Opinião

Considerações sobre o projeto que altera a Lei de Improbidade Administrativa

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13 de agosto de 2021, 13h53

Introdução
Recém-aprovado pela Câmara dos Deputados, em 16 de junho deste ano, o Projeto de Lei 10.887/2018 visa a alterar dispositivos da Lei 8.429/1992 — Lei de Improbidade Administrativa (LIA). O projeto ainda precisa da aprovação do Senado Federal e, por conter alguns pontos suscetíveis à polêmica, ainda pode ensejar muita discussão antes da sanção pelo poder executivo.

Spacca
A LIA como um corpo normativo de regulamentação da improbidade administrativa teve um importante papel no país na época em que foi sancionada. Existia um clamor popular para o combate ao que genericamente chamamos de corrupção.

Passados quase 30 anos da vigência da lei, não é de se estranhar que muitas de suas disposições precisem ser revistas pela passagem do tempo e pela nova realidade político-jurídica em que o país se encontra. Além do mais, a experiência dos tribunais, da doutrina e dos próprios casos que chegam à mídia, demonstra que uma reavaliação da LIA, em toada de adequação, bem pode ajudar a esclarecer alguns aspectos dessa lei que são alvos de muita controvérsia até hoje.

Mas é claro que o PL 10.887/2018, apesar de ter passado por inúmeras consultas públicas, análises de especialistas, pareceres de comissões de justiça, audiências, debates acadêmicos, também já ativou críticas as mais ferrenhas.

Aspectos positivos e negativos do projeto parecem, sim, estar presentes, sobretudo em um tema em que a política e o Direito estão imbricados com maior evidência e nitidez.

As premissas básicas que orientaram o anteprojeto de reforma da LIA, que resultou no texto agora aprovado na Câmara dos Deputados, conforme informa o ministro do STJ Mauro Campbell, um dos coordenadores do projeto, foram:

1) A incorporação da jurisprudência que, ao longo dos anos, foi consolidada;

2) A compatibilização com leis editadas posteriormente à LIA, como, por exemplo, o novo Código de Processo Civil (CPC), a Lei Anticorrupção e a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB);

3) A necessidade de se criar novos institutos e premissas mais adequadas à realidade brasileira atual.

O objetivo desse artigo é discorrer sobre as principais mudanças que a alteração legislativa até aqui aprovada provocaria na LIA. Para isso, escolhemos sete temas de maior controvérsia e novidade e, quando for o caso, enunciaremos os elogios e as críticas que vêm sendo levantadas sobre eles, sobretudo na mídia jurídica especializada.

As mudanças
1) Expressa previsão de dolo e exclusão da culpa como elemento subjetivo: Na LIA, três artigos dispõem sobre as hipóteses tipificadoras da improbidade administrativa. O artigo 9º trata dos atos de improbidade administrativa que importam em enriquecimento ilícito. O artigo 10 trata dos atos de improbidade administrativa que importam em danos ao erário. E o artigo 11 trata dos atos administrativos que atentam contra princípios da Administração Pública.

Se por um lado todos esses artigos aceitam a modalidade dolosa como tipificadora da hipótese de improbidade, o artigo 10, que cuida dos danos ao erário, também aceita a modalidade culposa de conduta do agente para sua caracterização. Sabemos que o dolo constitui uma vontade consciente de cometer um ato ou omissão contrário a lei, e a culpa, por outro lado, importa em um descuido grave e reprovável do agente.

Pois bem, o PL 10.887/2018 exclui a hipótese de punição por culpa e assegura que em todos os tipos de improbidade é necessário expressamente a configuração do dolo. E ainda se diferenciam os atos ímprobos dolosos — praticados "com vontade livre e consciente de alcançar o resultado ilícito" — da mera voluntariedade do agente (artigo 1º, §2º, do novo texto da LIA, caso se confirme a redação do projeto aprovada na Câmara dos Deputados).

