Arbitragem de risco

Renúncia de árbitro e processos colocam compra da Eldorado em questão

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18 de agosto de 2021, 14h16

A renúncia de um dos árbitros da disputa pela compra da produtora de papel e celulose Eldorado coloca mais dúvidas sobre o desfecho do negócio. O árbitro Anderson Schreiber, acusado de parcialidade no julgamento, entregou uma carta de 40 páginas para a Corte Internacional de Arbitragem da Câmara de Comércio Internacional (CCI).

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Compra da Eldorado Celulose por grupo indiano sob suspeita judicial 

Na carta, Schreiber minimiza os fatos, mas, não os nega e abandona o caso. A desistência do árbitro que capitulou é um golpe na estratégia agressiva que o grupo estrangeiro tem adotado no Brasil. E tem reflexos na discussão sobre a legalidade da arbitragem na qual se definiu a continuidade do processo de compra da Eldorado, em questionamento na Justiça.

Em 30 de julho, a 2ª Câmara de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) suspendeu por liminar a transferência de ações da Eldorado, de titularidade da holding brasileira J&F, para o grupo sino-indonésio Paper Excellence (CA Investment), devido a indícios de irregularidade no procedimento arbitral. O TJ-SP suspendeu a compra até o julgamento final do mérito, em andamento na 2ª Vara Empresarial e de Conflitos Relacionados à Arbitragem. Os desembargadores da Câmara Empresarial do TJ-SP concluíram que "há uma nódoa" no procedimento arbitral.

A defesa da J&F questionou a arbitragem apontando, entre outros elementos, o fato de que o árbitro Anderson Schreiber omitiu relações com o escritório Stocche Forbes Advogados, representante da parte vencedora, e que também deixou de revelar outros impedimentos para julgar o caso que tem como parte a J&F. Haverá prazo para produção de novas provas. A primeira instância do Judiciário paulista já havia reconhecido o impedimento.

No TJ-SP, o entendimento dos desembargadores foi de que o "dever de revelar" do árbitro é uma "obrigação objetiva", ou seja, independe de avaliação sobre seu efeito concreto: "Embora o juízo de origem tenha optado, antes, por entender a extensão e a ingerência no desfecho do caso de eventual mácula ao dever de revelação, tendo, por ora, a avaliar que tal obrigação é objetiva, assim como são suas consequências", afirma o acórdão, de relatoria do desembargador Araldo Telles.

Entre os indícios levados em consideração pelo TJ-SP estão o compartilhamento de espaço físico, linhas telefônicas e recepcionista — ou seja, custos — entre Anderson Schreber e o escritório Stocche Forbes. "Não bastasse, há indicativo de que patrocinaram, conjuntamente, demandas judiciais em tramitação quando do início do procedimento arbitral, tendo, em uma delas, por outros sócios, celebrado acordo de rateio de despesas", afirma a decisão do TJ-SP.

O acórdão do Tribunal paulista ressalta que não há intenção de vedar a atuação de advogados como árbitros, mas assegurar que essa atuação se dê de forma transparente. "Apesar de o exercício da advocacia não ser vedado a estes profissionais, o vínculo, ainda que neste âmbito, com patronos de uma das partes do procedimento arbitral, em algum período recente de tempo, geralmente, deve integrar a certidão elaborada pelos julgadores contratados", diz o acórdão.

Segundo a decisão, a legislação e a doutrina deixam claro que os árbitros devem informar circunstâncias possivelmente comprometedoras, como relações e conexão com partes, advogados ou com o objeto da disputa. Afirma ainda que é necessário revelar qualquer fato que sugira ameaça à isenção não só no início do procedimento, mas ao longo de todo o processo, trazendo continuamente ao conhecimento das partes fatos que possam suscitar a mínima dúvida ao jurisdicionado.

O pano de fundo da discussão foi a violação de itens do contrato de compra pela sino-indonésia Paper Excellence. Os brasileiros denunciam a inadimplência na quitação de certos compromissos, em específico, o levantamento de garantias apresentadas em empréstimos do BNDES e outros bancos públicos. Havia um prazo para cumprimento de certas obrigações, que não tendo sido cumprido, extinguiu o contrato.

