Limite Penal

Mais uma vítima de injustiça epistêmica

Autores

20 de agosto de 2021, 10h47

No último dia 10, o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) aceitou uma revisão criminal proposta pelo Innocence Project Brasil e absolveu Cleber Michel Alves, que ficou três anos e meio preso devido a uma falsa acusação de estupro de vulnerável. Cléber sempre negou a autoria do crime. Sua defesa apresentou documentos comprovando que ele não estava no local do crime no dia e hora do ocorrido. Com base na narrativa da jovem  corroborada pelo depoimento de sua mãe e namorado , o suspeito foi preso preventivamente e, posteriormente, condenado a dez anos de reclusão.

Spacca
O Innocence Project Brasil, filial nacional da organização não governamental que revisa processos criminais para reverter condenações de inocentes, obteve o direito de produzir novas provas através da impetração de Habeas Corpus. A mãe da adolescente foi intimada a informar o número do celular de sua filha, de forma que a organização não governamental (ONG) pudesse obter registros da localização dela no momento do crime. Após a intimação, mãe e filha foram espontaneamente ao Ministério Público paulista. À instituição, a jovem confessou que, com a ajuda do namorado, inventou que foi estuprada. O motivo era esconder que tinham passado juntos a tarde daquele dia. O Ministério Público, então, apresentou retratação à Justiça e Cléber foi libertado em abril de 2020.

Cléber foi mais uma vítima de injustiça epistêmica no sistema de Justiça Criminal brasileiro. O réu foi desrespeitado na sua qualidade de sujeito de conhecimento (knower): seus álibis foram desprezados e sua narrativa desconsiderada.

Em outra oportunidade, explicamos que a injustiça epistêmica pode ser de dois tipos: testemunhal e hermenêutica; e focalizamos nossas atenções no segundo. Neste texto, o tipo que nos interessa discutir é o primeiro. De acordo com Miranda Fricker  autora do livro que impulsionou as investigações sobre este conceito [1]  a injustiça epistêmica testemunhal ocorre quando um ouvinte atribui a um falante um nível de credibilidade que não corresponde às evidências de que ele esteja falando a verdade. Um ingrediente importante na caracterização desse tipo de injustiça é a sua motivação, que possui natureza discriminatória. O falante é desacreditado porque o ouvinte possui, em relação a ele, algum preconceito em relação a aspectos de sua identidade social (cor, gênero, etnia, classe social etc.).

É preciso esclarecer que o adjetivo "testemunhal" é utilizado por Fricker no sentido epistemológico, não conotando exclusivamente a fala de uma testemunha em sentido jurídico. "Testemunho", para o presente propósito, é um substantivo que se refere a atos de fala ordinários que pretendem transmitir (ou que são tidos como tendo a intenção de transmitir) informações verdadeiras sobre assuntos que estão de alguma forma em disputa. Logo, "testemunha" é toda e qualquer pessoa que transmite informação. Em termos técnicos da epistemologia, o testemunho é uma importante fonte de conhecimento que se coloca ao lado da percepção (quando uma pessoa usa suas próprias experiências sensíveis para ter acesso ao mundo externo); da memória (que preserva as experiências passadas e presentes); e da inferência (que estende, por meio de processos cognitivos, as informações obtidas com a percepção e preservadas com a memória) [2].

Assim é que a figura do testemunho jurídico (artigo 203 do Código de Processo Penal, ou CPP)  uma pessoa obrigada a falar, sob juramento, perante a autoridade  constitui apenas uma instância que pode ser capturada pelo conceito epistemológico de testemunho. Podemos pensar em outras instâncias de aplicação do conceito, como confissões, declarações do ofendido e provas periciais. Em todos esses casos, informações são transmitidas por meio de palavras ou expressões. O que importa é que o estado epistêmico do julgador (juiz ou jurado) seja formado com base no que uma pessoa disse (ou escreveu).

