Embargos Culturais

A história da codificação do Direito, de Fábio Siebeneichler de Andrade

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

15 de agosto de 2021, 8h00

Em "Da codificação, crônica de um conceito"[1] o autor, Fábio Siebeneichler de Andrade, sugere pistas para a identificação das motivações políticas, filosóficas e instrumentais que orientam os processos de codificação do direito. Entende-se, na leitura desse belíssimo livro, que do ponto de vista político a codificação atende a projetos de centralização. Além do que, do ponto de vista filosófico, a codificação pretenderia demonstrar que o direito positivo seria uma construção normativa dos valores do direito natural. O código, nesse sentido, seria o direito natural legislado. E ainda, instrumentalmente, a codificação seria indício de segurança jurídica e de certeza na aplicação do direito.

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O autor sustenta esse argumento seccionando o livro em três partes. Discorre sobre os processos históricos de codificação, em seguida avalia uma suposta crise dos códigos, em forma do argumento da descodificação, concluindo com prognósticos sobre o futuro da codificação. Acredita nos códigos. Explicita a origem da expressão. O codex remete-nos a uma tabuleta de madeira, mais tarde untada com cera, na qual se escrevia. Agrupados, tinha-se formato que nos lembra o livro atual, em contraposição ao volume, no qual as anotações eram dispostas em forma de rolo. Textos normativos eram registrados em um codex, e a expressão então designou essa forma de fixar a norma jurídica.

O código, como concebido contemporaneamente, é documento jurídico no qual há planejamento lógico e agrupamento sistêmico, no argumento do autor. Nesse sentido, fora de propósito entendermos o Código de Hamurábi, a Lei das 12 Tabuas ou qualquer outro documento normativo antigo como código, ainda que o façamos por força de tradição de registro literário. Na concepção contemporânea de código, associada a padrões do iluminismo, tem-se mecanismo de enfrentamento do problema da dispersão das fontes do direito. O código pretende apreender uma totalidade temática, disciplinando-a como sistema. Permite a busca da coerência do ordenamento jurídico, fulminando lacunas e resolvendo antinomias. O código, basicamente, facilita o acesso às normas. É fórmula para a obtenção da unidade e da segurança do direito.

No argumento do autor, o código decorre de um planejamento lógico e de um agrupamento sistêmico. É construído mediante um método geométrico e dedutivo, no qual os artigos são expostos como teoremas vitais. Em uma perspectiva histórica, o código é agente da estatização do direito privado, afirmando poder político, que se revela como seu garantidor de aplicação. Realiza-se o plano político de Rousseau, para quem há uma primazia da fonte legislativa sobre a autoridade tradicional.

Fábio Siebeneichler de Andrade retoma a tradição do direito romano, imprescindível para que entendamos a dinâmica conceitual de um código, ainda que não se possa falar com certeza da codificação do direito antigo, incluído o Código de Justiniano. Esse último figura como método, a exemplo das Institutas e das divisões propostas, especialmente em direito natural, das gentes e civil, a par de pessoas, coisas e ações.  O autor explora a tradição medieval dos glosadores e dos comentadores, que fixaram um método de estudo. É o mos italicum, que remonta a Bártolo de Sasoferrato e aos juristas eruditos da Escola de Bolonha. Há também reflexões em torno do jusnaturalismo racionalista e à compreensão dos fatores políticos da codificação.

O autor centra o livro nas grandes codificações europeias, especialmente quanto ao papel de Napoleão n contexto da redação de seu código. Informa-se que Napoleão participou das sessões nas quais os textos eram discutidos, intervindo 84 vezes, quando usou da palavra e argumentou, especialmente no tema do divórcio. Há explicações quanto à famosa polêmica Savigny contra Thibaut, relativa à necessidade de redação de um código civil para a Alemanha. Essa polêmica configura-se como um dos momentos mais tensos na construção do direito alemão no século 19, projetando-se seus efeitos para debates em outros países, até cotidianamente. Essa disputa revelou tensão entre o racionalismo iluminista e o historicismo que marcou o romantismo alemão, traduzida por dissensos que havia em torno do direito romano. Savigny era contrário à codificação. Thibaut a defendia. Venceu esse último, com a promulgação do Código, em 1900.

Fábio Siebeneichler de Andrade trata em seguida da codificação do direito privado no Brasil. Destaca a influência das Ordenações, retoma o artigo 179, XVIII, da Constituição de 1824 (que determinava a confecção de um código civil), lembra o esforço de Teixeira de Freitas (e sua Consolidação), bem como as atuações de Nabuco de Araújo, de Joaquim Felício dos Santos (Apontamentos), de Coelho Rodrigues, chegando ao projeto de Clóvis Beviláqua e ao subsequente debate entre Rui Barbosa e Barata Ribeiro, limitado a problemas de gramática e de estilo. O leitor pode ampliar o contexto temporal da discussão, com a leitura da História do Novo Código Civil, de Miguel Reale. O autor também sintetiza a história de outras constituições latino-americanas, a exemplo da Argentina e do Chile.

Trata, na parte final, dos processos de descodificação, que revelam a crise dos códigos, cujos temas são capturados pela ascensão do direito público, mais especificamente pela constitucionalização do direito privado. Ao mesmo tempo, desenvolvem-se microssistemas normativos, que na visão do autor expressam instâncias de particularismo jurídico. Defendendo a função harmonizadora dos códigos, Fábio Siebeneichler de Andrade conclui que o modelo — código — representa uma categoria normativa "altamente representativa que por estar associada ao princípio da continuidade sempre estará a (co) ordenar o direito privado".

[1] Essa resenha foi publicada originariamente na Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 24, ano 7, pp. 371-3, São Paulo: RT, julho-setembro 2020.

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