Direito civil atual

Tributo a Orlando Gomes, o cronista

Autor

  • Rodrigo Moraes

    é advogado e procurador do município do Salvador professor adjunto de Direito Civil da Faculdade de Direito da UFBA atual presidente do Conselho Cultural da Fundação Orlando Gomes e organizador da obra "Orlando Gomes o cronista" (Ed. Edufba).

16 de agosto de 2021, 16h16

Dizia-se antigamente no Brasil: "Jornal velho só serve para enrolar peixe". Atualmente, amantes de fake news  que odeiam a liberdade de imprensa  alardeiam que "jornal novo só serve para enrolar gente".

ConJur
Jornal velho não servia (e não serve) apenas para enrolar peixe. A obra "Orlando Gomes, o cronista" (Edufba, 2021), que reúne 140 crônicas do jurista baiano Orlando Gomes (1909-1988) e será lançada no próximo dia 30, é fruto de jornais velhos, que são, induvidosamente, fontes preciosas de pesquisa histórica.

Nem tampouco jornal novo serve apenas para engabelar pessoas. Tem, sim, outras serventias. Jornal pode informar, instruir, divertir, emocionar, criticar, denunciar. Ele é capaz de ajudar o leitor a refletir e discernir sobre os mais variados temas.

Nesta era da pós-verdade, o jornal (em formato físico ou digital) continua desempenhando um papel importantíssimo na democracia. Nossa Constituição Federal de 1988  ano em que faleceu Orlando Gomes  garante, como direito fundamental, o direito de ser informado, o direito a uma informação verdadeira.

Orlando Gomes foi um renomado jurista. Isso é indiscutível, incontestável. Na minha opinião (que não é de forma alguma isolada), ele foi o maior civilista brasileiro do século 20. A nova geração de civilistas brasileiros, felizmente, ainda cultua a vasta obra de Orlando Gomes, que continua sendo estudada e citada em diversas monografias, dissertações, teses, manuais e acórdãos dos tribunais superiores.

Orlando Gomes foi também um exímio cronista. Um leitor assíduo de jornais. Sempre atento ao que estava acontecendo  em Salvador, na Bahia, no Brasil, no mundo , relatou, através da imprensa, eventos históricos e fatos cotidianos. Sempre foi um observador atento das transformações sociais, políticas e tecnológicas. E nunca se comportou impermeável ou indiferente à mudança dos tempos.

A conversa amena do cronista Orlando não significa que ela não seja relevante. Nas suas crônicas, o uso da primeira pessoa do singular não visava a um ensimesmamento, mas a criar uma familiaridade com o leitor, mostrando-lhe uma visão pessoal de fatos cotidianos. Orlando Gomes, como todo grande autor, gostava de ser lido. Ao percorrer as suas crônicas, o leitor certamente terá experiências interessantíssimas.

A palavra crônica, etimologicamente, vem do grego chronos, que significa tempo. As crônicas de Orlando Gomes são frutos de seu tempo, foram escritas para o momento. Pela qualidade, porém, continuam ecoando. Assim foi Orlando Gomes: longevo e vocacionado para a perenidade, até mesmo quando, na condição de despretensioso cronista, quis ser efêmero e passageiro. Os textos aqui reunidos transcendem as edições jornalísticas e, ainda nos dias atuais, nos brindam com o refinamento e o estilo inconfundíveis do seu autor.

Suas crônicas  assim como suas obras jurídicas  eram escritas à mão, com aquela sua letra elegante, que pode ser apreciada numa visita à Fundação Orlando Gomes, situada ao lado da Faculdade de Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA)  Rua da Graça, s/n, Graça, Salvador, Bahia. As crônicas manuscritas eram entregues à redação da empresa jornalística, que as publicava semanalmente. Não havia e-mail naquela época, jovem leitor.

Esse método analógico e obsoleto para o atual mundo tecnológico não significa que o conteúdo dos relatos publicados não mereça mais ser lido. Ao revés. Possui inescondível interesse histórico. E mais: elegância no estilo, concisão na forma. Orlando dissera, no prefácio do seu livro de contratos, que "a clareza tem o defeito de fazer parecer superficial". Orlando, quando escrevia, sempre foi claro e profundo, até porque tinha plena consciência de que, para alcançar profundidade, não é necessário ser obscuro, prolixo, enfadonho. Seu texto é refinado, enxuto, despido de empáfia e pedantismo academicista. Assim dissera J. J. Calmon de Passos sobre Orlando: "Lê-lo e ouvi-lo, encantam. Nenhum adjetivo é supérfluo. Todos os verbos são expressivos. E os substantivos adequados".

