OBSERVATÓRIO CONSTITUCIONAL

Dilemas entre ações individuais e coletivas: o indivíduo submetido ao coletivo?

Autor

  • Fábio Lima Quintas

    é editor-chefe do Observatório da Jurisdição Constitucional pós-doutor em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra doutor em Direito do Estado pela USP mestre em Direito do Estado pela UnB professor no curso de graduação em Direito no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

14 de agosto de 2021, 8h02

Em abril de 2021, o Supremo Tribunal Federal, encerrando o julgamento do tema 1.075 de repercussão geral, declarou a inconstitucionalidade do art. 16 da Lei da Ação Civil Pública, com a redação que lhe deu a Lei nº 9.494, de 1997, segundo o qual “a sentença coletiva fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator”[1]. Também em abril, o Superior Tribunal de Justiça, em sede de julgamento de recursos repetitivos no âmbito da 2ª Seção, entendeu que as associações civis, quando ajuízam ações coletivas de consumo, podem representar (substituir) toda a coletividade, atuando para além de seus associados[2]. Em 2009, o Superior Tribunal de Justiça entendeu, também em julgamento feito no regime dos recursos repetitivos que, “ajuizada ação coletiva atinente a macro-lide geradora de processos multitudinários, suspendem-se as ações individuais, no aguardo do julgamento da ação coletiva”.

Essas decisões geram em muitos o sentimento de que a ação coletiva constitui hoje veículo privilegiado para o fortalecimento da tutela de direitos. Mas, examinando como esse conjunto de decisões incide nos processos e na prática forense, podemos nos surpreender sobre a complexidade que a análise do tema suscita.

Para ilustrar, cogite-se de uma ação coletiva ajuizada por associação civil em Porto Alegre contra uma empresa, postulando a reparação de todos os consumidores do país, no sentido de que a empresa seja condenada a pagar uma indenização por suposto vício de produto ou serviço que colocou no mercado. No marco normativo vigente (em vista da declaração de inconstitucionalidade do art. 16 da LACP), a abrangência nacional é uma realidade. Em princípio, em vista da decisão do STJ, a associação civil estará a defender o interesse de toda a coletividade. Por força da jurisprudência do STJ já referida, é correto assumir que todas as ações individuais ajuizadas no país por consumidores em face da empresa, discutindo o vício do produto ou do serviço e postulando uma reparação civil, devem ser sobrestadas até que sobrevenha o julgamento da ação coletiva, independentemente do interesse do consumidor.

Tratando especificamente da suspensão dos processos individuais em função da existência de ação coletiva, o estudo do precedente fixado pelo STJ no referido RESP 1.110.549 oferece valiosos elementos de reflexão[3].

Cuidava-se, na origem, de uma ação individual ajuizada por poupador contra instituição financeira pleiteando expurgos inflacionários de caderneta de poupança. Em vista do ajuizamento de ação coletiva pela Defensoria Pública com o mesmo objeto e contra a mesma instituição financeira, o juiz de primeira instância determinou a suspensão da ação individual que tramitava naquele Estado da Federação (a ação coletiva tinha abrangência estadual, à luz do art. 16 da LACP). O autor da ação individual recorreu para o Tribunal de Justiça e, posteriormente, para o STJ, manifestando o seu interesse em dar seguimento à ação individual, desvencilhando-se da ação coletiva, por entender que a suspensão lhe causava prejuízos.

O Relator votou no sentido de que deveria ser mantida a suspensão dos processos individuais até desfecho da ação coletiva, aplicando à espécie o disposto na lei dos recursos repetitivos (que previa, tal como prevê o CPC atual, a possibilidade de sobrestamento de processos em vista de afetação de recurso repetitivo). Esse entendimento, na visão do Ministro, serviria não só à “realização dos direitos dos consumidores”, mas também à “própria viabilização da atividade judiciária”. Por isso, sustentou o Relator que “deve-se interpretar o disposto no art. 81 do Código de Defesa do Consumidor, preservando o direito de ajuizamento da pretensão individual na pendência de ação coletiva, mas suspendendo-se o prosseguimento desses processos individuais, para o aguardo do julgamento de processo de ação coletiva que contenha a mesma macro-lide.”

Em sentido oposto posicionou-se o Desembargador Convocado Honildo Amaral de Mello Castro, que não admitia a aplicação da regra de sobrestamento prevista no regime dos recursos repetitivos no regime das ações coletivas. Para fins de construção de seu raciocínio, o julgador colocou as seguintes questões: teria o titular do direito individual de submeter-se aos interesses de uma ação coletiva? Seria a transmigração do individual ao coletivo de natureza impositiva? A resposta que deu a ambos os questionamentos foi negativa. Conferindo interpretação diversa daquela apresentada pelo Relator à garantia constitucional da inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, inciso XXXV, CF), o Des. Honildo Amaral colocou em primeiro plano o princípio da demanda (art. 2º do CPC1973) e o disposto no art. 104 do CDC, para defender que o sistema jurídico admitiria a convivência autônoma das formas de tutela individual e coletiva, devendo prevalecer aquela sobre essa.

