Opinião

Os copyright trolls e o sistema de peer-to-peer no Brasil

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15 de agosto de 2021, 13h10

Há décadas, diversos setores da economia são drasticamente afetados pela realização de cópias não autorizadas de produtos devidamente registrados, comercializados a preços infinitamente mais baratos, como no caso da falsificação, afetando diretamente os produtores de conteúdo de filmes, seriados e músicas, entre outros players do mercado.

Ao mesmo tempo, vivenciamos nas últimas décadas uma evolução absurdamente rápida dos meios tecnológicos. Entre eles, os serviços conhecidos como peer-to-peer (P2P — em tradução livre, pessoa a pessoa), que cresceram de forma exponencial. Os serviços de P2P funcionam através da internet, na qual os usuários não só realizam o download disponibilizado por outros usuários, como também passam a disponibilizar o arquivo para que outros também o façam. Automaticamente, a pessoa passa de usuária a servidora do serviço, facilitando  e muito  a disseminação da atividade de compartilhamento de conteúdo pirateado.

Por óbvio, essas empresas que têm seus direitos autorais violados podem seguir em busca de soluções (sejam judiciais ou não) para que terceiros cessem essas atividades de distribuição de conteúdo não autorizado. Entretanto, o que se discute atualmente é o limite entre a proibição de qualquer reprodução integral ou parcial da obra e o download de um filme efetuado no conforto do lar de um usuário que não pretende auferir qualquer tipo de lucro com este ato. Debate-se ainda até onde os detentores destes direitos autorais podem ir em busca de sanção para o que consideram violado.

Nesse contexto, o artifício dos copyright trolls vem sendo utilizado por diversas empresas. Esse tipo de prática, já existente ao redor do mundo, e principalmente nos Estados Unidos da América e na Alemanha, há alguns anos, consiste na atuação de empresas/agentes que enviam notificações extrajudiciais (muitas vezes contendo ameaças de ação judicial) acusando o notificado de violação de direitos autorais em decorrência de compartilhamento de conteúdo não autorizado. Muitas vezes esses agentes que notificam são pessoas ou empresas oportunistas que não possuem qualquer relação com o titular dos direitos autorais do objeto da notificação.

Em resumo, segundo Sag e Haskell (2018), em seu artigo, o trabalho deste tipo de agente se baseia em: 1) monitorar o compartilhamento online e coletar evidências de possíveis infrações; 2) registrar infração de direitos autorais por indivíduos não identificados, uma vez que se sabe somente seus endereços de internet protocol (IP); 3) buscar uma ordem judicial para obrigar ao provedor de internet as informações referentes aos IPs reclamados; 4) contatar os detentores dessa conta e ameaçá-los com ações indenizatórias de valores altos, mas oferecendo acordos por valores mais baixos; 5) realizar tantos acordos quanto possível e abandonar os demais; e 6) repetir.

Dessa forma, esses agentes trabalham pressionando possíveis infratores de direitos autorais de terceiros, com bases em ameaças de litígios, chegando a auferir enorme recompensa financeira através de acordos realizados por cidadãos psicologicamente intimidados. Em suma, a única preocupação dos copyrights trolls é a busca pelo dinheiro através de ameaças de processo judicial, ou outras atitudes particularmente agressivas, muitas vezes mesmo que sem qualquer embasamento jurídico para tal.

O primeiro caso conhecido como copyright troll ocorreu no ano de 1842, quando Harry Wall criou, na Inglaterra, o "The Author’s Copyright Protection Office" (em tradução livre: "O Escritório de Proteção de Direitos Autorais do Autor"), por meio do qual arrecadava taxas de reproduções não autorizadas, em razão de ameaças feitas com base na legislação vigente à época conforme apresentado por Boutsikaris.

Apesar de essa prática não ter surgido recentemente, é nítido que esse tipo de atuação ganhou mais espaço como um modelo de negócios lucrativo em razão do  desenvolvimento da tecnologia. Dessa forma, tornou-se muito mais simples que, mesmo sem possuir qualquer direito sobre uma obra, uma empresa/pessoa identifique a realização de downloads de obras audiovisuais (por exemplo), e contate o(s) titular(es) de seus direitos autorais, oferecendo seus serviços para que essas violações cessem. Resta nítido, portanto, a ascensão desse tipo de prática, e que, assim como qualquer outra tendência mundial, não tardaria muito para que chegasse ao Brasil.

