Observatório constitucional

Proposta que implique aumento de despesa padece de inconstitucionalidade?

Autores

  • Jorge Octávio Lavocat Galvão

    é procurador do Distrito Federal professor adjunto da Faculdade de Direito da Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito pela New York University doutor em Direito Constitucional pela Universidade de São Paulo (USP) e visiting reseacher na Yale University.

  • Sophia Guimarães

    é assessora especial da Presidência do Supremo Tribunal Federal.

21 de agosto de 2021, 8h00

1) Projetos de lei de iniciativa parlamentar que acarretem aumento de gastos para o poder público padecem de vício de inconstitucionalidade formal?

Aqueles que acompanham o cotidiano do controle concentrado de constitucionalidade, seja ele federal ou estadual [1], têm conhecimento que essa é uma das questões mais tormentosas no que se refere à separação de poderes. Com efeito, várias leis de iniciativa parlamentar que demandam gastos públicos são editadas anualmente, gerando conflito de interesses entre o legislativo e o presidente da República e/ou governador do estado. É certo que durante a Constituição de 1967 tais leis padeciam de vício de iniciativa, por expressa dicção do artigo 60, II [2]. A partir de 1988, ante o silêncio do novo texto, a questão permanece em aberto.

Recentemente, um ingrediente a mais foi adicionado ao debate. A Emenda Constitucional nº 95/2016, também conhecida como PEC do Teto de Gastos, adicionou o artigo 113 do ADCT, dispondo que "a proposição legislação que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita deverá ser acompanhada da estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro".

O presente estudo visa a apresentar três dimensões dessa questão. No tópico 2, serão explicitadas as razões e as hipóteses constitucionais de iniciativa reservada. No tópico 3, buscaremos expor a jurisprudência sobre o assunto. Já no tópico 4, serão expostas as razões legislativas que levaram à edição do artigo 113 do ADCT e a sua aplicação pelo STF. Ao final, serão lançadas algumas reflexões.

2) No processo legislativo, o poder-dever de praticar os atos jurídicos individualizados pertence a atores predeterminados, cujas funções estão consolidadas na própria Carta Política. Nessa chave, é possível segmentá-lo em três etapas: a) a propositura do Projeto de Lei (PL); b) a tramitação do projeto, que culmina em versão consolidada de texto; e c) a sanção da lei.

No que tange à propositura, a regra geral aponta para a iniciativa comum — disponível aos três poderes da República e, eventualmente, a instituições estatais elencadas por rol fechado [3]. Em paralelo, o ato deflagrador para novo diploma pode ser confiado à iniciativa reservada.

Os comandos dos artigos 27, 28, 29, VI; 37, X; 48, XV; 51, IV; 52, XIII; 61, §1º; 64; 93; 125; 128, §5º; 165; 167-B da Constituição Federal de 1988 (CF/88) são exemplos de iniciativa privativa. Destacamos o artigo 61, §1º.

José Afonso da Silva pontifica que "a razão para que se atribui ao chefe do Executivo o poder de iniciativa decorre do fato de a ele caber a missão de aplicar uma política determinada em favor das necessidades do País; mais bem informados do que ninguém das necessidades, e dada a complexidade cada vez maior dos problemas a se resolver, estão os órgãos do Executivo tecnicamente mais bem aparelhados do que os parlamentares para preparar os projetos de leis" [4].

Essa ingerência do presidente da República em relação às propostas legislativas sobre o quadro de pessoal da Administração Pública direta e indireta (artigo 61, §1º, inciso II, alínea "a") e sobre o regime dos servidores públicos da União (artigo 61, §1º, inciso II, alínea "b") foi interpretada de maneira ampliativa tanto pelo poder constituinte (derivado) decorrente, quanto pelo Supremo Tribunal Federal.