Prevaleceu o entendimento do Relator, fixando-se a tese de que “ajuizada ação coletiva, suspendem-se as ações individuais até o julgamento da ação coletiva”. Esse entendimento também foi assentado no âmbito da Primeira Seção do STJ, no julgamento do RESP 1.353.801 (no regime dos recursos repetitivos)[4] e avalizado pela Corte Especial, quando deixou de conhecer de Embargos de Divergência com fundamento na Súmula 168/STJ[5].

Pode lançar luzes à discussão a experiência estrangeira, não na perspectiva de mimetizar a solução dada por outros ordenamentos jurídicos, mas sim de considerar as motivações e justificações de outras jurisdições para problemas semelhantes, criando um anteparo para o exercício da crítica[6].

De forma distinta tratou da questão o Tribunal de Justiça da União Europeia (Primeira Seção), no acórdão de 14 de abril de 2016[7], que examinou a questão aqui posta à luz da Diretiva 93, de 2013, que impõe aos Estados-Membros o dever de prever meios adequados e eficazes para a tutela de direito dos consumidores. Inicialmente, o TJUE reconheceu a importância das ações coletivas na promoção de um nível elevado de proteção dos consumidores da União Europeia. Mas, confrontado com a interpretação que estava sendo dada pela jurisdição ordinária espanhola de que a tramitação da ação coletiva constituiria uma questão prejudicial à ação individual que conduziria à necessidade de sobrestamento da ação individual (art. 43º do CPC espanhol[8]), o Tribunal entendeu que “uma regra nacional dessa natureza se revela incompleta e insuficiente e não constitui um meio adequado nem eficaz para pôr termo à utilização de cláusulas abusivas”.

Para o TJUE, “a necessidade de garantir a coerência entre as decisões judiciais não pode justificar essa falta de efetividade, dado que […] a diferença de natureza entre a fiscalização jurisdicional exercida no âmbito de uma ação coletiva e a exercida no âmbito de uma ação individual deveria, em princípio, evitar o risco de decisões contraditórias”. Por fim, registrou o TJUE, no que se refere “à necessidade de evitar a saturação dos tribunais”, que “o exercício efetivo dos direitos subjetivos reconhecidos pela Diretiva 93/13 aos consumidores não pode ser posto em causa por considerações associadas à organização judiciária de um Estado-Membro”.

Com essas considerações, concluiu o TJUE que contrariava o direito a uma proteção efetiva prevista na Diretiva 93, de 2013, “uma legislação nacional […] que  impõe ao tribunal nacional chamado a pronunciar-se numa ação individual de um  consumidor […] a suspensão automática dessa ação até ao trânsito em julgado de uma decisão proferida numa ação coletiva pendente, intentada por uma associação de consumidores […],  sem  que  a  pertinência  dessa  suspensão  do ponto  de  vista  da  proteção  do  consumidor  que  recorreu  ao  tribunal  a  título  individual  possa  ser  tida em  consideração  e  sem  que  esse  consumidor  possa  desvincular-se  da  ação  coletiva”.

Em sentido convergente decidiu o Tribunal Constitucional espanhol (TCE), que afastou a possibilidade de suspender as ações individuais firmada em ação coletiva por falta de base legal e em prestígio à autonomia da vontade (STC 209/2016). Defrontou-se o TCE com situação semelhante à que ocorreu no Brasil: um consumidor ajuizou ação individual contra instituição financeira para ver declarada a nulidade de cláusula contratual e para obter ressarcimento. Por haver uma ação coletiva em tramitação ajuizada por uma associação contra a mesma instituição financeira (com o mesmo objeto), a primeira instância acolheu exceção de prejudicialidade para suspender a ação individual até que houvesse julgamento da ação coletiva, ao fundamento de que o ajuizamento da ação coletiva garantia o direito à tutela judicial efetiva do consumidor.

O TCE reconheceu a transcendência constitucional da questão submetida no recurso de amparo do consumidor e, meses depois, julgou o recurso, decidindo que as instâncias ordinárias haviam violado o direito de acesso à jurisdição previsto na Constituição. Na visão do TCE, as ações coletivas não pretendem erigir-se a um mecanismo substitutivo de exercício das ações individuais e não podem suprimir a autonomia da vontade do consumidor.

Examinada a questão com essa visão ampliada e buscando oferecer uma proposta para enfrentamento dessa complexa questão jurídica, talvez tenhamos que fugir de conclusões absolutas.

Colocando sempre em primeiro plano a garantia constitucional do acesso à jurisdição e do devido processo legal (que se projeta para ambas as partes do processo), pode-se cogitar de situações em que o sobrestamento da ação individual (em vista do ajuizamento de uma ação coletiva) seja justificável e em outras que não. Pode-se mostrar indesejável para o sistema jurídico de tutela de direitos, por exemplo, a suspensão da ação individual que traga questões particulares na ação individual (cumulação de pedidos, causa de pedir com nuances) ou no exemplo trazido no início do texto. Por outro lado, pode fazer sentido sobrestar ações individuais quando a ação coletiva esteja em tramitação na segunda instância ou em Tribunal Superior. Igualmente o sobrestamento pode fazer sentido se há uma questão de fato que exige complexa instrução probatória em curso na ação coletiva.

