Opinião

Novo decreto da Lei Rouanet: um museu de grandes novidades

Autores

  • Carol Bassin

    é advogada especializada em propriedade intelectual legislação de incentivo e proteção autoral com experiência de atuação no suporte jurídico e estratégico ao mercado de produção cultural mídias digitais e negociações envolvendo licenciamento de direitos consultora jurídica e business affair da agência Condé+ e membro efetivo da Comissão de Direitos Autorais Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB-RJ.

  • Cecilia Rabêlo

    é advogada mestre em Direito e especialista em Gestão e Políticas Culturais e presidente do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult).

13 de agosto de 2021, 17h18

Quem trabalha com cultura no Brasil não pode ter problemas cardíacos ou mesmo sofrer de ansiedade, pois a cada vez que sai uma norma nova sobre o tema a tensão é geral, muito pelo caminho tormentoso que essas pessoas travam todos os dias para manter de pé a produção cultural brasileira.

Foi o que ocorreu, por exemplo, com a publicação do Decreto nº 10.755/2021, que revoga o Decreto nº 5.761/06, responsável pela regulamentação da Lei nº 8313/91, hoje chamada de Lei de Incentivo à Cultura (LIC), mas que será sempre a eterna Lei Rouanet.

A Rouanet trata de três diferentes mecanismos de fomento a projetos culturais: o Fundo Nacional de Cultura (FNC), que prevê investimento direto de recursos públicos em iniciativas culturais, o chamado "fomento direto"; os Fundos de Investimento Cultural e Artístico (Ficart), previstos na lei, mas nunca implementados; e o incentivo fiscal, mecanismo através do qual pessoas físicas e jurídicas interessadas em financiar projetos culturais previamente aprovados podem descontar do seu Imposto de Renda a totalidade ou parte do recurso investido.

Como, entre os três mecanismos legalmente previstos, o incentivo fiscal é o único efetivamente em atividade — e é, com certeza, o principal instrumento de fomento público à cultura no país —, será esse o foco da nossa análise.

Diante da instabilidade do cenário da criação e produção cultural, bem como do fomento a esses setores, é normal um pânico generalizado ao saber que foram publicadas novas regras em relação a um dos poucos braços ativos do fomento público federal à cultura. Mas vale a pena respirar e analisar pontualmente as mudanças — que não foram muitas, mas estratégicas.

Um dos pontos mais alterados foram os artigos voltados à regulamentação da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, a CNIC, que é um colegiado criado pela Rouanet, composto por representantes do poder público e da sociedade civil, e que tem (teria?) como principal função apreciar os projetos culturais que pleiteiam incentivo fiscal e subsidiar as decisões do ministro e/ou secretário responsável.

Apesar de não ter poder decisório definitivo, a CNIC sempre foi uma instância extremamente importante na análise dos projetos submetidos à Rouanet, pois garantia a participação democrática dos diferentes setores culturais na escolha dos projetos culturais que poderiam receber recursos incentivados — e, portanto, participação na decisão acerca da política pública de fomento à cultura do país.

Ocorre que, ao contrário do que acontecia anteriormente, quando as reuniões mensais da comissão eram transmitidas online com livre acesso ao público, a CNIC sequer se reúne mais. Desde dezembro de 2020, sob a justificativa de que está sendo finalizado o processo de admissão dos novos conselheiros, a comissão está paralisada, e quem exerce suas atribuições é o Secretário Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura, inclusive podendo aprovar ou reprovar projetos, com o referendo posterior da comissão. Vale lembrar que a aprovação ad referendum já era uma possibilidade prevista no decreto anterior, mas sempre como uma medida excepcional e não como regra.

Bem, e o que mudou então? O novo decreto passou a prever que a CNIC será apenas uma instância recursal consultiva no caso de projetos indeferidos na análise técnica. Ou seja, em caso de indeferimento de um projeto, o proponente poderá recorrer dessa decisão ao Secretário Especial de Cultura e este poderá consultar a CNIC sobre a aprovação total ou parcial ou a não aprovação do projeto.

