Contas à Vista

Educação é ignorância no duplipensamento fiscal do primeiro ano da EC 108/2020

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10 de agosto de 2021, 8h00

No próximo dia 26, a Emenda Constitucional nº 108 completará seu primeiro ano de vigência e o balanço de implementação do Fundeb permanente é infelizmente trágico. O que era para ser um marco de progressividade no custeio da política pública de educação em nosso país tem sido paradoxalmente alvo de medidas concretas de esvaziamento e postergação acintosas.

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Há, aliás, uma tendência histórica de prometer prioridade, mas, na prática, entregar desvios e atrasos na execução orçamentária da educação. Na coluna de 28 de julho do ano passado, alertei para o risco de o novo Fundeb vir a ser falseado e adiado (como se sucede há décadas), enquanto ainda estávamos na reta final de tramitação da PEC 15/2015, que deu origem à Emenda 108/2020.

Nesta semana venho cumprir a triste sina de reiterar o alerta de forma ainda mais premente e conclamar a todos para que saiamos em defesa da imediata e plena eficácia do custeio constitucionalmente adequado da educação pública brasileira.

É oportuno aqui lembrar que associamos a EC 108/2020 à alcunha de "emenda do Fundeb permanente" porque ela estabeleceu sua vigência por prazo indeterminado, diferentemente do que dispuseram anteriormente as Emendas 14/1996 e 53/2006. Mas não só isso: sob o novo regime, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação foi deslocado do artigo 60 do ADCT para o artigo 212-A da CF/1988. Eis a razão pela qual a sistemática de rateio equitativo dos recursos educacionais passou a ser disposição temporal e materialmente permanente da nossa Constituição Cidadã.

Lutamos muito por essa conquista civilizatória e seus efeitos financeiros deveriam estar em pleno vigor desde 1º de janeiro deste ano, conforme previa o artigo 4º da Emenda 108/2020. Ocorre, contudo, que manobras ardilosas de vários entes da federação têm, na prática, literalmente negado cumprimento à emenda do Fundeb permanente em seu sentido nuclear de priorização fiscal do custeio da educação básica obrigatória.

A despeito do discurso e do texto inscrito constitucionalmente, a realidade da execução orçamentária de muitos entes da federação mais se assemelha à estratégia de "duplipensamento" na seara educacional. A finalidade, em última instância, é sempre a de aplicar menos recursos que o devido na manutenção e no desenvolvimento do ensino, postergando sua prioridade para momento posterior indefinido e quase sempre pulando o mandato dos atuais governantes.

George Orwell, em sua magistral obra "1984" [1], assim definiu tal manipulação dos conceitos e da verdade factual:

"Esse estranho entrelaçamento de opostos — conhecimento com ignorância, cinismo com fanatismo — é um dos principais traços da sociedade oceânica. A ideologia oficial está impregnada de contradições, mesmo quando não há nenhuma justificativa prática para elas. (…) Mesmo os nomes dos quatro ministérios que nos governam exibem uma espécie de descaramento na inversão deliberada dos fatos. O Ministério da Paz cuida dos assuntos de guerra; o Ministério da Verdade trata das mentiras; o Ministério do Amor pratica a tortura; e o Ministério da Pujança lida com a escassez de alimentos. Essas contradições não são acidentais e não resultam de mera hipocrisia: são exercícios deliberados de duplipensamento. Pois somente reconciliando contradições é possível exercer o poder de modo indefinido. É a única maneira de quebrar o antigo ciclo. Se quisermos evitar para sempre o advento da igualdade entre os homens — se quisermos que os Altos, como os chamamos mantenham para sempre suas posições —, o estado mental predominante deve ser, forçosamente, o da insanidade controlada".

A realidade da política pública de educação brasileira cabe bem na distopia orwelliana, na medida em que o seu financiamento governamental está envolvido, ao longo de 2021, em uma descarada série de mentiras, as quais vão desde a persistência do cômputo de inativos nos recursos educacionais (em franco desrespeito ao §7º do artigo 212 da CF e à firme jurisprudência do STF); passam pela pura e simples preterição do pagamento de precatórios do extinto Fundef e chegam até a negativa de quitação de despesas com a conectividade das escolas e dos estudantes mais vulneráveis, a pretexto de regulamentação infralegal pelo Ministério da Educação.

