Opinião

Novos rumos no debate sobre planejamento tributário no Brasil

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11 de agosto de 2021, 16h16

Definir os limites do planejamento tributário é provavelmente uma das questões mais polêmicas em matéria tributária. Embora o debate não seja recente, a questão tomou corpo globalmente após a crise financeira de 2008, que foi seguida por um período de austeridade fiscal e corte de despesas públicas.

Nos países desenvolvidos, vozes a favor de um sistema tributário mais "igualitário" culminaram em iniciativas como o Projeto Beps, um esforço multilateral da OCDE e dos países do G-20 para desenvolver regras de combate à transferência artificial de lucros para países com baixa tributação, além de normas sobre transparência fiscal (divulgação e troca de informações entre países).

No Brasil, a discussão sobre a legitimidade das estruturas de planejamento tributário tomou contornos distintos ao longo do tempo. Historicamente, sempre se admitiu o pleno direito do contribuinte de organizar seus negócios de modo a afastar a tributação mais gravosa (elisão fiscal), ressalvadas as hipóteses de abuso, caracterizado pela presença de dolo, fraude ou simulação (evasão fiscal).

Essa concepção tradicional é fortemente apoiada em princípios constitucionais, como o princípio da legalidade em matéria tributária, o princípio da livre iniciativa e o princípio da segurança jurídica. É a ideia de que o empresário, diante de diversas alternativas possíveis para a realização de um negócio, pode adotar aquela que resulte em menor custo tributário, desde que não exista proibição expressa. Em certa medida, esse direito de economizar tributos também pode ser visto como uma "obrigação", representada pelo dever fiduciário do administrador de uma empresa, perante os acionistas, de buscar a maximização de lucros.

Há exemplos interessantes de manifestações do Poder Judiciário durante esse "período legalista". Um deles é um caso julgado no início da década de 90, em que uma empresa de calçados dividiu as receitas de venda de produtos entre oito entidades diferentes, todas detidas pelos mesmos sócios, para que cada uma pudesse, individualmente, usufruir os benefícios do regime do lucro presumido. Ou ainda casos envolvendo a incorporação societária de empresa lucrativa por empresa deficitária, cujo intuito principal era otimizar o consumo de prejuízos fiscais acumulados.

Em ambos os exemplos, convalidou-se no Judiciário a ideia de que o empresário pode adotar estruturas tributariamente eficientes, mas essa prerrogativa não se aplica quando se verifica excessiva artificialidade nas operações praticadas e claro descompasso entre a intenção e a forma adotada, o que sinalizaria a existência de fraude ou simulação. Durante o período legalista, a "presunção de legitimidade" somente poderia ser afastada diante de abuso excessivo, a exemplo de uma segregação artificial de receitas ou a realização de incorporação societária de forma inversa do que os elementos da operação evidenciavam, como de fato ocorreu nos casos citados.

É interessante notar que o período legalista sofreu influência da chamada doutrina voluntarista da "simulação". Essa doutrina identifica um vício no negócio jurídico somente quando as partes inventam ou escondem um fato específico no contexto de negócios jurídicos vistos isoladamente entre si, isto é, quando há claro descompasso entre a vontade real e a vontade declarada nos atos.

Ocorre que, particularmente a partir do início dos anos 2000, verificou-se uma alteração relevante na forma como se examinam as estruturas de planejamento tributário. Intensificou-se a discussão em torno da exigência de propósito negocial (ou de "motivação extra tributária") como requisito de validade das operações. Sob a perspectiva teórica, essa visão foi influenciada pela doutrina causalista, que procura aferir a validade e eficácia do negócio jurídico a partir de sua causa objetiva. Segundo essa doutrina, pode-se identificar a existência de simulação se houver descompasso entre a intenção das partes e a causa típica do negócio. Nesse sentido, a eventual falta de propósito econômico dos atos praticados poderia suscitar um vício da operação, quando considerado todo o seu contexto.

Essa nova concepção também adotou por referência um suposto dever fundamental de pagar tributos, isto é, de contribuir com os gastos públicos, algo que poderia ser extraído de princípios constitucionais como a solidariedade e a capacidade contributiva. Segundo essa visão, seria teoricamente possível contrapor-se o princípio da legalidade para afastar ou restringir a prerrogativa do contribuinte de adotar estruturas tributariamente mais eficientes.

Na prática, essa discussão tomou contornos mais concretos após introdução, pela Lei Complementar nº 104/2001, de uma suposta norma geral antielisão no Direito brasileiro, que incluiu o parágrafo único ao artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN). Essa norma prevê que a autoridade fiscal "poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária".

Ocorre que essa "regra antielisão" tem eficácia limitada, isto é, sua aplicação concreta depende da edição de lei ordinária para regulamentá-la. É bem verdade que, em 2002, a Medida Provisória nº 66 tentou suprir essa lacuna, tratando das condições e limites para a "requalificação", para fins tributários, de negócios jurídicos lícitos, introduzindo a figura da falta de propósito negocial e do abuso de forma como fundamentos para desconsideração desses negócios. Porém, à época, essa tentativa foi rejeitada pelo Congresso Nacional.

