Opinião

A inviolabilidade de domicílio como uma das expressões do direito à intimidade

Autor

  • Christian Corsetti

    é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

10 de agosto de 2021, 10h35

A inviolabilidade do domicílio é uma das vertentes do direito à privacidade, pois a casa, conforme estabelece o inciso XI do artigo 5º da Constituição da República Federativa do Brasil, é asilo inviolável do indivíduo e ninguém nela pode penetrar sem o consentimento do morador, nem mesmo o Estado, exceto nos casos de flagrante delito ou desastre, ou para prestar socorro ou, durante o dia, que atualmente é compreendido no período entre 6h e 18h, exigindo-se, neste último caso, determinação judicial.

Eis aqui mais um direito que vem sendo mitigado incansavelmente pelos nossos tribunais, tão somente para conferir um caráter de licitude às provas angariadas no curso das investigações preliminares.

A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça está evoluindo paulatinamente quando o assunto é a imposição de limites à relativização dessa cláusula de proteção constitucional. Apesar das idas e vindas dos entendimentos da corte, alguns avanços são identificados em julgados mais recentes.

Antigamente, esse dispositivo constitucional, que assegura a inviolabilidade do domicílio, não possuía a força normativa que lhe é conferida na atualidade, principalmente quando em conflito com um flagrante delito de tipos penais permanentes, como é o caso do tráfico de drogas. Nessas situações, portanto, não havia necessidade da demonstração de fundadas razões (justa causa) para validar a invasão, nem menos a justificativa a posteriori, indicando que dentro da referida casa ocorria situação de flagrante delito, ainda que a violação domiciliar ocorresse no período noturno, pois o simples fato de o crime ser de natureza permanente era suficiente para justificar a incursão policial.

Nesse sentido houve vários julgamentos no Superior Tribunal de Justiça, como podemos destacar no RHC 5204/SC, da 6ª Turma, de relatoria do ministro Anselmo Santiago, em 27/5/1996, cuja ementa afirmou: "2  Em se tratando de crime de natureza permanente  tráfico de entorpecentes  dispensável a apresentação de mandado para efeito de prisão e apreensão da droga". Na mesma linha de pensamento foi o REsp 124.012/AM, da 5ª Turma, de relatoria do ministro José Arnaldo, em 2/9/1997, que assim asseverou: "Em se tratando de delito de natureza permanente, é prescindível a apresentação de mandado para efeito de apreensão da substância entorpecente e prisão do portador depositário".

Quase uma década depois, em 21/5/2015, o Superior Tribunal de Justiça apresentou uma breve evolução jurisprudencial da matéria, como podemos identificar no julgamento do AgRg no REsp 1.521.711/RS, da 6° Turma, da lavra da ministra Maria Thereza de Assis Moura, ao adotar as seguintes premissas: "Cumpre ressaltar, porém, que incorre em nulidade a realização de busca domiciliar sem o respectivo mandado e sem o consentimento do morador se não demonstradas fundadas razões que a autorizem, nos termos do §1º do artigo 240 do Código de Processo Penal, mediante a demonstração da presença de indícios suficientes da prática do delito e da situação de flagrância".

Logo em seguida, em 5/11/2015, o Supremo Tribunal Federal, ao julgar o RE 603.616/TO, apreciando o Tema 280 da repercussão geral, seguiu a mesma linha de raciocínio, mas com uma ressalva importantíssima, assentando a tese de que: "A entrada forçada em domicílio sem mandado judicial só é lícita, mesmo em período noturno, quando amparada em fundadas razões, devidamente justificadas a posteriori, que indiquem que dentro da casa ocorre situação de flagrante delito, sob pena de responsabilidade disciplinar, civil e penal do agente ou da autoridade, e de nulidade dos atos praticados".

