Opinião

A necessidade de compensação dos presos por penas abusivas

Autor

  • Matheus Borges Kauss Vellasco

    é advogado sócio do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados especialista em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela Universidade Castilla-La Mancha na Espanha e mestrando em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj).

19 de agosto de 2021, 6h37

O quadro de violação massiva de direitos fundamentais que ocorre em diversos estabelecimentos prisionais no Brasil é de conhecimento público, sendo, inclusive, reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal [1]. Com efeito, a questão penitenciária brasileira já foi pauta em algumas oportunidades no âmbito da Corte Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), destacando-se aqui o caso que levou à edição da resolução de 22 de novembro de 2018 [2]

A corte se debruçou sobre a situação do Instituto Penal Plácido de Sá Carvalho (IPPSC), no Rio de Janeiro, identificando problemas como superlotação, considerável número de mortes recentes e precárias condições de detenção[3] [4]. Diante deste quadro [5], entendeu-se que a situação dos custodiados seria "incompatível com as condições mínimas de tratamento dos presos, previstas no direito interno do Estado brasileiro". Assim, a CIDH considerou a possibilidade de que aqueles lá custodiados estariam suportando "um sofrimento jurídico muito maior que o inerente à mera privação de liberdade", de modo que seria justo reduzir o seu tempo de encarceramento como meio de compensação.

Para aferição dessa justa redução, considerou-se especificamente o aspecto da superlotação  de aproximadamente 200%  para chegar à conclusão de que a "inflicção antijurídica" da pena seria, in casu, dobrada, de forma que o tempo de pena deveria ser contado à "razão de dois dias de pena lícita por dia de efetiva privação de liberdade em condições degradantes" [6].

Pois bem. Recentemente, o Superior Tribunal de Justiça julgou o RHC nº 136.961 [7], no qual, em resumo, pleiteava-se que a pena cumprida por uma pessoa custodiada no IPPSC fosse integralmente computada em dobro, nos termos da resolução da CIDH.

Considerando a "eficácia vinculante e direta" da resolução ao Estado brasileiro e apoiando-se nos princípios hermenêuticos que impõem a interpretação das sentenças da CIDH da maneira "mais favorável possível àquele que vê seus direitos violados", o recurso foi provido. A decisão foi objeto do Informativo de Jurisprudência nº 701.

Tratou-se, aqui, da intitulada compensação penal por pena abusiva, já trabalhada pela doutrina e pela jurisprudência nacional e internacional [8] [9] [10].

O questionamento que se coloca, então, é o seguinte: muito embora a Resolução da CIDH trate apenas do IPPSC e a decisão do STJ não possua caráter vinculante, seria possível estender o fundamento utilizado a outros casos? Ou seja, ainda que não haja previsão legal expressa, é juridicamente viável proceder a uma compensação penal pelo cumprimento de penas degradantes em situações relacionadas a outras instituições prisionais?

O primeiro passo para responder a estas indagações é identificar os fundamentos utilizados pela CIDH na resolução. Como visto, adotou-se como premissa fundante as condições degradantes vividas pelas pessoas custodiadas no IPPSC, objetivamente representadas pela superlotação carcerária e demais males que quase automaticamente dela decorrem.

Tais condições impõem um sofrimento antijurídico que extrapola as restrições legalmente inerentes à pena, sendo certo que a necessidade de compensação no cômputo da pena se deu justamente por conta deste excesso.

No ponto, comungamos do entendimento de Zaffaroni e Roig quando defendem que a pena seja mensurada de maneira qualitativa, ou seja, "considerando as variações de qualidade sofridas pela privação de liberdade ou pela pena durante o seu curso" [11] , de modo que "ao traduzir-se (a pena) em um castigo mais gravoso, deve ser objeto de redução compensatória" [12].

Prosseguindo, o segundo passo é verificar se este sofrimento antijurídico excessivo está presente em outros casos. Nesse aspecto, cita-se o parecer elaborado por Juarez Tavares, acostado à ADPF nº 347, que trabalha a diferenciação entre pena ficta e pena real.

