Tribunal do Júri

A perspectiva prática da plenitude de defesa

Autores

  • Rodrigo Faucz Pereira e Silva

    é advogado criminalista habilitado no Tribunal Penal Internacional (em Haia) pós-doutor em Direito (UFPR) doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG) mestre em Direito (UniBrasil) e coordenador da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

  • Daniel Ribeiro Surdi de Avelar

    é juiz de Direito mestre e doutorando em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil) professor de Processo Penal (UTP EJUD-PR e Emap) e professor da pós-graduação em Tribunal do Júri do Curso CEI.

21 de agosto de 2021, 8h00

Não é nenhuma novidade que os direitos e garantias previstos no artigo 5º da Constituição Federal precisam ser respeitados e fomentados pelo Estado. Nessa seara, lembramos que o Tribunal do Júri não apenas possui gênese constitucional, como também está sistematicamente posicionado como uma garantia constitucional.

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A Constituição reconhece o instituto do júri no artigo 5º, inciso XXXVIII, e ainda institui alguns princípios básicos — que se somam aos de natureza geral do processo penal (como presunção de inocência, in dubio pro reo, proibição da prova ilícita, contraditório, dentre outros). Os princípios específicos expressos são: a) a plenitude de defesa; b) o sigilo das votações; c) a soberania dos veredictos; d) a competência para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

O primeiro princípio constitucional é o da plenitude de defesa. Caracteriza-se como uma potencialização do princípio da ampla defesa. Perceba-se que defesa ampla é menos abrangente que defesa plena. Esta última precisa ser "completa, perfeita, absoluta, ou seja, deve ser oportunizada ao acusado a utilização de todas as formas legais de defesa possíveis, podendo causar, inclusive, um desequilíbrio em relação à acusação" [1].

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O princípio da plenitude de defesa pode ser desdobrado em defesa técnica e a autodefesa. Pelo aspecto da autodefesa, o acusado pode tanto sustentar qualquer versão que entender adequada para sua defesa, quanto ficar em silêncio ou sequer participar do julgamento. Por isso também que a autodefesa é considerada um direito disponível, podendo o acusado confessar ou colaborar com a acusação, caso seja de seu interesse.

Já a defesa técnica se caracteriza pela necessidade de uma atuação completa e consistente de seu defensor. Tendo em vista que os jurados julgam pela íntima convicção, faz-se fundamental que a defesa técnica não seja meramente formal, mas, sim, efetiva. Não pode o defensor atuar apenas de maneira protocolar.

A necessidade de defesa adequada é tamanha que o legislador concedeu ao juiz-presidente os poderes de dissolver o Conselho de Sentença e nomear novo defensor, caso este último não atue satisfatoriamente (artigo 497, V, CPP). Diferentemente da autodefesa, a defesa técnica é um direito indisponível, pois se relaciona com a concretização do próprio princípio da plenitude de defesa e do contraditório.

No entanto, para além da análise da divisão entre autodefesa e defesa técnica, a plenitude de defesa funciona como princípio reitor em todo procedimento para o julgamento dos crimes dolosos contra a vida.

Não se pode olvidar que, por mais que os princípios possuam uma abertura maior de interpretação, eles prevalecem sobre as regras de norma infraconstitucional. Assim, caso a plenitude de defesa esteja em conflito com alguma norma processual, não há dúvidas que o princípio e sua interpretação em favor do cidadão precisa preponderar. Os exemplos são inúmeros:

1) Pense-se no caso de pluralidade de acusados. O §2º do artigo 477 do CPP determina que o tempo de sustentação será de duas horas e meia, devendo a réplica e tréplica serem realizadas em até duas horas. É uma regra criada considerando a histórica maioria de casos em que o concurso de agentes ocorre entre dois ou três acusados. Tal previsão, salvo melhor juízo, não gera prejuízo à defesa quando se tratam de dois acusados. No entanto, a partir do terceiro acusado, o tempo para sustentação se torna exíguo. Se a causa for complexa (por exemplo, com uma quantidade elevada de documentos e depoimentos, caso de concurso de crimes etc.) ou se for necessário apresentar as teses de forma individualizada para cada acusado, a duração prevista é insuficiente.

Se forem cinco acusados, a regra estipularia apenas 30 minutos para cada um. Em um caso de homicídio simples, talvez seja suficiente. Mas com denúncias e decisões de pronúncia cada vez mais intrincadas, meia hora não é razoável nem quando os acusados possuem teses similares.

A partir do momento em que se considera a plenitude de defesa como princípio que visa a garantir ao acusado uma defesa efetiva (não meramente protocolar), é imperativo que o tempo para defesa seja coerente. Dessa forma, a defesa pode pleitear ao juiz-presidente na fase do artigo 422, ou mesmo durante o plenário [2], que seja assegurada dilação do período de sustentação.