A decisão final, no entanto, é da gestão, e não da instância democrática. O que se enxerga nessa mudança é uma redução substancial da participação e da importância da CNIC, a única instância democrática no procedimento de análise e aprovação do incentivo fiscal à cultura realizado pela Rouanet, concentrando as decisões nas instâncias estatais, sem interferência ou fiscalização da sociedade civil.

O novo decreto trouxe ainda a possibilidade da criação de grupos técnicos com a finalidade de assessorar o presidente da CNIC. A composição desses grupos ainda é uma incógnita, já que o decreto aborda em linhas gerais que estes serão instituídos e compostos na forma de ato da presidência da comissão, o que pode ser bom para agilizar os procedimentos, mas péssimo se for apenas mais uma instância burocrática no já lento procedimento de aprovação-execução dos projetos.

Outro ponto bastante polêmico foi a alteração das áreas contempladas pela nova composição dos membros da CNIC, relativa aos seis representantes de entidades associativas de setores culturais e artísticos que irão fazer parte da comissão.

Enquanto o decreto anterior admitia representantes de: 1) artes cênicas; 2) audiovisual; 3) música; 4) artes visuais, arte digital e eletrônica; 5) patrimônio cultural material e imaterial, inclusive museológico e expressões das culturas negra, indígena, e das populações tradicionais; e 6) humanidades, inclusive a literatura e obras de referência, o atual decreto divide as linguagens artísticas (pintura, dança, música etc.) em três "categorias" — arte sacra; belas artes e arte contemporânea —, ao lado do audiovisual, do patrimônio cultural material e imaterial (com a retirada da referência às culturas negra, indígena e populações tradicionais); e dos museus e memória, agora como "categoria" à parte.

É possível notar as diferenças? Um olhar mais atento e um pouco crítico consegue vislumbrar uma mudança ou pelo menos uma forte tendência de mudança, dos paradigmas de como a arte e a cultura serão compreendidas no contexto da análise e seleção desses projetos. A alteração normativa dialoga com os posicionamentos públicos do atual governo, inclusive com emissão de pareceres de órgãos públicos de cultura com fundamentação em Deus para reprovação de projetos.

Para finalizar as mudanças na CNIC, uma alteração que chama atenção por abrir uma indesejável brecha para um possível (ou já existente?) dirigismo estatal no âmbito cultural é a previsão de que o funcionamento da CNIC será regido não mais por normas internas aprovadas por seus próprios membros, mas, sim, por normas editadas pela própria Secretaria Especial de Cultura.

Ora, de que adianta uma instância de participação democrática cujas regras de funcionamento são determinadas pelo Estado? Como garantir uma participação livre de controle e fiscalização do poder público — que, afinal, é a própria finalidade da participação democrática — se as regras do jogo são dadas pelo próprio fiscalizado?

Continuando com a análise pontual, outra alteração que merece destaque é a da vedação à utilização de "logomarcas, símbolos ideológicos ou partidários" na divulgação dos projetos. A pergunta que fica é: o que seria, afinal, um "símbolo ideológico"? É certo que um símbolo pode ter infinitos significados, sendo absolutamente vago e inseguro juridicamente permitir ao poder público definir o que é um "símbolo ideológico". 

Ao que parece, é mais uma carta em branco para os decisionismos que já acontecem na prática (vide o caso da reprovação do projeto "antifascista" pela Funarte).

Ainda sobre o tema da divulgação, o novo decreto trouxe uma exigência de prévia aprovação da Secretaria Especial de Cultura para inauguração, lançamento, divulgação, promoção e distribuição dos projetos e produtos resultantes do incentivo por parte dos estados, Distrito Federal e municípios, sob pena e risco de reprovação parcial ou total dos projetos realizados com recursos da Lei Rouanet.

Aqui temos dois importantes pontos de reflexão. O primeiro é conceitual. Sendo os entes públicos (União, estados, DF e municípios) constitucionalmente autônomos, até que ponto essa determinação é legal ou mesmo constitucional? O segundo ponto é prático mesmo. Vocês conseguem imaginar como será a logística para atender essa determinação? Pedidos de autorização prévia para cada projeto no Brasil a ser realizado com incentivo público estadual e/ou municipal cumulados com recursos da Rouanet? Caos total.