A pena ficta constituiria um valor numérico, representado por uma valoração abstrata e discricionária do Poder Legislativo. Sucede que essa pena é idealizada sob a premissa de que seu cumprimento observará as disposições legais e constitucionais pertinentes, o que, tendo em vista a situação degradante do sistema penitenciário nacional, sabidamente não ocorre em diversas unidades prisionais.

A partir de um confronto empírico, então, surge o conceito de pena real, que abrange todas as mazelas do sistema carcerário eventualmente suportadas pela pessoa privada de liberdade  superlotação, estrutura precária etc. Tavares conclui que o reconhecimento da pena real implica "um necessário redimensionamento do valor nominal da pena, ou seja, uma redução proporcional desse valor, de forma a equiparar a aflição ficta à aflição real".

Ilustrando com um exemplo: uma pena de 12 anos cumprida em um estabelecimento adequado impõe um determinado sofrimento ao apenado, considerado justo pela lei. Esse mesmo tempo de pena cumprido em um estabelecimento superlotado, sem condições mínimas de saúde e higiene, imporá um sofrimento muito maior, restringindo direitos em excesso.

Quanto à forma de mensurar esta diferença entre pena ficta e real, ou seja, de fazer essa aferição qualitativa da pena, entende-se que o critério da superlotação é o ponto de partida mais adequado, pois trata-se de aspecto eminentemente objetivo, além de ter sido um dos principais norteadores da decisão da CIDH [13].

A partir desses critérios e considerando os atuais números do sistema carcerário brasileiro [14], nos parece que a ratio da decisão da CIDH, confirmada pelo STJ, pode, em tese, ser replicada a outros casos, especialmente ponderando que se deve interpretar a decisão da corte de maneira a ampliar a concretização de direitos humanos.

Salienta-se, por oportuno, que a análise em apreço deverá ser feita pelo juízo da execução penal, atentando-se às especificidades do caso concreto [15].

De todo modo, malgrado se acredite que essa proposta esteja devidamente amparada em disposições legais e constitucionais, e, portanto, seja imediatamente aplicável, entende-se que a solução mais adequada cabe ao Poder Legislativo, com a devida e urgente instituição de lei sobre o tema.

Por fim, pontua-se que essa proposta de reparação da violação de direitos evidentemente não almeja o descarte das políticas que intentam melhorar o sistema carcerário e prevenir que tais violações ocorram. Todavia, é necessário encarar a questão de maneira realista, compreendendo que, ao menos em um curto prazo, esse cenário degradante de cumprimento de penas não aparenta estar próximo do fim, de modo que, além das medidas preventivas, é imprescindível que haja medidas compensatórias.

 


[1] O STF, nos autos da ADPF nº 347/DF, reconheceu o estado de coisas inconstitucional do sistema penitenciário brasileiro. Outros casos de interesse no âmbito da Suprema Corte: RE nº 592.581/RS; RE nº 841.526/RS; RE nº 641320/RS; RE nº 580.252/MS.

[2] Semelhante resolução foi publicada em relação ao Complexo Penitenciário de Curado, em Pernambuco. https://www.corteidh.or.cr/docs/medidas/curado_se_06_por.pdf

[3] Cinquenta e seis óbitos entre 2016 e o 1º trimestre de 2018.

[4] Segundo Diagnóstico Técnico apresentado pelo próprio Estado e mencionado nos pontos 48 e 49 da Resolução, verificou-se que "o IPPSC não dispõe de uma ala separada para pessoas idosas e LGBTI, e que nem todos os presos possuem colchões. Tampouco há suficiente distribuição de uniformes, calçados, roupa de cama e toalhas para o grande número de internos da unidade carcerária." Registrou-se, ainda, "que são insuficientes a incidência do sol e a ventilação cruzada nas celas", "que não há água quente disponível na unidade carcerária" e que não há "um plano de prevenção e combate de incêndios no Instituto". Por fim, nos pontos 51 e 52, identificou-se efetivo funcional aquém do necessário para atendimento das demandas das mais de três mil pessoas custodiadas no IPPSC (apenas nove inspetores por turno), bem como a "necessidade de adequação das instalações elétricas, hidráulicas e sanitárias" e "o risco de incêndio em virtude do cabeamento elétrico exposto", além de outros problemas estruturais.