Após a arbitragem, surgiram outros indícios de irregularidades relacionadas ao processo, como a extrapolação da cláusula arbitral, suspeição do árbitro e evidências de espionagem pelos chineses, de acordo com denúncia levada pela J&F à polícia.

Reprodução/Facebook
Reprodução/FacebookPresidente da Abrig, Guilherme Cunha, Eduardo Bolsonaro e o dono da Paper Excellence, Jackson Widjaja

A Paper Excellence é de propriedade da família sino-indonésia Widjaja, que possui histórico internacional de faltas em obrigações financeiras. Em 2001, a Asia Pulp and Paper (APP), de propriedade da família Widjaja, declarou uma moratória de US$ 14 bilhões, configurando o maior default privado da história de um país em desenvolvimento (EUROMONEY, 2016).

Outro caso foi da mineradora Berau Coal, a qual falhou na quitação de US$ 1 bilhão em títulos administrados pela gestora Argentem Creek Partners, uma dívida em reestruturação desde 2015. Um dos fundos, o Pathfinder, alega que o grupo usa estratégias para alterar os termos de pagamento sem a aprovação de credores. "A APP e seus representantes demonstram um padrão de práticas no passado usando esquemas similares para alijar os credores de seus direitos legais", diz reclamação ajuizada na Suprema Corte do Estado de Nova York (FINANCIAL TIMES, 2019).

No Canadá, uma das unidades operadas pela Paper Excellence, a Northern Pulp, alegou estar "insolvente" à Suprema Corte de British Columbia, suspendendo pagamentos para o fundo de pensão dos empregados e de dívidas de 85 milhões de dólares canadenses com a província de Nova Escócia. Ao mesmo tempo, a mesma Paper Excellence fez uma oferta de quase 4 bilhões de dólares canadenses para adquirir a papeleira Domtar, com 12 fábricas no continente norte-americano, quatro delas no Canadá (Halifax Examiner, 2021).

Ações anulatórias
No Brasil a disputa com a empresa da família Widjaja esbarrou na polêmica quanto à suspeição do árbitro, em um momento no qual o debate sobre o tema está em alta no meio jurídico. Pesquisa feita nas 1ª e 2ª Varas Empresariais da Justiça de São Paulo concluiu que as ações pedindo anulação de procedimentos arbitrais representam 28% dos processos relacionados à arbitragem. Entre os principais temas presentes em ações anulatórias está a suspeição dos árbitros.

A autora do estudo, juíza Andrea Palma, observa que os casos de nulidade por suspeição chamam a atenção para a necessidade de as câmaras arbitrais fazerem uma autocrítica quanto ao tema: "É importante que a autorregularão das câmaras funcione efetivamente, com rigor e isenção" (Palma, 2021). A consultoria Arbipedia, especializada em doutrina e jurisprudência em arbitragem, encontrou em pesquisa um total de 292 decisões de segunda instância em ações anulatórias de arbitragem, proferidas entre 2016 e 2020, das quais 56 (19%) resultaram em anulação. 

Suspeição e corrupção
O seminário "Corrupção, Arbitragem e Compliance", promovido pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUC-RS) em 22 de junho, abordou o tema do compliance e o conflito de interesses nas arbitragens.

Segundo a palestrante Gabriela Wallau, professora da PUC-RS e presidente da Câmara de Arbitragem da Federação de Entidades Empresariais do Rio Grande do Sul (Federasul), ocorrências comprovadas de corrupção são raras, mas o problema se manifesta por "outra régua" nos casos de violação ao "dever de revelar" dos árbitros. As disputas por suspeição tornaram-se tão comuns, diz a professora da PUC-RS, que árbitros pertencentes a grandes bancas têm optado por abrir pequenos escritórios, a fim de contornar questionamentos quanto a conflitos de interesses.