O que se sucedeu ao longo dos anos 2000, porém, foi um movimento relativamente coordenado das autoridades fiscais, especialmente na esfera federal, no sentido de autuar as empresas utilizando-se justamente daqueles conceitos que foram indicados na Medida Provisória nº 66/2002. Assim, inaugurou-se o "período do propósito negocial", no qual o exame da legitimidade dos negócios jurídicos passou a se concentrar não apenas na perspectiva formal (adequação à lei), mas também na validade aferida a partir da existência de substância econômica ou propósito negocial, cuja ausência poderia justificar a desconsideração de atos jurídicos para fins tributários.

A postura da Receita Federal (RFB) — tomada à revelia do Congresso e da existência de uma lei formal — acabou por contaminar a jurisprudência das cortes administrativas, em particular do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf), que julga causas tributárias relacionadas ao imposto de renda das empresas.

É comum se identificar nos últimos anos diversas decisões do Carf em que o "exame de validade" de uma operação é realizado a partir da existência ou não de supostos indícios de artificialidade. Esses indícios são identificados a partir de características do caso concreto, em que se procura examinar: 1) se a forma adotada para o negócio jurídico praticado é coerente com os efeitos pretendidos; e 2) se não existem atos posteriores que neutralizem os efeitos típicos dos atos ou negócios anteriormente praticados, de forma a se retornar à situação inicial.

Outro elemento considerado relevante pela RFB e pelo Carf é o aspecto temporal, isto é, se há curto espaço de tempo entre os passos de uma reorganização societária, que eventualmente culmine em economia tributária. Dentro desse contexto, destacam-se também as acusações sobre a criação de "sociedades-veículo", isto é, empresas efêmeras criadas para viabilizar a realização de atos que permitam a redução de tributos. Finalmente, costuma-se verificar se os atos praticados, quando envolvem partes relacionadas, são pautados em condições de mercado.

O exemplo mais emblemático do efeito da "corrente do propósito negocial" pode ser verificado nas inúmeras discussões em torno da validade de operações que envolvem a amortização fiscal de ágio registrado na aquisição de participações societárias. Ao mesmo tempo que a lei tributária permite que os contribuintes deduzam fiscalmente o sobrepreço (ágio) pago nessas operações, a RFB autua as empresas, de forma recorrente, valendo-se de alegações relacionadas à ausência de propósito negocial, ao uso de "empresa-veículo" e à verificação de motivação exclusivamente tributária, tudo de forma a sustentar a invalidade ou ilegitimidade das operações.

É fundamental que se pontue, porém, que a "corrente do propósito negocial" foi difundida pela própria RFB, sem que tivesse sido introduzida qualquer norma jurídica que a respaldasse. A própria ideia de que haveria, no Brasil, um dever fundamental de pagar tributos, amparado nos princípios da solidariedade e da capacidade contributiva, é altamente questionável, sendo sustentada por doutrina minoritária. Afinal, tais princípios não se sobrepõem à garantia assegurada pelo princípio da legalidade em matéria tributária, ao menos à luz da Constituição vigente.

Não é por outra razão que surgiram, mais recentemente, alguns sinais de reversão dessa corrente, a fim de que se reconheça a primazia da legalidade e da segurança jurídica e, por via de consequência, a plena liberdade dos contribuintes de adotarem estruturas de planejamento tributário e de perseguir alternativas menos onerosas sob a ótica tributária.

O primeiro sinal relevante acontece na esfera das cortes administrativas: a extinção do voto de qualidade no Carf, promovida pela Lei nº 13.988/2020, cria uma expectativa concreta de que a "corrente do propósito negocial" será revertida ou mitigada naquele tribunal. Anteriormente, quando havia empate nos julgamentos, caberia ao presidente da turma (representante do Fisco) o voto de desempate, o que fazia com que muitos casos, em especial aqueles mais complexos envolvendo planejamento tributário, fossem julgados de forma contrária aos contribuintes. Esse cenário criou um ambiente de insegurança para as empresas, que testemunharam, por longos anos, decisões que associavam o tema "planejamento tributário" à ideia de abuso.

Outro sinal importante vem do Poder Judiciário: muitos dos grandes casos que envolvem a discussão sobre planejamento tributário, finalizados de forma desfavorável aos contribuintes no Carf, começaram a ser analisados na esfera judicial. Como o exame no Judiciário não se submete a uma polarização entre julgadores representantes dos contribuintes e do Fisco, e os juízes são menos influenciados pelas teorias que foram difundidas pelas próprias autoridades fiscais, verificam-se inúmeras decisões revertendo as posições do Carf.

