Opinião

Integridade e legitimidade da urna eletrônica no Brasil: um sinal de alerta

Autores

  • Carina Barbosa Gouvêa

    é professora do programa de pós-graduação em Direito mestrado e doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) pós-doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE) doutora e mestre em Direito pela Unesa vice-presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da OAB coordenadora do grupo de estudos e pesquisa Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro vinculado ao PPGD/UFPE e vice-líder do grupo de pesquisa Direito Internacional e Direitos Humanos (UFPE).

  • Kamile Moreira Castro

    é juíza eleitoral ouvidora eleitoral do TRE-CE presidente do Coje doutoranda em Direito pela UFPE mestre em Direito pela Uninove e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa/ISCSP especialista em Direito e Processo Eleitoral pela ESMEC-PUC/MG e especialista em Direito Processual Penal pela Unifor.

14 de agosto de 2021, 17h09

Noções divergentes de segurança com certa regularidade parecem desempenhar um papel fundamental e são contrastadas na saga pioneira do voto eletrônico do Brasil, e com certa constância a fiabilidade e o rigor da utilização das urnas eletrônicas nas eleições brasileiras vêm à discussão pública e quase sempre suscitada pelo debate político e pela proximidade das eleições. As argumentações, em sua maioria, possuem pontos discordantes a depender de posição política ou dos diferentes técnicos. Ponto nuclear que merece fundamental consideração é a sua auditabilidade. Ou seja, a natureza das possíveis garantias quanto à correta apuração dos votos. Essa tendência ganha espectral forma porque tende a favorecer a exigência de que cada urna eletrônica seja configurada para fazer a impressão do registro de cada voto. Em jogo encontra-se a integridade e legitimidade do resultado das eleições.

O regime eleitoral democrático exige um sistema que garanta o direito de voto passivo, ativo, eleições livres, legítimas e justas. As eleições tendem a ser a expressão mais visível da soberania popular e do reconhecimento da legitimidade da governança, além de compor um dos valores centrais da democracia representativa. A competição pluralista constitui a principal diferença entre regimes ditatoriais ou totalitários porque está preocupada com participação e representação popular. Além do eleitorado, os atores mais importantes desse sistema são os partidos políticos e, em menor medida, os políticos individuais representando os mais altos cargos no governo. O que está em questão, é, portanto, a interação entre os eleitores, partidos, elites políticas e parlamentos. Se uma crise infecta o sistema eleitoral democrático ela atinge o coração da democracia.

Importante notar que um dos atributos da participação democrática no sistema eleitoral é proporcionar o acesso mais simples, rápido e célere possível ao ato eleitoral. As dimensões de complexidades que possam envolver à sua participação acabam por deixar de contribuir à sua efetividade, notadamente, naquilo que é considerado o motor principal da democracia representativa. O ato eleitoral, contrariamente ao que muitas vezes é dito, não é simples ato para o cidadão, já que lhe exige um "investimento" intelectual e psicológico importante (Alvarez, 2008; Bernhard Weßels), portanto, aumentar o nível de complexidade de ordem física e prática é absolutamente contraproducente.

O processo eleitoral começa muito antes do dia das eleições que é o culminar de um procedimento complexo, e gigantesco, no caso do Brasil. As tecnologias se expressam como formidavelmente facilitadoras quando se trata de lidar com quantidades de dados muito grandes ou que exigem rapidez (Aranha, 2014). A preparação das eleições e o próprio ato eleitoral no Brasil, portanto, parecem ser talhados para o uso dessas novas tecnologia, dada a sua dimensão territorial.

O processo eleitoral, no entanto, possui particularidades que são capazes de desaconselhar, ou não, o seu emprego. O sufrágio, na democracia brasileira, obedece, antes de tudo, ao artigo 14 da Constituição, que o declara universal por intermédio do voto direto e secreto e, nesse ponto, surge outra hipótese a ser considerada: como manter a segurança, o secretismo do voto, por um lado, e, impedir a adulteração do resultado, por outro. É preciso observar que a integridade eleitoral só pode ser garantida se os eleitores também forem protegidos contra manipulações de origem interna (Rezende, 2004). Se os agentes do sistema puderem favorecer à tal adulteração significa que o primeiro sentido de segurança, um sentido legítimo que se alinha com o espírito da democracia, só pode ser acoplado à supressão do segundo.

