não era tão hostil. E a pesquisadora não era intransigente. É a composição desse diagrama de tolerância, entre outros, o grande valor desse livro imprescindível para uma tentativa de compreensão de nosso tempo.

 


[1] Devo essa imagem a meu filho, Bernardo Ribeiro Godoy, que leu Camila Rocha antes de mim, e que fixou alguns problemas centrais do livro. Bernardo observou que a autora teria tido a coragem de ir à toca do leão. Também discuti o assunto com Miquerlam Chaves Cavalcante, pesquisador e professor, que elabora tese de doutorado sobre aspectos desse tema, sob uma ótica da justiça eleitoral.

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