3) Até esse ponto, constatou-se a construção da cultura jurídica de centralização das escolhas de alocação dos recursos pelos ocupantes de cargos no Poder Executivo. Nas ações de sua relatoria que questionavam a constitucionalidade de lei estadual de iniciativa parlamentar acerca do regime jurídico dos servidores públicos [5], o ministro Celso de Mello apresentava este fundamento:

"Processo legislativo e iniciativa reservada das leis — A usurpação da prerrogativa de instaurar o processo legislativo, por iniciativa parlamentar, qualifica-se como ato destituído de qualquer eficácia jurídica, contaminando, por efeito de repercussão causal prospectiva, a própria validade constitucional da norma que dele resulte. Precedentes. Doutrina. Nem mesmo eventual aquiescência do Chefe do Poder Executivo mediante sanção, expressa ou tácita, do projeto de lei, ainda quando dele seja a prerrogativa usurpada, tem o condão de sanar esse defeito jurídico radical. Insubsistência da Súmula nº 5/STF (formulada sob a égide da Constituição de 1946), em virtude da superveniente promulgação da Constituição Federal de 1988. Doutrina. Precedentes" (Vide ADI 2.364, relator ministro Celso de Mello, Tribunal Pleno, julgado em 17/10/2018).

Ocorre que o regime jurídico dos servidores é uma hipótese expressa do artigo 61, §1º, da Constituição Federal. Por sua vez, as leis disciplinadoras de políticas públicas estariam em zona de penumbra interpretativa.

A primeira vertente da jurisprudência confirma o laço entre a exclusividade de proposição pelo Poder Executivo e o desenho de políticas públicas. Vale conferir a ADI 3.924, relator ministro Rosa Weber, Plenário, julgada em 21/6/2021; a ADI 5.876, relator ministro Alexandre de Moraes, Plenário, julgada em 23/8/2019; a ADI 4.000, relator ministro Edson Fachin, Plenário, julgada em 18/5/2017; e a ADI 4.211, relator Teori Zavascki, Plenário, julgada em 3/3/2016.

Noutro sentido, a segunda vertente foi fixada no julgamento de mérito de repercussão geral. Veja-se a ementa do ARE 878.911, paradigmático do Tema 917:

"Recurso extraordinário com agravo. Repercussão geral. 2. Ação Direta de Inconstitucionalidade estadual. Lei 5.616/2013, do Município do Rio de Janeiro. Instalação de câmeras de monitoramento em escolas e cercanias. 3. Inconstitucionalidade formal. Vício de iniciativa. Competência privativa do Poder Executivo municipal. Não ocorrência. Não usurpa a competência privativa do chefe do Poder Executivo lei que, embora crie despesa para a Administração Pública, não trata da sua estrutura ou da atribuição de seus órgãos nem do regime jurídico de servidores públicos. 4. Repercussão geral reconhecida com reafirmação da jurisprudência desta Corte. 5. Recurso extraordinário provido" (ARE 878.911 RG, relator ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 29/9/2016, DJe de 11/10/2016, grifos dos autores).

Inolvidável que a tendência está, em alguma medida, relacionada ao capital político "transacionado" nessas operações. São escolhas que impactam diretamente a ordem de priorização dos direitos (e dos sujeitos de direito) fundamentais.

4) A concepção originária do artigo 113 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT), discutida na Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 241/2016, remete ao "enxugamento" de certas despesas públicas e ao aumento da margem de disposição conjuntural do orçamento [6]. Nesse cenário, prevalece a seguinte premissa: a escassez do orçamento público impõe restrições fáticas ao grau de realização e ao alcance subjetivo de direitos que, no plano teórico-constitucional, exigem realização máxima e abrangência total [7].