Diante desse novo vetor de proteção à norma fundamental, cunhada no inciso XI do artigo 5º da Carta Magna, a Corte Cidadã não apenas se rendeu às condições fixadas pelo Pretório Excelso, como foi além, partindo da análise de que o domicílio é uma das expressões do direito à intimidade, conforme excertos do REsp 1.574.681/RS, da 6ª Turma, extraídos do voto condutor do eminente relator ministro Rogério Schietti Cruz, em 20/4/2017, que destacou com precisão de argumentos: "2  A inviolabilidade de sua morada é uma das expressões do direito à intimidade do indivíduo, o qual, na companhia de seu grupo familiar espera ter o seu espaço de intimidade preservado contra devassas indiscriminadas e arbitrárias, perpetradas sem os cuidados e os limites que a excepcionalidade da ressalva a tal franquia constitucional exigem. 3  O ingresso regular de domicílio alheio depende, para sua validade e regularidade, da existência de fundadas razões (justa causa) que sinalizem para a possibilidade de mitigação do direito fundamental em questão. É dizer, somente quando o contexto fático anterior à invasão permitir a conclusão acerca da ocorrência de crime no interior da residência é que se mostra possível sacrificar o direito à inviolabilidade do domicílio." E, após minucioso estudo do caso, concluiu o voto, que restou acompanhado por unanimidade: "12  A mera intuição acerca de eventual traficância praticada pelo recorrido, embora pudesse autorizar abordagem policial, em via pública, para averiguação, não configura, por si só, justa causa a autorizar o ingresso em seu domicílio, sem o consentimento do morador  que deve ser mínima e seguramente comprovado  e sem determinação judicial. 13  Ante a ausência de normatização que oriente e regule o ingresso em domicílio alheio, nas hipóteses excepcionais previstas no Texto Maior, há de se aceitar com muita reserva a usual afirmação  como ocorreu na espécie  de que o morador anuiu livremente ao ingresso dos policiais para a busca domiciliar, máxime quando a diligência não é acompanhada de qualquer preocupação em documentar e tornar imune a dúvidas a voluntariedade do consentimento".

Todavia, o legislar, mesmo após esse importantíssimo estudo apresentado no corpo do voto condutor acima colacionado, publicado ainda na primeira metade de 2017, não legislou acerca das medidas a serem adotadas para conferir maior proteção ao direito à privacidade, mantendo-se omisso quanto à normatização das regras para a violação do domicílio alheio nos casos excepcionados pela própria Lei Maior.

Tais medidas são urgentes e necessárias para uma sociedade que clama por maior segurança e proteção, pois o cidadão, trabalhador humilde, não tem condições de comprovar que o consentimento dado por ele para ingressarem na sua casa tenha sido viciado, como acontece na maioria das situações. E nas poucas ocasiões que consegue comprovar, ainda pairam dúvidas a respeito da exigida validade. Mas, em caso de dúvida, a consequência é a ilicitude de todas as prova colhidas através desse consentimento viciado.

Um ponto importante chama a atenção, pois, apesar da evolução tecnológica, ainda acompanhamos crescentes arbitrariedades praticadas país afora, sem qualquer registro oficial das manobras operacionais empregadas, principalmente quando ocorrem nas comunidades mais desfavorecidas. E quando vemos algum registro de áudio ou vídeo, são produções de repórteres ou, até mesmo, de civis que passam pelo local e conseguem registrar alguns fragmentos das cenas devastadoras, com a lente de seus próprios celulares. Entretanto, esses fragmentos de imagens são retirados de um contexto, acarretando prejuízo à imagem das pessoas envolvidas, seja policial, seja vítima, seja familiar, seja suspeito. E esse é mais um direito à privacidade que acaba sendo violado. Todos saem prejudicados pela falta de registros oficiais das operações.

Aliás, essa tecnologia, que avança a cada dia, já deveria estar sendo usada pelo Estado há muito tempo para assegurar os direitos fundamentais do indivíduo. Mas não é só! Deve-se usar esse aparato tecnológico para trazer maior proteção ao interesse público. E isso não significa apenas maior fiabilidade da prova, o que é deveras importante, mas, sobretudo, garantir a segurança de todos, principalmente o resultado das investigações policiais e o futuro das instruções processuais. Ou seja, todos ganham com a utilização adequada desses instrumentos tecnológicos que estão à disposição da segurança pública. Basta um pouco de vontade.