A palestrante citou como um dos casos mais emblemáticos no Brasil um processo envolvendo a espanhola Abengoa Bioenergia e o grupo brasileiro Dedini Agro, julgado no Superior Tribunal de Justiça em 2017, no qual foi rejeitada a homologação de uma sentença arbitral estrangeira proferida em Nova Iorque.

Segundo o voto do relator para o acórdão, ministro João Otávio de Noronha, "o escritório do árbitro presidente teve contatos relevantes com sociedades do grupo Abengoa e com questões de alta importância para o grupo econômico" (Superior Tribunal de Justiça, 2017). Quanto à corrupção de árbitros, a palestrante mencionou um caso envolvendo a construtora Odebrecht no Peru, em delação que levou à prisão 14 árbitros acusados de receber propinas para resolver arbitragens entre a construtora e o Ministério dos Transportes e outras instituições locais, entre 2008 e 2016 (Agência EFE, 2019).

Economia e eficácia
A arbitragem é valorizada no meio empresarial porque oferece uma saída rápida e confiável para conflitos econômicos, porém, segundo analistas, a massificação da arbitragem começou a trazer problemas. O número de árbitros habilitados disponíveis começou a diminuir e novos problemas surgiram, afetando a celeridade e a confiabilidade do processo.

Segundo um executivo de uma grande empresa da área industrial, alguns empresários já evitam usar cláusulas arbitrais por falta de confiança no instituto: "São poucos os árbitros e eles estão atrasando julgamentos. Há muitos casos de decisões tortas. E as ações anulatórias, além de caríssimas, são arriscadas". Um diretor jurídico do ramo imobiliário também afirma já colecionar “restrições, objeções e críticas fundadas às arbitragens”.

Entre advogados, também há quem critique o modelo atual. O especialista Lucas Akel Filgueiras, que atua em conflitos societários, afirma ter visão crítica em relação a condutas como "a atuação de profissionais como árbitros, advogados ou pareceristas em diversos procedimentos ao mesmo tempo ou em curtos períodos, o que pode gerar conflitos de interesses".

Referências

AGÊNCIA EFE. Árbitros que teriam favorecido Odebrecht são presos no Peru. Lima, 5 nov. 2019. https://www.efe.com/efe/brasil/mundo/arbitros-que-teriam-favorecido-odebrecht-no-peru-ser-o-presos-preventivamente/50000243-4103553

EUROMONEY. Asia: The Untouchbles – Indonesina’s Widjajas. 06/06/2016. https://www.euromoney.com/article/b12kp1g5cbcvcb/asia-the-untouchables-indonesias-widjajas

FINANCIAL TIMES. US hedge funds face court battle with Indonesia mining group. 15/04/2019. https://www.ft.com/content/f6eb7558-5f14-11e9-b285-3acd5d43599e

HALIFAX EXAMINER. Paper Excellence’s very big deal. 29/06/2021. https://www.halifaxexaminer.ca/featured/paper-excellences-very-big-deal/

PALMA, Andrea Galhardo. Notas sobre cooperação Judiciário-Arbitragem. Migalhas. 30 mar 2021. https://www.migalhas.com.br/depeso/342640/notas-sobre-cooperacao-judiciario-arbitragem

SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA (STJ). Negada homologação de sentenças americanas que obrigaram brasileiro a pagar US$ 100 milhões. 24 abril 2017. Sentença Estrangeira Contestada (SEC) 9412. https://www.stj.jus.br/sites/portalp/Paginas/Comunicacao/Noticias-antigas/2017/2017-04-24_08-03_Negada-homologacao-de-sentencas-americanas-que-condenaram-empresario-brasileiro-a-pagar-US-100-milhoes.aspx

TRIBUNAL DE JUSTIÇA DE SÃO PAULO (TJ-SP). Agravo de Instrumento nº 2168475-50.2021.8.26.0000. 30/07/2021. https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do?f=1

VEJA. Nova polêmica na briga bilionária entre J&F e indonésios: árbitro renuncia. 15/08/2021. https://veja.abril.com.br/blog/radar-economico/nova-polemica-na-briga-bilionaria-entre-jf-e-indonesios-arbitro-renuncia/

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