À primeira vista, a alteração do ADCT instituiu requisito formal e técnico para a primeira etapa do processo legislativo. Na prática, o parâmetro já foi utilizado pela Corte Constitucional para reproduzir a "personalização" da iniciativa. A título ilustrativo, confira-se o precedente:

"Constitucional. Tributário. Imunidade de igrejas e templos de qualquer crença. Icms. Tributação indireta. Guerra fiscal. Concessão de benefício fiscal e análise de impacto orçamentário. artigo 113 do adct (redação da ec 95/2016). Extensão a todos os entes federativos. INCONSTITUCIONALIDADE. […] 2. A norma estadual, ao pretender ampliar o alcance da imunidade prevista na Constituição, veiculou benefício fiscal em matéria de ICMS, providência que, embora não viole o artigo 155, § 2º, XII, 'g', da CF — à luz do precedente da CORTE que afastou a caracterização de guerra fiscal nessa hipótese (ADI 3421, relator ministro Marco Aurélio, Tribunal Pleno, julgado em 5/5/2010, DJ de 58/5/2010) —, exige a apresentação da estimativa de impacto orçamentário e financeiro no curso do processo legislativo para a sua aprovação. 3. A Emenda Constitucional 95/2016, por meio da nova redação do artigo 113 do ADCT, estabeleceu requisito adicional para a validade formal de leis que criem despesa ou concedam benefícios fiscais, requisitos esse que, por expressar medida indispensável para o equilíbrio da atividade financeira do Estado, dirige-se a todos os níveis federativos. 4. Medida cautelar confirmada e Ação Direta julgada procedente" (ADI 5.816, relator ministro Alexandre de Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 5/11/2019, grifos dos autores)

Essa não é a única interpretação do dispositivo (nem a última palavra do Supremo, que exsurge de impugnação específica da constitucionalidade). Com o intuito de extrapolar a tese supratranscrita, combinam-se os métodos literal e teleológico de interpretação. Primeiro, o termo "estimativa" chama atenção, pois o seu significado gramatical denota cálculo aproximado, condicional, até mesmo hipotético. Ademais, contrapõe-se o sentido prático-jurídico de "impacto orçamentário e financeiro", o objeto da estimação. 

Quando a PEC 241/2016 foi discutida, já existia o movimento de valorização dos elementos empíricos como informadores — vetores de instrução e justificação — para as decisões alocativas.

Dois anos depois, a Lei 13.655/2018 formalizou ônus para as motivações de atos administrativos e para a fundamentação de provimento jurisdicionais, qual seja, o esclarecimento obrigatório sobre seus efeitos. É deveras simbólico que essa alteração tenha ocorrido na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro.

Já a Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica (Lei 13.874/2019), enquadrou o poder normativo secundário das agências reguladoras, impondo método de embasamento técnico à elaboração das disposições infralegais. A análise de impacto regulatório (AIR) passou a ser etapa imprescindível para a validade de resoluções, portarias e demais atos das agências (vide artigo 5º da Lei 13.874/2019). O instituto promove a exposição de argumentos estatísticos e econômicos, para subsidiar os comandos jurídicos que intervém na gestão de serviços públicos e no acesso de particulares aos instrumentos de parceria e habilitação à prestação destes serviços [8].

Na linha do exposto, caso se entenda: 1) que, para a documentação instrutória de projeto de lei "que crie ou altere despesa obrigatória ou renúncia de receita", bastam cálculos preliminares e projeções ou mais abertas e 2) que a tramitação de tais PLs (e não a proposição) precisa adotar abordagem similar à AIR; então o artigo 113 do ADCT deixaria de ser um "reforço" à reserva da Administração.

No cenário ideal de harmonia entre os poderes, a democratização da iniciativa comum aos projetos sobre despesas obrigatórias e/ou sobre renúncias de receitas seria contrabalanceada pela cooperação de unidades e servidores especializados do Executivo durante as discussões parlamentares. A racionalização dos custos continuaria imperando, porém por meio da apresentação de opiniões especializadas durante o debate legislativo. 

De ordem conclusiva, a interpretação ampliativa sobre o monopólio da iniciativa legislativa por parte do chefe do Poder Executivo tem duas consequências, que valoramos como positiva e negativa, respectivamente. É salutar que as instâncias executoras do orçamento possam opinar sobre a capacidade do ente político para substituir diretrizes ou para criar frentes de atuação. Com "frentes de atuação", incluem-se não só os programas de governo e as obras, mas também as políticas fiscais, o equilíbrio atuarial dos regimes de previdência e as competências do poder de polícia. Todavia, não parece razoável que o único momento para a ponderação de condições financeiras e técnicas seja a apresentação do PL.