Essas decisões judiciais apontam para a ausência de respaldo legal para a "corrente do propósito negocial", indicando que os contribuintes não podem ser obrigados a optar pelo caminho mais oneroso do ponto de vista tributário para realização de seus negócios, se existem outros meios lícitos e menos custosos que lhes permitem atingir o mesmo objetivo. Obrigar o contribuinte a adotar o caminho mais oneroso representaria violação à liberdade econômica garantida pela Constituição.

Um dos leading cases representativos desse retorno à corrente legalista foi julgado pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) em dezembro de 2019. O caso envolve a transferência de imóveis via cisão para outra empresa integrante do mesmo grupo econômico, optante pelo lucro presumido, e a posterior alienação desses imóveis. O Fisco alegou que a reorganização societária era simulada e sem propósito negocial, com vistas apenas à redução da carga tributária. No Carf, a decisão final proferida julgou válida a cobrança, por considerar que a conduta do contribuinte foi abusiva, mantendo inclusive a multa agravada de 150%.

Ao analisar a questão, porém, o TRF-4, por unanimidade, decidiu de forma favorável ao contribuinte, afastando a exigência de propósito negocial por ausência de base legal e legitimando a reorganização realizada. Segundo os desembargadores, "havendo perfeita correspondência da substância das operações com as formas adotadas para a sua realização, não é possível afirmar-se que os atos praticados tenham sido simulados, sendo indevida a ingerência da administração tributária na liberdade de iniciativa de que dispõe o contribuinte, garantida no artigo 170 da Constituição Federal, de reestruturar a exploração do seu capital da forma mais eficiente, inclusive sob a perspectiva fiscal".

A tendência legalista foi confirmada mais recentemente pelo TRF-4, em decisão de abril, que cancelou a cobrança relacionada à amortização fiscal de ágio gerado em operações de reestruturação societária entre empresas relacionadas, as quais tinham sido realizadas por empresa do ramo de metalurgia.

A discussão envolvia a aplicação das regras relativas ao aproveitamento fiscal de ágio, mas a autuação também foi amparada nos conceitos usualmente empregados pela RFB (abuso de forma, falta de propósito negocial etc.). Na decisão, o TRF-4 reconheceu que à época dos fatos geradores não havia proibição legal para o aproveitamento de "ágio interno", cuja restrição somente foi introduzida em 2014. Desse modo, restringir a utilização do ágio violaria a autonomia da vontade, a liberdade econômica, a proteção da confiança do contribuinte e o princípio da legalidade.

Esses exemplos demonstram, portanto, que a discussão em torno do planejamento tributário não está devidamente amadurecida no Brasil, mas que os contornos que vêm sendo adotados pelo Poder Judiciário deverão reverter a tendência restritiva que ainda pauta a atuação das autoridades fiscais e do próprio Carf.

Soma-se ao contexto acima o julgamento pelo STF da ADI nº 2.446, ajuizada pela Confederação Nacional do Comércio (CNC) para discutir a constitucionalidade do próprio parágrafo único do artigo 116 do CTN. Segundo as alegações da CNC, o poder dado às autoridades administrativas viola princípios constitucionais como o da legalidade e da certeza e segurança das relações jurídicas, equiparando indevidamente elisão e evasão fiscal.

Apesar de entender que a norma é válida, a relatora do caso, ministra Carmen Lúcia, sustentou com base no princípio da legalidade que, além de depender de regulamentação em lei para a sua aplicação, a norma não impede que o contribuinte busque economia fiscal respaldada em vias lícitas e coerentes com a ordem jurídica. Nesse sentido, a ministra ressaltou que as autoridades fiscais não estão autorizadas a "valer-se de analogia para definir fato gerador e, tornando-se legislador, aplicar tributo sem previsão legal", nem a socorrer-se "de interpretação econômica". O voto foi seguido por outros quatro ministros, mas o julgamento foi interrompido, sem previsão de que seja retomado no curto prazo.

Essa manifestação do STF, ainda que preliminar, sugere que, na visão do tribunal, não há no sistema jurídico brasileiro uma regra que autorize o Fisco a desconsiderar os regulares efeitos jurídicos de atos praticados validamente, e sem que haja simulação ou fraude, ainda que o objetivo do contribuinte seja (exclusivamente) a redução de carga tributária. Trata-se, portanto, de uma manifestação positiva em favor da posição que já vem repercutindo nas esferas inferiores do Poder Judiciário.

Em suma, a despeito da postura recorrente das autoridades fiscais no sentido de questionar a validade de atos e operações que visem à economia de tributos, aplicando conceitos estranhos ao sistema jurídico vigente, as manifestações recentes do Poder Judiciário, o fim do voto de qualidade no Carf e a posição preliminar do STF sinalizam uma provável reversão da "corrente do propósito negocial", permitindo que a discussão em torno do planejamento tributário possa ser conduzida de forma mais racional e alinhada aos princípios previstos na Constituição Federal.

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