Em pleno 2021, não passa de "duplipensamento fiscal" o fato de governos estaduais insistirem em negar cumprimento ao artigo 212, §7º, da CF, sob falso amparo em inválidas modulações de efeitos levadas a cabo por seus respectivos tribunais de contas. Não obstante a cristalina e imediata vedação constitucional, persistem ainda agora em rota de desvio dos recursos vinculados à educação os estados de Pernambuco (tal como noticiado aqui e aqui), Rio Grande do Sul (noticiado aqui e aqui) e São Paulo (como havíamos denunciado no âmbito da Reclamação 47440 que tramita no STF e também nesta coluna Contas à Vista do dia 29 de junho deste ano).

Além de evidentemente inconstitucional, é cínica a tese de que faltam recursos para cumprir imediatamente a emenda do Fundeb em relação à exclusão dos inativos no cômputo dos recursos vinculados à educação, porque a arrecadação deste ano superou as projeções orçamentárias e os cofres estaduais estão cheios.

Tampouco é razoável a pretensão de diferimento temporal para um suposto ajustamento de conduta, porque o tema já havia sido levado a debate durante a tramitação da PEC 15/2015 e foi expressamente rejeitado pelo Congresso Nacional no texto final da EC 108/2020. Citamos, a título de exemplo, a fracassada emenda à PEC do Fundeb Permanente, cujo primeiro signatário foi o senador Tasso Jereissati, em que se pretendeu inserir um artigo 60-B no ADCT para postergar até 2026 a exclusão das despesas com pagamento de inativos e pensões dos recursos destinados à manutenção e ao desenvolvimento do ensino.

Ora, reiteramos, em especial, que a apreciação de emenda constitucional em dois turnos por quórum qualificado de votação em cada casa legislativa não pode ser simplesmente ignorada ou suplantada por decisões contingentes e opacas de tribunais de contas locais. É desonestidade jurídica, nesse contexto, manter o cômputo de inativos nos recursos educacionais quando há literal e plenamente vigente vedação constitucional contra isso. É igualmente afrontoso, como se sucede no caso de São Paulo, que a decisão unânime do STF na ADI 5719 siga sendo grotesca e solenemente descumprida (esse, aliás, é o objeto da Reclamação 47440).

Na federação brasileira, referido "duplipensamento fiscal" mantém e naturaliza desvio educacional que alcança a cifra de R$ 20 bilhões anuais [2], enquanto a emenda do Fundeb buscou ampliar a complementação da União aos entes subnacionais. Ora, é incoerente que alguns governadores queiram receber mais recursos federais quando eles próprios não aplicam sua cota de responsabilidade no financiamento da educação básica.

Não deixa de ser sintomático o fato de que em 2024 se encerrará a vigência do atual Plano Nacional de Educação. A cínica postergação por vários anos do cumprimento da emenda do Fundeb certamente comprometerá também o atendimento às metas e estratégias do PNE.

Mas a falta de prioridade para o custeio da educação básica obrigatória não se restringe a apenas alguns estados. A deliberada escolha orçamentária pela ignorância também tem sido duramente verificada no nível federal.

Exemplifica tal negativa de custeio suficiente e tempestivo para a política pública educacional a Medida Provisória nº 1.060, de 4 de agosto deste ano. Aludida MP inseriu no artigo 2º da Lei nº 14.172, de 10 de junho deste ano, o seguinte §4º: "Ato do Poder Executivo federal disciplinará o disposto no caput, inclusive quanto aos prazos, à forma de repasse dos recursos e à prestação de contas de sua aplicação". Vale lembrar que a finalidade da Lei nº 14.172/2021 era oferecer garantia de acesso à internet, com fins educacionais, a alunos e a professores da educação básica pública. Mas agora o governo federal pode escolher — por ato infralegal — como e quando pagará pela conectividade escolar, mesmo diante da urgência de atender aos alunos mais vulneráveis durante a oferta de ensino remoto ou híbrido, dada a persistência do quadro de calamidade sanitária da Covid-19 em que nos encontramos.