Outra alteração que merece destaque é a relacionada aos planos anuais e plurianuais de atividades. Vamos relembrar o conceito?

Plano anual ou plurianual de atividades consiste num grande projeto cultural apresentado por pessoa jurídica sem fins lucrativos que contemple, por um período de um a quatro anos, a manutenção de uma instituição e das suas atividades culturais de caráter permanente e continuado, bem como os projetos e ações constantes do seu planejamento. Segundo o novo decreto, esses planos passam a ter de ser propostos por instituições exclusivamente culturais, voltadas para atividade de museus públicos, patrimônio material e imaterial e ações formativas de cultura. Planos de outras áreas poderão ser autorizados, "desde que considerados relevantes para a cultura nacional" pela Secretaria Especial de Cultura.

Meio subjetivo, não? O que seriam "ações formativas de cultura"? Como precisar o que pode ser considerado "relevante para a cultura nacional"? Não bastaria atender a um dos objetivos do Programa Nacional de Cultura (Pronac) estabelecido pela própria Rouanet? Onde fica a impessoalidade dessa análise?

Por fim, cabe mencionar a alteração nos percentuais de destinação dos produtos resultantes do projeto. O percentual destinado aos patrocinadores, que antes era de 10%, com o novo decreto passa a ser de 5%, considerando o patrocinador de forma individual.

Isso quer dizer que o patrocinador apenas poderá distribuir, de forma gratuita, até 5% dos produtos resultados do projeto. Quem atua com captação de recursos sabe que a destinação do percentual dos produtos culturais resultantes é uma ferramenta importante para atrair potenciais patrocinadores, já que a decisão final acerca de para onde vai o recurso incentivado é das empresas/pessoas físicas patrocinadoras.

A lei já traz uma série de salvaguardas importantes para coibir abusos no uso desse percentual, como, por exemplo, a vedação da realização de sessões fechadas para o patrocinador. Além disso, vale lembrar que há uma série de requisitos de percentuais mínimos de distribuição gratuita e prática de valores, sempre com o foco de garantir a devida democratização do acesso ao resultado final do projeto incentivado.

Qual terá sido a motivação e o fundamento para essa redução? Como isso impactará na captação de recursos e formalização de parcerias?

Essas não foram as únicas alterações trazidas pelo novo decreto. Na verdade, as mudanças foram poucas e pontuais, muito voltadas à institucionalizar o que, na prática, já vem acontecendo: um esvaziamento da participação democrática no incentivo fiscal federal à cultura; uma vontade de dirigismo estatal nas manifestações culturais (inclusive expressamente manifestada pelo próprio secretário da pasta); um afastamento cada vez maior da política pública de cultura em relação a quem faz cultura no país (que, não se enganem, não é o Estado, mas as pessoas).

O alarde causado no setor cultural após a publicação desse novo decreto parece ter muito mais relação com o já imenso desgaste que vem passando a produção cultural brasileira, que experimenta na prática a insegurança jurídica advinda de uma sequência de decisões e omissões questionáveis por parte do governo federal.

É fato que o poder público deve fiscalizar o uso dos recursos públicos. Ninguém em sã consciência é contra isso. Para tanto, é fundamental o estabelecimento de normas prévias e claras sobre as regras do jogo. Quando essa norma é vaga, genérica, ou se vale de conceitos abertos ("símbolos ideológicos", "relevantes para a cultura nacional"), nasce a semente da insegurança jurídica e, com ela, o caminho nebuloso das apreciações subjetivas que faz do proponente não um administrado, mas um refém da vontade estatal.

Para um sistema de fomento pensado sob o tripé poder público/produção cultural/iniciativa privada, a crise de confiança instaurada entre esses agentes atua como um vírus silencioso que pode comprometer a sobrevivência desse mecanismo e a própria manutenção da produção cultural brasileira.

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