Não há dúvida de que preconceitos de cor, gênero e classe  que historicamente marcam as relações sociais  afetam a economia da credibilidade no contexto judicial. O fato de que Cléber é um homem negro e pertencente a uma classe social não privilegiada são fatores que afetaram diretamente a forma como a sua palavra foi recepcionada pelas autoridades. Mas, nesse caso, havia um elemento a mais que contribuiu para a sua deflação: Cléber havia sido denunciado, em referência a outro contexto, pela prática do crime de ato obsceno (artigo 233 do Código Penal). Os preconceitos de cor e classe se somaram àquele proveniente da anotação criminal na ficha do réu. Todos esses marcadores tornam a pessoa suscetível a sofrer não apenas injustiças que afetam a sua esfera econômica, educacional, profissional, entre outras, mas também a sua condição enquanto sujeito epistêmico. Em razão de seus marcadores identitários, o testemunho de Cléber deixou de receber credibilidade compatível com as evidências que a corroboravam.

Mas o ponto que queremos destacar é que o caso de Cléber deve ser compreendido de uma maneira holística. A injustiça epistêmica testemunhal do caso está localizada não só no déficit de credibilidade atribuído à palavra do réu, mas envolve também o correspondente excesso de credibilidade atribuído à palavra da suposta vítima. Houve uma deflação preconceituosa da fala de Cléber, a despeito das evidências que a corroboravam, e uma correspondente inflação preconceituosa da palavra da vítima de um crime sexual. Em última análise, a dupla injustiça epistêmica que Cléber sofreu  por déficit e excesso de credibilidade  nos permite identificar os distintos impactos que estereótipos podem produzir na circulação do conhecimento no processo penal.  

O excesso de credibilidade como uma espécie de injustiça epistêmica testemunhal não causa danos à pessoa que tem a sua fala inflacionada (neste caso, a suposta vítima)  pelo menos não de forma imediata. O dano epistêmico afeta a pessoa que, de alguma forma, está conectada na mesma cadeia de interações discursivas (nesse caso, o réu). Nas palavras de José Medina, "a credibilidade é uma qualidade comparativa e contrastiva" [3], de modo que o tratamento epistêmico privilegiado de alguns corresponde ao tratamento epistêmico não privilegiado de outros. Medina nos oferece o seguinte exemplo para ilustrar: quando os estudantes das universidades norte-americanas conferem mais autoridade e credibilidade a professores homens, brancos, heterossexuais e que têm o inglês como língua nativa, eles atribuem comparativamente um déficit de credibilidade a professores que não se encaixam nessas categorias.

Jennifer Lackey desenvolve um argumento semelhante. Para ela, a credibilidade é um "bem finito", e por isso a sua correta distribuição é uma questão de justiça epistêmica:

"Suponha que uma mulher relate ter sido estuprada por um conhecido durante o único encontro sexual que os dois tiveram, enquanto o homem relata que eles fizeram sexo consensual em várias ocasiões. (…) Uma pessoa está dizendo a verdade, e a outra não; consequentemente, há uma quantidade limitada de credibilidade para circular aqui. Acreditar no homem é não acreditar na mulher, e vice-versa; logo, considerar o homem confiável nesta ocasião é consequentemente considerar a mulher não confiável" [4].

O problema da distribuição da credibilidade está particularmente presente no contexto do processo judicial. O tribunal é um ambiente de interação conflituosa por excelência: acusação e defesa oferecem alegações fáticas contraditórias, mas só uma delas será considerada verdadeira. Dar crédito às alegações da vítima implica desacreditar as alegações do réu; e vice-versa. Portanto, déficit e excesso são duas faces de uma mesma moeda, e ambos estão condicionados pelos estereótipos preconceituosos dos sujeitos da interação epistêmico-discursiva.

Outros exemplos de injustiça epistêmica por excesso de credibilidade no processo judicial podem ser aqui mencionados. Um caso preocupante  e já trabalhado nesta coluna por Janaina Matida  ocorre quando as informações prestadas por policiais recebem maior credibilidade do que aquelas prestadas pelas pessoas presas, frequentemente negras e pobres. Situação essa que inclusive culminou na edição da Súmula 70 do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual permite condenações criminais baseadas exclusivamente no testemunho de policiais.