Noutro giro, o Ministério da Economia tem noticiado interesse em apresentar proposta de emenda à Constituição para parcelar e, com isso, atrasar o pagamento dos precatórios do extinto Fundef. Ora, o debate acerca da insuficiente complementação federal diante do falseado valor mínimo de referência anual por aluno se arrastou no judiciário brasileiro durante mais de uma década até que o Supremo Tribunal Federal determinasse, em 2017, o ressarcimento aos estados prejudicados (como se pode ler aqui).

Como informado pelo Portal360 e pela jornalista Adriana Fernandes, do Estadão, a estimativa era de que em 2022 os precatórios do extinto Fundef alcançassem a casa de R$ 15,6 bilhões, dos quais R$ 8,76 bilhões seriam para o estado da Bahia, R$ 3,9 bilhões para Pernambuco, R$ 2,6 bilhões para o Ceará e R$ 219,4 milhões para Amazonas.

Como bem contraposto por Renato de Mello Jorge Silveira e Luiz Felipe Dias de Souza em relação à fala do ministro Paulo Guedes sobre o passivo do Fundef ser um "meteoro" a ser abatido pelo "míssil" de uma PEC de parcelamento de precatórios, meteórica é a postergação judicializada de dívidas decorrentes do inadimplemento de direitos fundamentais:

"De forma desmedida, (o ministro da Economia) manifestou-se com a pretensão de que o Judiciário deveria desconsiderar obrigações constitucionalmente postas e há muito conhecidas pelo próprio Poder Executivo — por exemplo, a questão do Fundef é discutida há mais de 15 anos. (…) Ou seja, a União litiga, abusa de seu direito de recorrer, coloca-se de forma irredutível em posições jurídicas claramente absurdas e depois não quer adimplir suas obrigações?
Guedes trabalhava para enviar uma primeira versão do orçamento no fim deste mês, para o próximo ano. 'Nós estamos mapeando um meteoro que pode atingir a Terra. Temos que disparar um míssil para impedir que o meteoro atinja a Terra', afirmou. 'Estamos ainda processando. As informações estão chegando. Pode ter certeza de que nós não furaríamos o teto — não é por causa do Bolsa Família. Tudo está sendo programado. Agora, às vezes vem coisas dos outros Poderes que nos atingem e aí nós temos que fazer um plano de combate imediato. Já tem uma fumaça no ar', afirmou à imprensa, sem dar detalhes.
Caberia questionar ao ministro, oportunamente, se o tal 'meteoro' não teria origem no cinturão do próprio Ministério da Economia. Veja-se, 15 anos de discussão apontam, necessariamente, para 15 anos de correção e juros. A duração razoável do processo levaria, obrigatoriamente, a uma dívida significativamente menor".

Enquanto o ministro da Economia jocosamente cita o ditado popular "devo, não nego, pago quando puder", a educação brasileira é prejudicada por abandono escolar, falta custeio para obras de infraestrutura e conservação predial, e a evasão escolar implica prejuízo anual de R$ 214 bilhões para a sociedade e a perda de aprendizagem será considerável e irrecuperável para os estudantes da rede pública de ensino.

Enfim, em nosso país tão desigual e semialfabetizado o passivo da falta de prioridade para a educação básica obrigatória é colossal, como evidenciam ilustrativamente as matérias acima. Todavia, é forçoso reconhecermos que o "duplipensamento fiscal" na seara educacional não é apenas cinismo. George Orwell profetizara, de forma contundente, que a escolha pela ignorância é deliberada e visa a perenizar a "insanidade controlada" que sustenta o poder indefinido dos que se beneficiam de mentiras superpostas há décadas, até porque, para esses e para seus subjugados súditos, "guerra é paz, liberdade é escravidão e ignorância é força".

 


[1] ORWELL, George. 1984. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 254.

[2] SOUZA, Fábio Araujo de. Inativos da educação: despesa da educação?. Revista Brasileira de Política e Administração da Educação – Periódico científico editado pela ANPAE, [S.l.], v. 35, n. 3, p. 1018, dez. 2019. ISSN 2447-4193. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/rbpae/article/view/95884>. Acesso em: 24 ago. 2020. DOI: https://doi.org/10.21573/vol35n32019.95884.

Autores

  • Brave

    é procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo, pós-doutora em Administração pela Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas da Fundação Getulio Vargas (FGV/RJ) e doutora em Direito Administrativo pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

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