O aumento do tempo não apenas viabiliza uma defesa efetiva, como também, por outro lado, não gera prejuízo para nenhuma das partes ou para os participantes. Lembra-se que o interesse maior é que ocorra um julgamento justo e imparcial. Não cremos que importa ao Judiciário ou mesmo ao Ministério Público que a condenação seja influenciada pela inviabilização de adequada participação na formação da convicção dos juízes naturais;

2) Outro exemplo é a inovação da tese na tréplica. Caracteriza-se pela situação em que a defesa, durante a tréplica, altera o seu pedido ou apresenta uma tese que ainda não havia sido sustentada no processo. Destarte, a acusação não poderia mais se manifestar, o que violaria o princípio do contraditório. Considerando a plenitude de defesa como princípio reitor no procedimento do Tribunal do Júri, bem como mais favorável ao cidadão, esse conflito aparente teria que ser resolvido pro plenitude [3]. Ademais, o princípio também tem como consequência que a defesa sempre se manifeste por último (vez que, sem isso, não há defesa completa);

3) Questões relacionadas à primeira fase do procedimento também estão abarcadas pela proteção do princípio da plenitude de defesa. Situações que, de maneira análoga, são objeto de discussões o procedimento comum, no procedimento do júri merecem uma maior atenção, devendo a interpretação ser ainda mais garantidora.

Temas como: 1) a consequência da perda de prazo da resposta à acusação ou de alegações finais; ou 2) sobre aguardar cumprimento das cartas precatórias; ou ainda 3) em relação à produção das provas pedidas pela defesa. São situações que os reflexos de uma interpretação processual desfavorável ao acusado serão sentidos no plenário, uma vez que os jurados julgam de maneira sigilosa, sem motivação e por maioria dos votos.

Não há existe qualquer fundamento que permita mitigações das regras processuais e/ou constitucionais por ser bifásico o procedimento dos crimes dolosos contra a vida. Pelo contrário, o procedimento do júri prevê a intensificação do princípio da ampla defesa, como já dito anteriormente.

Respeitar os princípios constitucionais expressos sobre o júri em todos os momentos, atos e fases, legitima o próprio julgamento dos crimes dolosos contra a vida, ainda mais considerando as particularidades do instituto no Brasil. A localização sistemática do júri na Constituição não é por acaso, devendo ele ser considerado como uma garantia do cidadão.

É inadmissível que, mais de 30 anos após a promulgação da CF, ainda se insista em validar normas processuais incompatíveis com a Constituição. Mais do que isso, a plenitude de defesa, como princípio reitor, deve sempre funcionar como um instrumento de filtragem e interpretação das normas.


[1] PEREIRA E SILVA, Rodrigo Faucz; AVELAR, Daniel Ribeiro Surdi de. Manual do Tribunal do Júri, São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021, p. 138.

[2] Situação já lembrada, dentre outros, por Gustavo Badaró. (BADARÓ, Gustavo Henrique Righi Ivahy. As reformas no processo penal. As novas Leis de 2008 e os projetos de reforma. Coord. Maria Thereza Rocha de Assis Moura. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2008, p. 189).

[3] Além da ponderação de princípios, diversos outros argumentos autorizariam a inovação de tese na tréplica, como: (a) em todos os processos criminais a defesa se manifesta por último, devendo a acusação se antecipar às teses defensivas, caso deseje; (b) não há qualquer regra no CPP que impeça a inovação; (c) se cada vez que a defesa falasse algo, a acusação tivesse o direito de se manifestar, entrar-se-ia em um looping infinito, eis que a defesa é sempre a última a falar; (d) todos os fatos já estão expostos para ambas as partes, sendo que as "teses jurídicas" não são passíveis, no geral, de serem impugnadas; (e) não é incomum que surjam teses defensivas a partir da sustentação da própria acusação. A favor da legalidade da inovação, por exemplo, o entendimento de Guilherme Nucci (NUCCI, Guilherme de Souza. Tribunal do Júri. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2014. p. 255). Também abordamos esse aspecto na obra "Plenário do Tribunal do Júri", publicado em 2020 pela Editora RT — Thomson Reuters, no capítulo 6.31.

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    é advogado criminalista, pós-doutorando em Direito (UFPR), doutor pelo Programa Interdisciplinar em Neurociências (UFMG), mestre em Direito (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE) e de Tribunal do Júri em pós-graduações (AbdConst, Curso Jurídico, UniCuritiba, FAE, Curso CEI) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri)

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    é juiz de Direito, presidente do 2º Tribunal do Júri de Curitiba desde 2008, mestre em Direitos Fundamentais e Democracia (UniBrasil), professor de Processo Penal (FAE Centro Universitário, UTP e Emap) e coordenador do Núcleo de Pesquisa em Tribunal do Júri (Nupejuri).

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