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Opinião: IPTU progressivo em SP e a função social da propriedade

21 de agosto de 2021, 6h03

Por Flávio Miranda Molinari, Letícia Menegassi Borges

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As regiões centrais das grandes cidades brasileiras, por vezes, revelam um cenário de degradação e abandono, seja por ausência de políticas de zeladoria urbana do poder público, imbróglios jurídicos relacionados aos bens imóveis ou até mesmo descaso dos proprietários quanto à utilização das propriedades. Essa complexa situação dá ensejo ao fenômeno conhecido como retenção especulativa imobiliária, isto é, quando não é dada a utilização adequada aos imóveis urbanos, tal como definido na legislação paulistana relativa ao Plano Diretor Estratégico e à Política de Desenvolvimento Urbano.

Como regra, o Imposto sobre a Propriedade Predial e Territorial Urbana (IPTU) é um tributo com viés preponderantemente arrecadatório, servindo ao propósito básico de fonte de receitas para manutenção da própria máquina pública, bem como para custear a implementação das políticas públicas. No entanto, como instrumento de política urbana à disposição dos municípios para fins de ordenação do espaço urbano, a progressividade das alíquotas do IPTU ganha a roupagem da extrafiscalidade e serve ao propósito de induzir os proprietários a dar o devido cumprimento à função social da propriedade, servindo não apenas ao seu titular, mas também ao bem comum.

Portanto, como veremos adiante, o IPTU progressivo é uma forma de intervenção do Estado na propriedade e, por restringir direitos, deve ser empregado à luz dos preceitos constitucionais e legais que o estatuem.

O conteúdo jurídico da função social da propriedade no meio ambiente urbano é uma construção baseada na conjugação de diferentes planos normativos. Iniciando pela Constituição Federal de 1988, o artigo 182, caput, determina que a "política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal, conforme diretrizes gerais fixadas em lei, tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem-estar de seus habitantes".

Portanto, o texto constitucional estabelece balizas gerais relacionadas à política de desenvolvimento urbano, que está delineada no plano legislativo federal por meio do Estatuto da Cidade. Com efeito, a Constituição endereça ao Poder Legislativo municipal a tarefa de definir e executar o plano diretor, sendo a sua observância o critério para verificar se a propriedade cumpre a função social. A Constituição também tratou de medidas corretivas aplicáveis aos proprietários do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, entre as quais está o IPTU progressivo no tempo (artigo 182, § 4º, inciso II).

Conferindo eficácia aos artigo 182 e 183 da CF/88, a Lei nº 10.257, de 10 de julho de 2001 (Estatuto da Cidade) busca evitar a retenção especulativa de imóvel urbano, que resulte na sua subutilização ou não utilização, a deterioração das áreas urbanizadas, entre outros objetivos voltados ao pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana.

De acordo com o Estatuto da Cidade, artigo 5º, lei municipal específica para área incluída no plano diretor poderá determinar o parcelamento, a edificação ou a utilização compulsórias do solo urbano não edificado, subutilizado ou não utilizado, devendo fixar as condições e os prazos para implementação da referida obrigação. Para tanto, é considerado subutilizado o imóvel cujo aproveitamento seja inferior ao mínimo definido no plano diretor ou em legislação dele decorrente. O proprietário deverá ser notificado pelo Poder Executivo municipal para o cumprimento da obrigação, devendo a notificação ser averbada no cartório de registro de imóveis.

Veja-se que a notificação deve ser feita por servidor do órgão competente do poder público municipal, ao proprietário do imóvel, pessoa física ou pessoa jurídica. Portanto, como regra, a notificação é pessoal e somente pode ser feita por edital quando frustrada por três vezes a tentativa de notificação pessoal.

Quanto ao IPTU progressivo no tempo, o Estatuto da Cidade determina que somente em caso de descumprimento das condições e dos prazos legalmente previstos para que seja dado cumprimento à função social da propriedade, o município poderá impor o IPTU progressivo no tempo, com majoração da alíquota pelo prazo de cinco anos consecutivos.

Portanto, o fato jurídico que autoriza a cobrança, em caráter progressivo, é a verificação do descumprimento de um dever relacionado aos proprietários de imóveis, qual seja, a não destinação do seu bem ao cumprimento da sua função social tal como delineada no plano diretor municipal.

