Opinião

A nova Lei de Licitações e a desconsideração da personalidade jurídica

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16 de agosto de 2021, 15h02

Após quase 28 anos da vigência da Lei n° 8.666/93, foi publicada a nova Lei de Licitações (Lei n° 14.133, de 1° de abril de 2021) que trouxe importantes e necessárias inovações e alterações nas licitações e contratações públicas. Algumas inovações, no entanto, geram críticas, dúvidas e causam apreensão entre os entes privados (contratados e licitantes), entre elas, destaca-se a ampliação do rol de pessoas que poderão ser afetadas com a aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica estabelecida no artigo 160 dessa nova lei.

No ordenamento jurídico, não só o Código Civil (artigo 50) trata da desconsideração da personalidade jurídica, mas o Código de Defesa do Consumidor (artigo 28), a Lei de Defesa da Concorrência (artigo 34), a Lei Anticorrupção (artigo 14) e a Lei n° 9.605/98, que dispõe sobre as sanções penais e administrativas por infração ao meio ambiente (artigo 4º). Apesar de não ter previsão legal no âmbito administrativo, a desconsideração da personalidade jurídica vinha sendo aplicada no âmbito dos tribunais de contas e tribunais superiores a partir de uma análise casuística. Tal fato, no entanto, causava aos profissionais do Direito (e aos administrados) insegurança jurídica e a necessidade de seguir a construção doutrinária e jurisprudencial relativa à incidência da desconsideração administrativa da personalidade jurídica.

No âmbito do Tribunal de Contas da União (TCU) [1], por exemplo, a jurisprudência evoluiu pela aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica de entes privados pautados nos seguintes requisitos autorizadores para a sua aplicação: evidência de fraude (especificamente em procedimentos licitatórios) e hipóteses de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial. O Superior Tribunal de Justiça (STJ) [2], por sua vez, considerou como fatos ensejadores da desconsideração da personalidade jurídica o abuso de forma (constituição de uma nova sociedade com o mesmo objeto social, com os mesmos sócios e com o mesmo endereço) e fraude à Lei nº 8.666/1993, pautando-se pela observância dos princípios da moralidade administrativa e da indisponibilidade do interesse público tutelado, na ausência de previsão normativa específica.

O artigo 160 da nova Lei de Licitações, portanto, inovou ao estabelecer na esfera do Direito Administrativo os pressupostos elementares indispensáveis à aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica e as pessoas que poderão ser por ela afetadas.

A primeira parte do referido dispositivo legal estabelece os pressupostos autorizadores para a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica, que são evidência de abuso de direito para: 1) facilitar, encobrir ou dissimular a prática dos atos ilícitos previstos nesta lei; ou 2) provocar confusão patrimonial. Até aí não se observam novidades ou inovações, já que corresponde a uma reprodução idêntica do quanto disposto no artigo 14 da Lei Anticorrupção.

Já a segunda parte do artigo 160, que tem sido objeto de grande discussão, estabelece que: "(…) Todos os efeitos das sanções aplicadas à pessoa jurídica serão estendidos aos seus administradores e sócios com poderes de administração, a pessoa jurídica sucessora ou a empresa do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o sancionado, observados, em todos os casos, o contraditório, a ampla defesa e a obrigatoriedade de análise jurídica prévia".

É fato que a própria Lei Anticorrupção já previu uma espécie de desconsideração "automática" da pessoa jurídica ao estabelecer a responsabilidade objetiva e a solidariedade entre as empresas do grupo. E ainda que se possa dizer que essa mesma lei também previu a possível extensão das demais sanções (como declaração de inidoneidade e proibição de contratar com o ente público), essa possibilidade é excepcional, conforme se depreende textualmente do artigo 4º, §1º, nos termos do texto da lei, ao limitar a sucessão às obrigações de natureza pecuniária (isto é, multa e reparação de dano), "exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados".

Diferentemente da Lei Anticorrupção, contudo, a nova Lei de Licitação não limitou, a princípio, a responsabilidade da pessoa jurídica sucessora somente às obrigações de natureza pecuniária, e tampouco fez referência ao limite do patrimônio transferido, como ocorreu com no artigo 4, §1º, daquela lei [3]. Sendo assim, pelo texto da nova Lei de Licitações, a priori, a empresa sucessora poderia "herdar" não somente as obrigações de natureza pecuniária, como também as sanções de impedimento de contratar e licitar e declaração de inidoneidade que foram aplicadas à empresa sucedida — bastando, para tanto, que exista contraditório e "análise jurídica prévia".  