A Lei de Direitos Autorais brasileira (Lei nº 9.610/98) determina, em seu artigo 28, que "cabe ao autor o direito exclusivo de utilizar, fruir e dispor da obra literária, artística ou científica". Do mesmo modo, o artigo 5º, inciso XXVII, da Constituição Brasileira de 1988 tutela o direito de exclusividade dos autores na utilização, publicação ou reprodução de suas obras. Ademais, o Brasil é signatário de diversos tratados internacionais que abordam o assunto, como a Convenção de Berna e Convenção de Genebra, entre outros.

O artigo 7º da Lei nº 9.610/98 prevê que algumas obras são passíveis de proteção, tais como os textos de obras literárias, artísticas ou científicas, obras fotográficas, composições musicais, as obras de desenho, pintura, gravura, escultura, entre outras.

Entre as categorias de obras que se enquadram sob a égide dos direitos autorais é possível encontrar as audiovisuais e cinematográficas. Dessa forma, caberia somente aos titulares dos direitos autorais de filmes, seriados e qualquer outro tipo de obra audiovisual e/ou terceiros autorizados a sua disponibilização, em conformidade com o que determina o artigo 28 da Lei nº 9.610/98.

Contudo, como apontado anteriormente, a internet auxiliou cabalmente a disseminação de informações na internet, incluindo produtos que antigamente só eram possíveis de ser acessados por meio físico (CD, DVD, fitas etc.), surgindo, portanto, a pirataria digital.

Segundo Van Der Sar (2014), do TorrentFreak, no ano de 2014, o Brasil foi o quarto país no mundo a realizar o maior número de downloads de filmes e séries, atrás apenas de Rússia, Estados Unidos e Itália. Ainda, um estudo realizado pela Universidade de Amsterdã em 2018 revela que 99% dos brasileiros usuários de internet consumiram conteúdo pirata através de canais legais.

No ano de 2020 esses números aumentaram significativamente, tendo em vista as medidas de isolamento adotadas pelos governos ao redor do mundo como consequência da pandemia do novo coronavírus. Segundo estudos da Muso (2020), empresa especializada em pirataria digital, o consumo de séries e filmes de forma ilegal chegou a até 70% em alguns países.

Demartini (2020), do Canaltech, menciona que no segundo semestre de ano passado alguns usuários de serviços P2P teriam recebido uma notificação extrajudicial enviada por um escritório brasileiro especializado em propriedade intelectual a respeito de possíveis downloads realizados sob a referida modalidade, e propondo a realização de um acordo, mediante o pagamento de R$ 3 mil, para evitar a judicialização do assunto. Assim, os dados dos supostos infratores foram fornecidos após o ajuizamento de uma ação de produção antecipada de provas pela empresa notificante contra uma empresa de telefonia e provedora de internet. Após obtenção dos referidos dados, notificaram os possíveis usuários, alegando possuírem o direito exclusivo de disponibilizar a obra intelectual e que através de um programa de combate à pirataria teriam identificado que o IP daquela residência teria disponibilizado, via Torrent, a obra intelectual em comento.

Vejamos que, conforme explicado anteriormente, qualquer usuário das plataformas P2P, a partir do momento que efetua download de um arquivo, também vira hospedeiro e o disponibiliza automaticamente para outros usuários sem auferir qualquer contrapartida econômica.

Nesse contexto, importante destacar que o Código Penal estipula em seu artigo 184 como crime, passível de detenção de três meses a um ano, ou multa, "violar direitos de autor e os que lhe são conexos". Segundo o §1º do mesmo artigo, esta pena poderá ser de dois a quatro anos em casos que existir:

"(…) Reprodução total ou parcial, com intuito de lucro direto ou indireto, por qualquer meio ou processo, de obra intelectual, interpretação, execução ou fonograma, sem autorização expressa do autor, do artista intérprete ou executante, do produtor, conforme o caso, ou de quem o represente".

Uma nota conjunta, divulgada em 4 de janeiro deste ano e assinada por Coalizão Direitos na Rede, Creative Commons Brasil, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Grupo de Estudos em Direito Autoral e Industrial UFPR (Gedai), Grupo de Estudos e Pesquisas em Direito Digital e Direitos Culturais da Ufersa (DigiCult) e Instituto de Pesquisa em Direito e Tecnologia do Recife (IP.rec) ressalta o que chamam de fundamentos duvidosos dessas notificações, além de afirmarem que esse tipo de ação não é efetiva, bem como não há qualquer base jurídica e técnica para um processo.

Conclui-se, portanto, pela necessidade de uma melhor e mais atual legislação em respeito às novas tecnologias, seus usos e formas de compartilhamento. Sem dúvidas, esses ataques passaram a ocorrer com mais frequência em decorrência de uma estrutura normativa que merece certa atualização.

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