Orlando Gomes tinha um "espírito desempoeirado", como escreveu o jurista português Antunes Varela, no perfil do autor constante na abertura da clássica obra "Introdução ao Direito Civil", de autoria do mestre baiano.

Orlando Gomes não foi ensimesmado. Nunca se encastelou. Não viveu trancafiado em torre de marfim ou confinado nas brumas de teorias jurídicas desconectadas com a realidade, descomprometidas com o mundo real. Não se fechou numa redoma. Nunca quis ser inacessível. Não se considerava membro de uma casta. Ultrapassou as fronteiras do juridiquês. Aliás, foi um grande crítico da ciência jurídica. Tinha uma visão interdisciplinar do mundo e do Direito. Sua biografia revela um perfil multifacetado, com multiplicidade de afazeres e saberes. A palavra bitolamento foi a antítese de sua personalidade.

Orlando Gomes foi um cara antenado, assim eu diria, para esta atual geração de nativos digitais, que cresceu lendo notícias, assistindo a filmes e ouvindo músicas pela internet. Seu estudo do Direito sempre foi na dimensão sociológica. Orlando, por exemplo, defendeu a proteção jurídica dos programas de computador pelo regime do Direito Autoral, antes da primeira lei brasileira de software. Ele sempre foi um observador atento e sensível a tudo o que o rodeava.  

Orlando Gomes nos ensina que todo bom civilista deve ter bons livros de Direito Civil numa mão, e jornais na outra. O estudo deste belíssimo ramo do Direito nunca pode estar desconectado com a realidade fática. Como escrevera José de Oliveira Ascensão, "o Direito Civil regula relações comuns das pessoas comuns". Assim como o Direito Civil é o direito dos comuns, a crônica é o gênero literário dos assuntos comuns, cotidianos, ordinários.

Orlando Gomes escreveu, certa vez, que Nelson Carneiro foi "um senador p’ra frente". Podemos dizer que Orlando Gomes também foi um jurista "pra frente". "Prafrentex", como se diz coloquialmente. O poeta Manoel de Barros escrevera que "o olho vê, a lembrança revê, e a imaginação transvê. É preciso transver o mundo". Orlando Gomes não foi poeta, mas conseguiu, como jurista e cronista, ver, rever e transver o mundo, numa prospecção que até hoje impressiona. Orlando Gomes foi um visionário.

Na condição de diretor da Faculdade de Direito da UFBA, ele construiu a sua sede atual, situada no bairro da Graça. No discurso de inauguração do novo prédio, em 1961, Orlando assim proclamou: "Neste momento entrego a faculdade a seus legítimos usufrutuários  os estudantes de Direito  para que dela desfrutem. Para que a conservem. Para que a engrandeçam".

A Fundação Orlando Gomes tem a honra, com a publicação deste livro, de entregar 140 crônicas do seu saudoso fundador para seus legítimos usufrutuários: os amantes do Direito; os defensores da democracia e da liberdade de expressão; os alunos e professores comprometidos com a universidade pública e de qualidade; os ex-alunos, alunos e futuros alunos da Faculdade de Direito da UFBA; todas as pessoas de bem, que lutam por um Brasil com mais cidadania e menos desigualdade; todos aqueles que zelam, cotidianamente, pelos ideais de justiça e de liberdade.

Que os brasileiros, em geral, leiam essa obra e se interessem em conhecer melhor a vida de Orlando Gomes. Infelizmente, há baianos que só conhecem o mestre de "ouvi falar". E não poucos, quando ouvem falar em Orlando Gomes, limitam-se a pensar na Avenida Orlando Gomes, que liga a Avenida Luís Viana Filho (paralela) à Avenida Otávio Mangabeira (Piatã). A desinformação, aqui, é crônica. O nome Avenida Orlando Gomes foi uma digna homenagem ao jurista baiano, feita pelo então prefeito da cidade do Salvador, professor Edvaldo Brito, seu discípulo.

Orlando Gomes não nos liga apenas da paralela a Piatã. Ele nos conecta com o saber, a cultura, o Direito, a cidadania. Esse livro não deixa de ser uma Avenida Orlando Gomes literária, que nos conduz ao pensamento de um dos mais ilustres filhos da Bahia. Em suas crônicas, ele contribuiu (e continua contribuindo), de maneira inconteste, para a nossa formação jurídica, política e cultural.