[5] Concluiu-se que o cenário descrito acarretava as seguintes consequências: "i. atenção médica ínfima, com uma médica a cargo de mais de três mil presos, quando a OMS/OPAS considera que, no mínimo, deve haver 2,5 médicos por 1.000 habitantes para prestar os mais elementares serviços em matéria de saúde à população livre; ii. mortalidade superior à da população livre; iii. carência de informação acerca das causas de morte; iv. falta de espaços dignos para o descanso noturno, com superlotação em dormitórios, verificada in situ; v. insegurança física por falta de previsão de incêndios, em particular com colchões não resistentes ao fogo, verificada in situ; vi. insegurança pessoal e física decorrente da desproporção de pessoal em relação ao número de presos."

[6] Fez-se uma ressalva, contudo, aos acusados de crimes contra a vida, contra a integridade física ou crimes sexuais, que seriam analisados após uma perícia criminológica, nos termos estabelecidos na Resolução.

[7] A tese firmada foi objeto do informativo de jurisprudência nº 701 do STJ.

[8] Sobre o tema, menciona-se o artigo "Compensação Penal por Penas ou Prisões Abusivas", de autoria do ilustre Defensor Público do Estado do Rio de Janeiro, Dr. Rodrigo Duque Estrada Roig, bem como faz-se menção às obras nele referenciadas, especialmente as do ilustre professor Eugênio Raúl Zaffaroni.

[9] Referencia-se, aqui, o voto do Excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso, proferido nos autos do Recurso Extraordinário 580.252/MS.

[10] Casos citados na Resolução da CIDH de 22 de novembro de 2018: Supreme Court of the United States, No. 09–1233, Edmund G. Brown Jr., Governor of California, et al., Appellants Vs. Marciano Plata et al. On Appeal from the United States District Courts for the Eastern District and the Northern; Cfr. Emergenza Carceri. Radici remote e recenti soluzioni normative, Atti del Convegno Teramo, 6 março 2014, a cura di Rosita Del Coco, Luca Marafioti e Nicoa Pisani, Torino, 2014.

[11] ROIG, Rodrigo Duque Estrada. Compensação Penal por penas ou Prisões Abusivas. In: Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 132/2017 | p. 331- 381 | Jun/2017. Pág. 2.

[12] Tradução livre. Trecho original: "al traducirse en un castigo más gravoso, debe ser objeto de reducción compensatoria, e incluso, de cancelación punitiva, ante supuestos de intensa desproporcionalidad y doble punición." Eugenio Raúl. et al. La medida cualitativa de prisión en el processo de ejecución de la pena. Programa de transferencia de resultados de la investigación. Buenos Aires: FD UBA, 2013. Pág. 5.

[13] Como aspectos complementares, o quantitativo de funcionários suficiente para o número de custodiados, o abastecimento da unidade com itens básicos de higiene, fornecimento de vestimentas e alimentação adequada, atendimento médico especializado, condições de trabalho e estudo, dentre outros, poderão ser considerados nesta análise.

[14] Segundo levantamento feito pelo DEPEN entre janeiro e junho de 2020, a população privada de liberdade no Brasil era de 678.506 pessoas, havendo apenas 446.738 vagas disponíveis. https://www.gov.br/depen/pt-br/sisdepen/sisdepen. Acesso em 31/07/2021.

[15] A título de exemplo, menciona-se o voto do Excelentíssimo Ministro Luís Roberto Barroso nos autos do RE nº 580.252, que sugeriu o estabelecimento do patamar máximo à proporção de um dia de remição para cada três dias de cumprimento de pena em condições degradantes e como patamar mínimo a proporção de um dia para cada sete, em analogia, respectivamente, aos patamares de remição previstos para trabalho/estudo e leitura, respectivamente.

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    é advogado, especializado em Direito Penal Econômico e Teoria do Delito pela Universidade Castilla-La Mancha, Espanha, 2019, mestrando em Direito Penal na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) e sócio do escritório Paulo Freitas Ribeiro Advogados Associados.

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