Além disso, o artigo 160, ao prever que a extensão das sanções poderá se dar contra os administradores e os sócios "com poderes de administração" da pessoa jurídica licitante ou contratada, não limitou a sanção aos administradores e sócios que efetivamente contribuíram para a prática do ato caracterizador de abuso de direito. Ou seja, o legislador optou por um critério meramente formal, genérico, o que significa que todo e qualquer sócio ou administrador (com poderes de administração), sem qualquer critério específico, poderia, em tese, sofrer os efeitos de uma possível decisão de desconsideração da personalidade jurídica.

É evidente, portanto, que a nova Lei de Licitação ampliou demasiadamente o rol de pessoas (físicas e jurídicas) que poderão ser afetadas em caso de aplicação da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, e sem trazer critérios suficientemente claros (e restritos, como deveriam ser) para a extensão de sanções tão gravosas. Vale dizer, os efeitos das sanções administrativas que antes ficavam adstritos à(s) entidade(s) diretamente relacionada(s) à comprovada fraude, como a declaração de inidoneidade e impedimento de licitar e contratar com a Administração Pública, podem, por essa lei, se estender a outras pessoas jurídicas, sucessoras ou do mesmo ramo com relação de coligação ou controle, de fato ou de direito, com o ente sancionado.

É preciso reconhecer que a parte final do artigo 160 faz referência expressa à possibilidade de desconsideração somente mediante observância ao contraditório, à ampla defesa e a obrigatoriedade de "análise jurídica prévia" (que, muito embora não tenha sido detalhado na nova lei, entende-se que consistiria em um parecer jurídico do órgão competente). No entanto, a amplitude do referido dispositivo legal causa preocupações e críticas, por aumentar a insegurança jurídica sobre sua aplicação, ao menos enquanto não houver jurisprudência razoavelmente sedimentada a respeito da aplicação desse dispositivo. A teoria da desconsideração da personalidade jurídica foi criada visando a coibir abusos e injustiças na utilização da pessoa jurídica, configurando, todavia, prática excepcional. Não é razoável estabelecer como regra — e não exceção — a extensão de sanções graves a pessoas jurídicas que não tenham contribuído para a prática de qualquer ilícito ou que não tenham se beneficiado direta ou indiretamente desse ilícito. Decisões nesse sentido seriam abusivas, na medida em que violariam os princípios da intranscendência das sanções administrativas e das medidas restritivas de ordem jurídica — além de violar o direito à livre iniciativa de pessoas físicas e jurídicas autônomas e distintas da empresa condenada e dos seus respectivos sócios e administradores.

Além disso, efeitos do artigo 160 podem impactar operações de M&A, na medida em que o risco da aplicação de sanções graves pode contribuir para a decisão de não conclusão de eventual operação societária. Um procedimento de auditoria detalhado e cauteloso se torna ainda mais relevante no âmbito dessas operações. Além disso, é recomendável que empresas com relação de coligação ou controle — do mesmo ramo — estabeleçam ou implementem mecanismos preventivos de governança e integridade sobre as demais, em especial aquelas que participam de licitações públicas e contratam com a administração.

Espera-se que a leitura do artigo 160 da nova Lei de Licitações seja feita em cotejo com os demais diplomas legislativos que tratam do tema, visando a aumentar a efetividade do enforcement estatal nas situações de comprovada fraude, mas sem esquecer que a desconsideração constituiu medida excepcional e, como tal, deve observar critérios claros, interpretados de maneira restritiva, sob pena de se penalizar indevidamente terceiros adquirentes de boa-fé.


[1] Decisão 914/2004-TCU-Plenário; Acórdão 976/2004-TCU-Plenário; Acórdão 873/2007-TCU-Plenário, Acórdão 928/2008-TCU-Plenário.

[2] RMS 15.166/BA, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 07/08/2003, DJ 08/09/2003, p. 262.

[3] Nos termos do artigo 4o, §1º da Lei 12.846: "Nas hipóteses de fusão e incorporação, a responsabilidade da sucessora será restrita à obrigação de pagamento de multa e reparação integral do dano causado, até o limite do patrimônio transferido, não lhe sendo aplicáveis as demais sanções previstas nesta Lei decorrentes de atos e fatos ocorridos antes da data da fusão ou incorporação, exceto no caso de simulação ou evidente intuito de fraude, devidamente comprovados".

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