O dispositivo eletrônico de votação foi utilizado pela primeira vez em 1996, mas apenas experimentalmente nas grandes cidades. O Brasil realizou seu primeiro pleito totalmente informatizado em 2000. Em sua estrutura, a chamada, popularmente, "urna eletrônica" é um microcomputador de uso específico para as eleições que possuí um determinado algoritmo que opera um certo programa informático. Os dados, manifestando as preferências dos eleitores, são introduzidos por um teclado e armazenados numa memória interna de cada dispositivo sem uso da internet. De acordo com o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), ela somente grava a indicação de que o eleitor já votou. No final da votação, é emitido um resultado total que é comunicado, informaticamente, para uma central e impresso localmente. A esse propósito, a impressora associada a cada urna imprime, no início da votação, um comprovante de que a urna não tem qualquer resultado ou, melhor, voto para candidato ou partido ("urna zerada", "zero voto"  relatório da zerésima) e, ao final, o resultado das votações (boletim de urna — BU). O modelo de urna eletrônica usado no Brasil é o chamado Direct Recording Eletronic Machine (DRE), que guarda os votos unicamente por meios informáticos.

Ao contrário da ideia grandemente difundida, o Brasil não foi o primeiro a usar votação via eletrônica, tampouco desenvolveu a tecnologia associada que é importada. O maior utilizador da urna eletrônica atualmente é a Índia, embora não o faça de maneira exclusiva em suas eleições. Outros países recorrem também a este modo de votação, como os Estados Unidos, sendo que, nesse caso, a decisão pertence aos círculos eleitorais e, portanto, convive com outros métodos de apuração.

Por decisão judicial, por exemplo, depois de acusações dos cidadãos de falta de transparência, a Holanda (atuais Países Baixos) abandonou o método eletrônico, voltando ao sistema de votação em papel em 2007. A Alemanha também deixou a votação eletrônica por imposição da Suprema Corte, que considerou o método pouco transparente para o cidadão comum e impeditivo de que todos fossem capazes de acompanhar cada passo da eleição. Impõe-se realce à posição alemã, já que é uma decisão que gira em torno dos seus princípios democráticos e não tem relação direta com as questões de segurança técnica (Alvarez,2008). Outra questão que merece consideração é que comumente se aventa o motivo próprio da fiabilidade dos resultados e da impermeabilidade à atos fraudulentos das urnas eletrônicas, e acolhe-se, incialmente, o argumento falho de se comparar sistemas de votação eleitoral eletrônico com outros que também exigem grande rigor e inacessibilidade às pessoas não autorizadas. O exemplo maior está nas incontáveis transferências de dinheiro que, em cada minuto, trafegam por canais informáticos, sendo considerados válidos e legítimos. Estas se referem a canais informáticos por onde passam informações confidenciais e secretas conforme o são os tribunais. Essa comparação é viciada porque apenas na votação eleitoral é exigível sigilo para todos, rigorosamente, incluindo os envolvidos no próprio processo, o que não acontece com os outros exemplos.

O voto deve ser secreto, da mesma forma, no sentido de ser anônimo e não identificável por nenhuma parte que componha o sistema eleitoral e o resultado tem que ser publicamente demonstrável, ou melhor, tem de estar presente a hipótese de ser sujeito a accountability em nome da transparência democrática. Não há nenhum sistema comprovadamente 100% seguro e fiável, mas esse é um desiderato que deve ser perseguido.

O sistema brasileiro de votação eletrônica passa por diversos testes de fiabilidade do ponto de vista sistemático (até 20 dias antes das eleições) e aleatório (Tavares, 2011). Como exemplo, citam-se as auditorias do código de programação, os testes públicos de segurança e a votação paralela. De acordo com o artigo 66 da Lei Eleitoral (9.504/97), "os partidos e coligações poderão fiscalizar todas as fases do processo de votação e apuração das eleições e o processamento eletrônico da totalização dos resultados". (V. Resolução TSE 23.603/2019). Até 20 dias antes das eleições, dá-se, em cerimônia pública, logo após verificação minuciosa e finalística, a "assinatura digital com lacração dos sistemas eleitorais".