Se o elogio geral a essa nova e principal mudança do dispositivo consiste em certificar com maior segurança que só as condutas voluntariamente afrontadoras da lei são ilícitas, por outro lado, há quem veja nessa mudança uma maior tolerância para com o administrador inábil, que, agora, pode agir com maior descuido porque hipoteticamente estaria afastado o risco de punição.

2) A interpretação razoável do direito exclui a improbidade: A nova redação proposta para o §8º do artigo 1º da LIA também traz uma alteração sofisticada, que não deixou, por seu turno, de ser alvo de críticas por dar muita abertura a interpretações diversas sobre a lei, permitindo ao agente público uma esfera de atuação que pode não ser salutar por ser muito ampla. Assim, o dispositivo proclama: "Não configura improbidade a ação ou omissão decorrente de divergência interpretativa da lei, baseada em jurisprudência, ainda que não pacificada, mesmo que não venha a ser posteriormente prevalecente nas decisões dos órgãos de controle ou dos tribunais do Poder Judiciário".

Isso, no fundo, significa dizer que debate teórico de teses jurídicas, desde que tenham respaldo em jurisprudência, é suficiente para excluir a configuração de improbidade administrativa, mesmo que a interpretação a final não se consolide.

A tessitura do Direito é feita de interpretações diversas. Não apenas por seguirem métodos diferentes, mas, também e principalmente, porque os atores jurídicos têm interesses diferentes. O confronto de interpretações diversas do texto jurídico não é, em verdade, uma falha do sistema, como se o direito somente tivesse uma interpretação correta a ser aplicada. Porém, essa abertura interpretativa própria da natureza do Direito, pode proporcionar, se pensada em escala, um argumento para a esquiva, nos casos de improbidade administrativa, de comandos jurídicos.

3) Penas novas e escalonamento de sanções: Pelo princípio do escalonamento de sanções de acordo com sua gravidade, o PL acabou por exacerbar algumas penas da LIA. Ao mesmo tempo em que aumenta o prazo máximo para a perda de direitos políticos em alguns casos, retira a previsão de pena mínima. Talvez como uma resposta a supressão da hipótese culposa que o novo projeto dispõe, como se do aumento das penas resultasse um endurecimento da Lei de Improbidade Administrativa, o fato certo é que entre a ausência de pena mínima e uma maior punibilidade para alguns atos ímprobos, pelo princípio do escalonamento de sanções, teremos uma maior maleabilidade discricionária ao julgador para aplicar as sanções nos casos concretos.

4) Ministério Público: exclusividade para propositura da ação: Pelo texto atualmente em vigor da LIA, a titularidade para a propositura das ações de improbidade pode ser tanto do Ministério Público como da União, dos estados e municípios, dependendo de qual seja o ente lesado.

Pelo projeto, o Ministério Público passaria a ser o único legitimado para a propositura da ação. Essa competência restrita não deixa de ser passível de críticas pois exclui, em verdade, os entes que mais teriam interesse e capacidade para a persecução do infrator e resgate do dano.

Por outro lado, a alteração facilitaria as tratativas de eventuais acordos, como termos de autocomposição ou ajustamento de conduta, a serem feitos exclusivamente com o Ministério Público.

5) Previsão de não persecução cível: O PL confirma a possibilidade de o Ministério Público celebrar acordo de não persecução civil (artigo 17-B introduzido na LIA pelo projeto), o que já era possível, de forma inequívoca (afastando dúvidas e debates anteriores), desde a aprovação da Lei 13.964/19 (o chamado pacote "anticrime").

Na atual redação do artigo 17, §1º, da LIA (alterado pela Lei 13.964/19), há, contudo, apenas a menção de que as ações de improbidade "admitem a celebração de acordo de não persecução cível".

Já novo texto, aprovado pela Câmara dos Deputados, prevê, em seus incisos e parágrafos, minuciosamente, as diretrizes que devem orientar o acordo, a ser homologado judicialmente, bem como seu conteúdo e extensão.