Outra situação inquietante, que será analisada com cuidado em outra oportunidade, é a credibilidade excessiva que os laudos dos peritos oficiais costumam receber. Em particular, a credibilidade do perito é excessiva quando contrastada com o déficit de credibilidade atribuído a assistentes técnicos ou com informações conflitantes provenientes de outros meios de prova ou indícios. Esse tipo de excesso de credibilidade ficou claro no acórdão do TJ-SP que anulou a condenação de Cléber. A decisão afirmou o seguinte:

"Como bem ponderou o procurador de Justiça em seu percuciente parecer de fls. 151/157, a prova pericial produzida pela defesa deve ser desconsiderada, primeiro porque fora realizada por perito particular, segundo porque não se trata de prova substancialmente nova como alegado pela defesa".

Em texto recente, Lackey trabalha um tipo peculiar de injustiça epistêmica que ocorre em casos de confissões falsas  um problema grave nos Estados Unidos [5]. Segundo dados do Innocence Project, 29% das exonerações alcançadas com a ajuda de exames de DNA envolvem a confissão do réu  muitos eram menores de idade ou possuíam alguma questão de saúde ou incapacidade mental. Lackey explica que essa espécie de injustiça ocorre quando o testemunho de uma pessoa recebe um excesso de credibilidade em dado momento quando comparado a outro momento posterior. No caso das confissões falsas, estudos citados por Lackey mostram o testemunho de um réu confesso frequentemente sucede em um contexto que diminui ou subverte a sua capacidade epistêmica. Confissões podem ser extraídas através de expedientes abusivos e desleais, como interrogatórios excessivamente longos em que são empregadas coações psicológicas. Logo, esse excesso de credibilidade dado à confissão falsa, obtida sob condições que afetam negativamente a capacidade epistêmica do réu, contrasta com o déficit atribuído à sua posterior retratação, a qual é realizada em condições epistemicamente mais favoráveis e adequadas.

Como deixa evidente o caso de Cleber, as injustiças epistêmicas podem acarretar erros judiciários graves. A identificação e prevenção desses erros perpassa não apenas por melhorias na legislação e na rotina judicial de produção de provas, mas também pelo aprimoramento epistêmico das instâncias persecutórias e decisórias criminais. O primeiro passo pode começar pela compreensão daqueles que atuam na ponta do sistema, como juízes e delegados, de que a credibilidade não é e não deveria ser atribuída em função de fatores identitários sociais. A possibilidade de a identidade social dos falantes afetar (ainda que de forma inconsciente) a economia da credibilidade no processo penal deve soar como um alerta para todos. A atribuição de credibilidade, dentro de instâncias de adjudicação de responsabilidade, deve ser guiada por uma lógica objetiva  os créditos dados às informações obtidas por meio de atos de fala devem estar bem ajustados às evidências. Só assim poderemos cumprir a máxima da justiça que consiste em "dar aquilo que cada um merece".


[1] FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice. Power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007.

[2] HERDY, Rachel. The Epistemic Dependence of Judicial Decision-Makers. In: TAEKEMA, Sanne et al. Facts and Norms in Law: Interdisciplinary Reflections on Legal Method. Northhampton: Edward Elgar, 2016, p. 87.

[3] MEDINA, José. The Relevance of Credibility Excess in a Proportional View of Epistemic Injustice: Differential Epistemic Authority and the Social Imaginary. Social Epistemology: A Journal of knowledge, v. 25, n. 1, pp. 15-35, 2011, p. 20.

[4] LACKEY, Jennifer. Credibility and the Distribution of Epistemic Goods. In: McCain K. (eds) Believing in Accordance with the Evidence. Synthese Library (Studies in Epistemology, Logic, Methodology, and Philosophy of Science), vol 398, p. 159.

[5] LACKEY, Jennifer. False Confessions and testimonial injustice, Journal of Criminal Law and Criminology, v.110, n.1, 2020. Lackey analisa individualmente os motivos diversos que têm levado a um grande número de confissões falsas nos EUA.

Autores

  • Brave

    é correspondente da revista Consultor Jurídico no Rio de Janeiro e mestrando no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Brave

    é defensora pública federal e doutoranda no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Brave

    é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!