De todo modo, a questão aqui tratada mostra que devemos encarar com ressalvas a percepção muitas vezes generalizada de que a atuação da sociedade organizada por meio das ações coletivas é a expressão mais eficiente e adequada do exercício da cidadania perante o Poder Judiciário para a tutela de direitos individuais, fenômeno esse que Bruno Dantas traduziu como ideologia coletivizante[9].

Sem deixar de reconhecer a enorme contribuição das ações coletivas para o sistema de justiça, devemos evitar presunções e certezas. Devemos estar abertos a ponderações que permitam ver que: i) reforçar o regime das ações coletivas nem sempre implicará fortalecer a tutela de direitos; ii) o interesse coletivo defendido em juízo pelos entes representativos pode não convergir com o interesse dos indivíduos representados; e iii) não cabe criar, aprioristicamente, uma hierarquia e sobreposição entre da tutela coletiva e individual.

Esta coluna é produzida pelos membros do Conselho Editorial do Observatório da Jurisdição Constitucional (OJC), do Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP). Acesse o portal do OJC (www.idp.edu.br/observatorio).

 


[1] Eis a decisão final do Plenário do STF, no julgamento do RE 1.101.937 (Tema 1075 RG): “O Tribunal, por maioria, apreciando o tema 1.075 da repercussão geral, negou provimento aos recursos extraordinários e fixou a seguinte tese: "I – É inconstitucional a redação do art. 16 da Lei 7.347/1985, alterada pela Lei 9.494/1997, sendo repristinada sua redação original. II – Em se tratando de ação civil pública de efeitos nacionais ou regionais, a competência deve observar o art. 93, II, da Lei 8.078/1990 (Código de Defesa do Consumidor). III – Ajuizadas múltiplas ações civis públicas de âmbito nacional ou regional e fixada a competência nos termos do item II, firma-se a prevenção do juízo que primeiro conheceu de uma delas, para o julgamento de todas as demandas conexas".

[2] No julgamento do RESP 1.362.022 e do RESP 1.438.263, a Segunda Seção do STJ fixou a seguinte tese: “Em Ação Civil Pública proposta por associação, na condição de substituta processual de consumidores, possuem legitimidade para a liquidação e execução da sentença todos os beneficiados pela procedência do pedido, independentemente de serem filiados à associação promovente." (DJ 24/5/2021).

[3] Oferece um histórico desse julgamento Clarissa Jahn Sturzbecher, na sua monografia intitulada “Tutela coletiva de direitos individuais homogêneos e direito constitucional à liberdade” (Brasília: IDP, 2017).

[4] REsp 1353801/RS, Rel. Ministro Mauro Campbell Marques, 1ª. Seção, julgado em 14/8/2013, DJe 23/8/2013.

[5] Nesse sentido: AgRg  nos  EAREsp  n.  693.242/PR,  Rel.  Min.  Laurita  Vaz,  Corte Especial,  DJe  26/2/2016; AgRg nos EAREsp 585.756/PR, Rel. Ministro Og Fernandes, Corte Especial, DJe 31/8/2015; AgRg nos EAREsp 647.265/PR, Rel. Ministro Humberto Martins, Corte Especial, DJe 20/11/2015; AgRg nos EAREsp 702.374/PR, Rel. Ministra Maria Thereza de Assis Moura, Corte Especial, DJe 29/10/2015.

[6] Sobre o uso do direito estrangeiro na jurisdição constitucional, vide artigo de André Rufino do Vale, publicado neste espaço em 3/5/2014, intitulado “O argumento comparativo na jurisdição constitucional”: https://www.conjur.com.br/2014-mai-03/observatorio-constitucional-argumento-comparativo-jurisdicao-constitucional  

[8] Eis o teor do art. 43 do CPC espanhol, referido no aludido acórdão do TJUE: “[Q]uando,  para  decidir  o  objeto  do  litígio,  for  necessário  resolver  uma  questão  que,  por  sua  vez, constitui  o  objeto  principal  de  outro  processo  pendente  no  mesmo  tribunal  ou  num  tribunal  diferente, se  não  for  possível  a  apensação  dos  processos,  o  tribunal,  a  pedido  de  ambas  as  partes  ou  de  uma  delas, ouvida  a  parte  contrária,  pode,  mediante  despacho,  suspender  a  instância  no  estado  em  que  se encontre  até  que  seja  proferida  uma  decisão  sobre  a  questão  prejudicial.”

[9] DANTAS, Bruno. Jurisdição coletiva, ideologia coletivizante e direitos fundamentais, Revista de Processo, vol. 251, jan.2016, pp. 341-358.

Autores

  • Brave

    é editor-chefe do "Observatório da Jurisdição Constitucional", pós-doutorando em Ciências Jurídico-Processuais pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, doutor em Direito Constitucional pela USP, mestre em Direito do Estado pela UnB, professor no curso de graduação em Direito, no mestrado e no doutorado acadêmico do IDP (Brasília) e advogado.

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!