Vale assinalar a exigência de "integral ressarcimento do dano" e "a reversão da pessoa jurídica lesada da vantagem indevida obtida, ainda que oriunda de agentes privados", bem como "a necessidade de 'oitiva do ente federativo lesado, em momento anterior ou posterior à propositura da ação'", e a oitiva do Tribunal de Contas competente para a apuração do valor do dano.

O texto disciplina também em detalhes como deve se dar o acordo.

A ideia é gerar uma harmonização sancionatória que o Direito atual almeja alcançar, centrando no Ministério Público as negociações (redação proposta para o §5º do artigo 17).

Nos últimos anos, os acordos firmados no âmbito da improbidade admistrativa aumentaram de número, o que contribui muitas vezes para a preservação da atividade de empresas, com os reflexos importantes na manutenção de empregos, sobretudo no caso de grandes empresas, além de proporcionar desfecho mais rápido para a questão da composição dos danos sofridos pelo ente público.

O projeto consagra tal direção que se mostra mais adequada à realidade.

6) Mudanças de prazos prescricionais: Muitas alterações nos prazos prescricionais foram formuladas no projeto.

O legislador, no entanto, ficou atento para assegurar que nos casos de infrações permanentes, o prazo prescricional se inicia a contar no dia em que cessou a permanência. A nova redação proposta para o artigo 23 da LIA contempla um §4º, pelo qual são previstas diversas possibilidades processuais de interrupção do prazo prescricional, com certeza, no interesse de melhor afastar a sensação de impunidade.

É importante também destacar aqui que a proposta PL 1.484/2021, ainda pendente de apreciação pela Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania a Câmara dos Deputados, dispõe sobre a imprescritibilidade de ressarcimento ao erário por ato doloso de improbidade administrativa, o que vem ao encontro de jurisprudência do STF sobre o tema, e, ao que tudo indica, visa a minimizar a impunidade, dentro da mesma lógica do PL ora comentado.

7) Harmonização sancionatória: Na nova redação proposta para o artigo 21 da LIA, o projeto introduz os parágrafos 3º, 4º e 5º, visando à melhor harmonização dos efeitos de sanções aplicadas em outras esferas e instâncias.

Na complexa trama de investigações, processos e punições não se pode admitir que um mesmo caso seja punido, sem uma necessária justificação, duas vezes. O princípio que rege essa lógica é o non bis in idem.

Conclusão
Os efeitos jurídicos da mudança da LIA serão diferentes, em regime de realidade, dos efeitos políticos.

Juridicamente, ao dispor, de uma vez por todas a tipificação da improbidade apenas no caso do dolo, enunciar o escalonamento de sanções e a harmonização sancionatória, temos elementos que darão maior clareza ao que a jurisprudência e a doutrina vêm elaborando nesses trinta anos de vigência da LIA.

São aspectos que juridicamente deixam o sistema de punição em foco, inclusive, mais fácil de ser operado.

Politicamente, o problema que parece transparecer é que algumas das alterações dão uma abertura demasiadamente ampla para o mandatário.

De fato, o efeito mais imediato que pode ocorrer é uma menor punibilidade para os administradores inábeis, que sem a figura da culpa, que existe atualmente na LIA, somente poderiam ser acionados por dolo. E, ainda, dispõem da norma que diz que interpretação razoável do direito, não pode constituir ilegalidade.

Pois se há quem acredite que o projeto acaba por impor um menor controle sobre os agentes públicos, o que favoreceria a corrupção, também há quem valorize uma maior amplitude, sem temores de punição, para as ações de decisão do administrador público que afetam a coletividade.

O acento mais relevante do espírito do projeto de lei está na ideia de que, na complexa questão da corrupção em um Estado democrático de Direito, é o administrador desonesto, e não o mero incompetente quem deve ser punido.

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