Parece não ser plausível que uma votação seja 100% digital, receba votos anonimamente e seja publicamente aditável simultaneamente; porém, só o primeiro item é descartável em democracia. A possibilidade de ultrapassar tal situação é possível com o uso das trilhas físicas, este já previsto na lei brasileira, mas suspensa com a medida cautelar ADI 5.889 do Supremo Tribunal Federal, de 16 de setembro de 2020.

Para a credibilidade da democracia são relevantes a inteligibilidade e a simplicidade dos processos. A votação por dispositivo eletrônico atende ao último aspecto com propriedade. Quanto à inteligibilidade (e seguimento) do processo, esta já não parece ser tão linear. Aspectos vinculados à informática só são acessíveis (para lá dos conhecimentos do mero utilizador) a alguns, suscetíveis de carrear dúvidas quanto aos resultados, sobretudo em ambientes políticos polarizados, e aprofundar a descrença em relação a todo o processo democrático.

Outros dois aspectos merecem consideração: a votação via eletrônica tem custos mais elevados do que a votação em papel. Estudos feitos pela Deloitte demonstram que o custo por eleitor quadruplica e a votação eletrônica tem o potencial de aumentar a participação popular, decerto a primeira fase da nova maneira de votar "a distância", em que o eleitor não terá de se deslocar para exercer o direito de voto. O que contribuirá para aumentar a participação eleitoral, numa altura em que essa participação, na maior parte das democracias ocidentais, está a diminuir. Em situações especiais, como as de pandemia ou desastres comunitários ou pessoais outros, o voto a distância também possui relevância.

Escolher um método de votação absoluto é complexo. Todos têm vantagens e desvantagens e a escolha deve ser feita àquele que aferir o maior grau de legitimidade aos resultados das eleições e colidir menos com os valores fundamentais democráticos.

A votação através da urna eletrônica está em processo de evolução e aperfeiçoamento. Os valores democráticos impõem que eles sejam transparentes, com possibilidade de accountability e de correções. A Justiça Eleitoral investe na modernização da urna eletrônica (Vogel, 2011), desenvolvendo, ainda mais, seus componentes físicos (hardware) e seu software. Se busca ainda, acoplar a todo sistema eletrônico de votação um modelo de identificação biométrica, já em fase de expansão. Novas ideias e tecnologias, entretanto, devem ser adotadas.

A relação do Brasil com o voto tem sido acompanhada de transformações diversas, sempre realçando o ímpeto inovador que fez surgir, já no Código Eleitoral de 1932 (artigo 152), a previsão da existência de uma máquina de votar, antes sequer de sua materialização. Não há dúvidas de que o sistema eletrônico de votação fomentou a democracia brasileira, aumentou as taxas de participação, tornou a votação mais eficiente não diminuindo o grau de legitimidade e reforçando seu principal alicerce: a soberania popular.

No sistema democrático, as trocas de governos ocorrem de forma temporal por eleições livres, legítimas e justas e se decantam quando a autoridade política passa de um conjunto de instituições políticas a outra materializando a legitimidade do sistema.

 

Referências bibliográficas
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    é professora do programa de pós-graduação em Direito, mestrado e doutorado da Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), pós-doutora em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Pernambuco (PPGD/UFPE), doutora e mestre em Direito pela Unesa, vice-presidente da Comissão Especial de Bioética e Biodireito do Conselho Federal da OAB, coordenadora do grupo de estudos e pesquisa Teoria da Separação dos Poderes e Crise do Sistema Democrático Brasileiro, vinculado ao PPGD/UFPE, e vice-líder do grupo de pesquisa Direito Internacional e Direitos Humanos (UFPE).

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    é juíza eleitoral, ouvidora eleitoral do TRE-CE, presidente do Coje, doutoranda em Direito pela UFPE, mestre em Direito pela Uninove e mestre em Ciências Políticas pela Universidade de Lisboa/ISCSP, especialista em Direito e Processo Eleitoral pela ESMEC-PUC/MG e especialista em Direito Processual Penal pela Unifor.

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