No seu emocionante e contundente discurso Sans Adieu, em 1987, na celebração dos seus 50 anos ininterruptos de cátedra, assim conclamou Orlando: "E agora deixo de lado o protocolo para lhes dizer: vocês enfeitaram com um raio de sol o outono da vida do velho mestre, mas não, por favor não me digam adeus!".

Esse livro é mais uma prova de que Orlando Gomes, o maior civilista do Brasil, não foi (e não será) esquecido. A Bahia e o Brasil não lhe dizem (e não lhe dirão) adeus. Orlando continua indispensável, presente e ensinando. Orlando vive.

Como dissera, no texto de apresentação da obra, Márcio Gomes, atual presidente da Fundação Orlando Gomes e filho do saudoso mestre, "a fonte de inspiração de OG para escrever sobre temas tão diferentes, com tanta sensibilidade e sem ficção, foi a experiência de uma vida vivida com intensidade e perspicácia, memória e seleção, lendo diariamente, logo pela manhã, em seu gabinete, o jornal que lhe era levado com um garrafa térmica com café preto. Também com a sensibilidade de uma trajetória vigorosa desde a juventude, pôde escrever crônicas em textos curtos, com pitadas de humor, crítica e ironia, sempre abordando o cotidiano da vida, costumes e acontecimentos do tempo e lugar da sua Bahia, com liberdade na forma e conteúdo, através de uma linguagem despretensiosa e leve, tudo retratado com poesia e sensibilidade, buscando entreter o leitor a permitir que veja, e sinta, o mundo através de seus olhos".

Otavio Luiz Rodrigues Jr., no prefácio à obra, consignou que "o livro permitirá o conhecimento sobre uma face não-jurídica de Orlando Gomes, ignorada por muitos que o admiram. Servirá de material de pesquisa sobre as codificações, o ensino jurídico e as carreiras universitárias no Brasil dos anos 1960-1980. Concederá momentos de agradável leitura sobre temas tão atuais hoje quanto o foram há mais de quatro décadas". Afirmou, ainda, que "Orlando Gomes, nas páginas seguintes, apresentar-se-á por inteiro. Seu caráter, as mágoas e aquele sentimento de indignação ante o triunfo de algumas nulidades, o pai, o torcedor, o analista político informal, enfim, o baiano do século XX que ele foi convida o leitor a acompanhar seus passos e a enxergar um mundo (que não está totalmente desaparecido) sob suas lentes. É um convite irrecusável".

A obra "Orlando Gomes, o cronista", que possui 599 páginas, reúne crônicas sobre diversos temas, tais como: o ofício de escrever crônicas; Bahia, baianos e baianidade; Brasil; esportes e futebol; juventude; censura prévia; centenário da abolição da escravidão no Brasil; advogados e advocacia; aposentadoria; codificação civil; desenvolvimento e desigualdades regionais; drogas e violência; educação e ensino jurídico; tecnologia; concurso público para a escolha de professores de Direito; preconceito contra as mulheres; família e Direito de Família; Poder Judiciário e magistratura; médicos e Medicina; política e democracia; Código de Processo Civil (CPC) de 1972; eutanásia e ortotanásia. Vê-se, portanto, quão vasto é o repertório dessa coletânea de crônicas.

Enfim, a live que lançará a obra, no canal do YouTube da Fundação Orlando Gomes, no dia 30, às 19h, será aberta pelo reitor da UFBA, João Carlos Salles, com saudações do diretor da Faculdade de Direito da UFBA, Júlio Rocha, do presidente da Fundação Orlando Gomes, Márcio Gomes, e do professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP) Otavio Luiz Rodrigues Jr. Haverá ainda um bate-papo com professores de Direito Civil da FDUFBA sobre as crônicas e uma palestra de encerramento com o professor emérito da Universidade Federal da Bahia, Edvaldo Brito, sobre a importância do jurista baiano para o Direito. O livro estará disponível para venda pelo site da editora.

Esta coluna é produzida pelos membros e convidados da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo (USP, Humboldt-Berlim, Coimbra, Lisboa, Porto, Roma II-Tor Vergata, Girona, UFMG, UFPR, UFRGS, UFSC, UFPE, UFF, UFC, UFMT, UFBA, UFRJ e UFAM).

Autores

  • Brave

    é professor de Direito Civil, Direito Autoral e Propriedade Industrial da Faculdade de Direito da UFBA e membro da Rede de Pesquisa de Direito Civil Contemporâneo

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!