A alíquota aplicável a cada ano é fixada em lei específica e não excederá a duas vezes o valor referente ao ano anterior, respeitada a alíquota máxima de 15%. Se a obrigação de parcelar, edificar ou utilizar não for atendida em cinco anos, o município poderá manter a cobrança pela alíquota máxima, até que se cumpra a obrigação, sob pena de desapropriação do imóvel com pagamento por meio de títulos.

No município de São Paulo, a Lei nº 16.050/2014 estabeleceu o Plano Diretor Municipal e caracterizou o cumprimento da função social da propriedade urbana em seu território pela situação em que "a propriedade cumpre os critérios e graus de exigência de ordenação territorial estabelecidos pela legislação, em especial atendendo aos coeficientes mínimos de utilização" previsto na lei.

De acordo com o Plano Diretor Municipal, a região central do município de São Paulo está situado na Macrozona de Estruturação e Qualificação Urbana, mais especificamente na Macroárea de Estruturação Metropolitana no Setor Central, que tem dentre seus objetivos o "fortalecimento do caráter de centralidade municipal, aumentando a densidade demográfica e a oferta habitacional, respeitando o patrimônio histórico, cultural e religioso, otimizando a oferta de infraestrutura existente; renovando os padrões de uso e ocupação e fortalecendo a base econômica local", no termos do artigo 12, § 3º, inciso I, da lei municipal.

Nesse contexto normativo, os imóveis situados na região do Centro estão sujeitos ao IPTU progressivo no tempo, que em relação às formas de notificação e prazos para o cumprimento da função social da propriedade está em linha com o Estatuto da Cidade.

Em relação ao cálculo no IPTU progressivo, a lei paulistana determina que caso os proprietários dos imóveis devidamente notificados não cumpram as obrigações nos prazos ali estabelecidos, a prefeitura deverá aplicar alíquotas progressivas de IPTU majoradas anualmente pelo prazo de cinco anos consecutivos até atingir a alíquota máxima de 15%, sendo que a alíquota a ser aplicada a cada ano será igual ao dobro do valor da alíquota do ano anterior. Ademais, é vedada a concessão de isenções, anistias, incentivos ou benefícios fiscais relativos ao IPTU progressivo, ficando suspensas quaisquer isenções do IPTU incidentes sobre o imóvel quando o proprietário for notificado para o parcelamento, edificação ou utilização compulsórios.

Como se vê, o grau de intervenção na propriedade privada representado pelo IPTU progressivo é alto e, por isso mesmo, o exercício do poder de polícia consistente na fiscalização do cumprimento da obrigação deve ser feito com cuidado pela autoridade municipal, inclusive porque uma vez aplicado o IPTU progressivo, a cobrança do crédito deve obedecer a legislação tributária vigente. Em outras palavras, isso significa que o crédito tributário irá gozar de todos as garantias e privilégios que o Fisco dispõe para cobrança, tais como o ajuizamento de execução fiscal, isso sem se falar na possibilidade de desapropriação do bem.

Não obstante, a experiência prática vem nos mostrando que, embora a municipalidade tencione efetuar a fiscalização quanto ao cumprimento da função social da propriedade, nem sempre a forma de notificação dos proprietários ocorre de acordo com o figurino legal. Por exemplo, há situações em que a notificação ocorre diretamente por edital, sem que se dê ciência aos proprietários quanto ao início do transcurso do prazo para que se cumpra a obrigação e muito menos que haja o esgotamento das tentativas de notificação pessoal.

Em outros casos mais graves, em que os munícipes nunca deixaram de cumprir a função social da propriedade e documentaram a regularidade do imóvel perante a Secretaria Municipal de Urbanismo e Licenciamento, mesmo com a obtenção do reconhecimento formal do cumprimento da função social da propriedade, a cobrança do IPTU progressivo é realizada de forma ilegal e arbitrária, intensificando o contencioso tributário de forma totalmente desnecessária.

A aplicação do instituto do IPTU progressivo no tempo exige sinergia entre os órgãos municipais, sendo necessária uma articulação eficiente entre as autoridades responsáveis pela implementação da Política de Desenvolvimento Urbano e do Plano Diretor Estratégico do Município e a administração tributária.

Se por um lado a obrigação de dar cumprimento à função social da propriedade é uma importante ferramenta de política urbana, por outro lado se aqueles que cumprem seu papel perante a sociedade forem jogados na vala comum dos especuladores que tanto prejudicaram o meio ambiente urbano na região do Centro de São Paulo, a ineficiência administrativa pode gerar efeito contrário e levar ao esvaziamento do instituto.