Pendem as definições sobre a quem compete propor as políticas públicas e com qual grau de detalhamento prévio do plano de execução e, mesmo, quais são as normas abstratamente abarcadas pelo artigo 113 do ADCT. A depender do grau de exigência a ser adotado pelo STF, restará consignado que a proposta legislativa que implica o aumento de gastos necessariamente padece de vício de inconstitucionalidade.

 


[1] A título exemplificativo: "O aumento no teto correspondente a obrigação de pequeno valor, independentemente de precatório, resulta em nítida criação de despesa, razão pela qual sua iniciativa é privativa do Chefe do Poder Executivo. 3. A Lei Distrital n. 6.618/2020 invadiu matéria cuja iniciativa de lei é privativa do Governador do Distrito Federal, razão pela qual deve ser mantida a decisão que declarou incidentalmente a sua inconstitucionalidade". (TJDFT, processo nº 07460.26-48.2020.8.07.0000, Relator Des. Hector Valverde, 5ª Turma Cível, julgado em 17/3/2021)

[2] "Artigo 60 – É da competência exclusiva do Presidente da República a Iniciativa das leis que: (..) II – criem cargos, funções ou empregos públicos ou aumentem vencimentos ou a despesa pública".

[3] É o caso do artigo 112 da Constituição do Estado do Rio de Janeiro: "Artigo 112 – A iniciativa das leis complementares e ordinárias cabe a qualquer membro ou Comissão da Assembleia Legislativa, ao Governador do Estado, ao Tribunal de Justiça, ao Ministério Público, a Defensoria Pública e aos cidadãos, na forma e nos casos previstos nesta Constituição".

[4] SILVA, José Afonso. Processo Constitucional de Formação das Leis. São Paulo: Malheiros, 2017, p. 144.

[5] Ver, também, a ADI 776-MC, Tribunal Pleno, julgada em 23/10/1992; o RE 427.574-ED, Segunda Turma, julgado em 13/12/2011; a ADI 2.743, Tribunal Pleno, julgada em 1/8/2018; a ADI 3.156, Tribunal Pleno, julgada em 1/8/2018; e a ADI 2.442, Tribunal Pleno, julgada em 17/10/2018, DJe de 7/3/2019.

[6] O então ministro da Fazenda, Sr. Henrique Meirelles, apresentou a proposta do artigo 113 do ADCT da seguinte maneira: "Nos últimos anos, aumentaram-se gastos presentes e futuros, em diversas políticas públicas, sem levar em conta as restrições naturais impostas pela capacidade de crescimento da economia, ou seja, pelo crescimento da receita. É fundamental para o equilíbrio macroeconômico que a despesa pública seja gerida numa perspectiva global.  Nesse sentido, qualquer iniciativa que implique aumento de gastos não deve ser analisada isoladamente, haja vista que essa abordagem tende a levar a conclusões equivocadas sobre seus benefícios e custos".

[7] Cf. SUNSTEIN, Cass; HOLMES, Stephen. The cost of rights: why liberty depends on taxes. New York: W. W. Norton & Company Ltd., 1999

[8] Vide BRASIL. CASA CIVIL. Subchefia de Análise e Acompanhamento de Políticas Governamentais. Diretrizes gerais e guia orientativo para elaboração de Análise de Impacto Regulatório — AIR. Brasília: Presidência da República, 2018.

Autores

  • Brave

    é professor adjunto da UnB, procurador do DF e advogado. Mestre em Direito pela NYU, doutor em Direito pela USP e Visiting Researcher por Yale.

  • Brave

    é graduanda em Direito pela Universidade de Brasília (UnB), pesquisadora e bolsista do Centro de Pesquisa em Direito Constitucional Comparado (UnB) e membro da Clínica EIXOS – Judiciário e Cidadania (UnB).

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