A recente reforma processual, trazida pela Lei 13.964/19, bem que poderia ter normatizado as balizas para uma correta incursão policial, mas como todo remendo que é feito, acabando não sendo bem feito, o legislador perdeu uma ótima oportunidade para corrigir essa gravíssima inconsistência do nosso sistema.

Isso tudo vai ao encontro da discricionariedade do inquérito policial, que exige urgente regulamentação através da imposição de limites concretos, ou seja, é preciso regulamentar e fiscalizar as operações policiais, justamente para evitar-se que essa característica do inquérito policial, a discricionariedade, transforme-se em uma verdadeira arbitrariedade. Não estamos falando de regras estanques, mas de balizas mínimas que devem ser observadas.

Por outro lado, isso não significa o afastamento de outra característica importantíssima do inquérito, o sigilo das investigações, essencial para o sucesso da operação. Mas as balizas precisam existir.

Permitam-me aqui abrir um parêntese para trazer à baila a teoria dos status de Georg Jellinek, pois o direito à privacidade está inserido no status libertatis (status negativo), que assegura o dever do Estado de abster-se em violar os direitos fundamentais dos indivíduos. Mas essa abstenção do Estado não significa fechar os olhos para as violações que são praticadas por seus agentes, ao contrário, nessas situações deve-se conjugar um segundo status de Jellinek, o civitatis (status positivo), que garante ao indivíduo o direito de exigir do Estado uma determinada prestação para a efetividade do direito que lhe é conferido. E essa prestação, na questão colocada em debate, é justamente o controle e a fiscalização que o Estado deve realizar de suas próprias condutas, evitando-se, assim, a violação dos direitos individuais.

Pois bem, a jurisprudência avançou mais um pouco em recente julgamento, mas não como poderia. Em 2/3/2021, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o HC 598.051/SP, de relatoria do ministro Rogério Schietti Cruz, complementou o anterior julgamento que colacionamos acima, concluindo dessa vez que: "A prova da legalidade e da voluntariedade do consentimento para o ingresso na residência do suspeito incumbe, em caso de dúvida, ao Estado, e deve ser feita com declaração assinada pela pessoa que autorizou o ingresso domiciliar, indicando-se, sempre que possível, testemunhas do ato. Em todo caso, a operação deve ser registrada em áudio-vídeo e preservada tal prova enquanto durar o processo".

Esse estudo realizado pelo ministro Rogério Schietti é bastante aprofundando e traz conclusões relevantíssima para o tema, mas ainda podemos evoluir nessa questão através de uma efetiva normatização dos limites.

Mas as perguntas que pairam desse julgado são: por que só em caso de dúvida é que incumbe ao Estado comprovar a validade do consentimento do morar para o ingresso em sua casa, através de documentos, testemunhas e gravações? Por que não adotar esse formato para todos os meios de produção de provas quando estiver em jogo o direito à privacidade e à intimidade do indivíduo? Ora, isso é o mínimo de segurança que o cidadão pode receber de um Estado social e democrático de Direito.

Destarte, os registros audiovisuais devem ser exigidos não apenas para os casos de violação domiciliar sem mandado judicial e com o consentimento do morador, mas para todas as operações policiais que são realizadas, desde a mera abordagem de rotina até as mais sofisticadas operações, pois daí não haverá dúvidas e tudo ficará às claras.

Enfim, a evolução será ainda mais salutar quando todas as incursões policiais forem registradas oficialmente pelo Estado, inclusive o passo-a-passo da operação, e não somente alguns fragmentos isolados. Assim, não haverá margem para dúvidas acerca da forma como as provas foram colhidas e as prisões realizadas.

Os registros audiovisuais das operações policiais ganham maior relevância quando realizados na fase inaugural da cadeia de custódia, que exige precisão de cautela, e, por essa razão, todo o cuidado e atenção são fundamentais para o sucesso da persecução penal. E a verdade, como consequência, poderá ser trazida para dentro do processo com maior proximidade. Mas esse é um assunto que podemos trabalhar em outra oportunidade.

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