Direito Eleitoral

Semipresidencialismo: considerações e oportunidade de adoção no Brasil

Autor

  • Rubens Beçak

    é mestre e doutor em Direito Constitucional e livre-docente em TGE pela Universidade de São Paulo. Professor associado da USP e professor visitante da Universidad de Salamanca (ESP). Membro da Abradep.

9 de agosto de 2021, 8h01

A política nacional tem seus modismos, seus momentos em que certas ideias, proposições, pensamentos afloram e parecem desencadear debate no qual as comunidades jurídica e acadêmica detém importância toda especial. O que acontece agora com a discussão sobre o semipresidencialismo é um desses momentos, juntamente com outros importantes temas como o modelo eleitoral, a participação dos militares na política, o equilíbrio entre os poderes etc.

Desde que me entendo por gente, o número de vezes em que vi isso ocorrer — muitas vezes com a efetiva apresentação de propostas de alteração constitucional (para além das legais) — se perdeu em minha memória.

Quero me ocupar aqui, neste importante foro de debates, sobre o semipresidencialismo.

É um sistema de governo? É um modo, uma logística diferenciada do presidencialismo se comportar? Um invencionismo político de ocasião (os famosos "casuísmos") para os tempos do governo Bolsonaro ou mesmo para a perspectiva de uma eventual eleição de Lula em 2022?

Aqui, vale a pena expender um pouco no aspecto histórico sobre as formas de governo: se ao tempo da absorção do ideal montesquiano pelas históricas e famosas constituições, americana de 1787 e francesa de 1791, a adoção do modelo da tripartição dos poderes idealizada pelo filósofo francês conduzia, na sua verificação mais óbvia, à constituição do regime presidencialista, o modelo logo veio a sofrer impacto na sua adoção empírica.

Referimo-nos, primeiramente, aos Estados Unidos, no qual a adoção do modelo federal do Estado e a implementação do sistema dos checks and balances, veio a configurar-se — especialmente considerada a idealização do Senate — contrapeso importante ao Poder Executivo. Também, com grande relevância, a observação do comportamento da "vitrine" do modelo do Barão, a "constituição dos ingleses"[1] Ali, é sabido que mesmo ao tempo da redação de "O Espírito das Leis", esse sistema político já sofrera alteração no seu evolver político, transmudando-se progressivamente no modelo parlamentar. O princípio da tripartição dos poderes vem a receber entorse sobretudo considerado que, para a formação do "Governo", necessária vem a se fazer intersecção entre os Poderes Executivo e Legislativo. Sem isto, inexistiria governo na flexão parlamentarista.

Com essas primeiras considerações, exsurge o fato de que a democracia representativa, a "democracia dos modernos",[2] expressar-se-á na sua perspectiva constitucional primeira na adoção do modelo da tripartição dos poderes, com a caracterização do modelo presidencialista, no qual os EUA são o vetor a influenciar rincões vários, notadamente a América Latina (e o Brasil republicano).[3]

Por outro lado, o modelo concorrente, o parlamentarista, de cepa empírica, não escrita (lembremo-nos da característica constitucional inglesa), ‘evolução’ do modelo triparticional, no qual, para o bem da formação do governo, a conjuminação entres dois dos poderes é essencial.

Dois modelos, duas perspectivas (os sistemas) que vão ensejar o surgimento de uma série de manifestações espacial e temporalmente diferenciadas (os regimes).[4]

Não há como não perceber as diferenças entre os regimes estadunidense e, v.g., os brasileiros republicanos todos que sempre conheceram a possibilidade da iniciativa legal e constitucional do presidente da República.[5] Ou as diferenças entre os regimes parlamentaristas calcados na matriz Westminster[6] e aqueles desenvolvidos em outras perspectivas como o francês "assembleísta" da 3ª República ou o alemão de Weimar, ou, hodiernamente, o israelense, o espanhol, o alemão ou o de vários países da Europa do Leste.

O semipresidencialismo
Nessa perspectiva histórica, momento notável é aquele ocorrido na debacle da 4ª República Francesa, no qual a condição imposta por De Gaulle para a assunção do poder[7] foi a alteração da perspectiva de exercício do regime parlamentar então vigente, visto como tíbio. Com a ‘reconstitucionalização forçada’, a que vai ser considerada como fundadora do novo ciclo constitucional, a relativização dos pressupostos dos sistemas até então conhecidos vai ser fulcral.

O sistema parlamentar restava demonizado, responsabilizado não somente pela instabilidade governamental,[8] como também, mesmo que indiretamente, por uma série de fraquezas daquele período (notadamente a questão argelina ou, anteriormente, a derrota de Dien Bien Phu).

O velho Marechal, com toda a força de sua legitimidade, gestará sistema híbrido no qual, mantendo-se as características gerais do sistema parlamentar de governo, o presidente da República assume função determinante no equilíbrio político, a garantir estabilidade no todo. Vale dizer, o chefe de Estado, agrega funções para além das tradicionais, passando a interagir com o governo, cabendo-lhe a nomeação do primeiro-ministro, a eventual dissolução do Parlamento etc.

É por isso que parte da doutrina não hesita em descrever que aqui, chefia de Estado e de governo estariam agregadas na Presidência da República, vendo o primeiro-ministro como um mero longa manus. Não o vemos assim: no modelo francês, o Chefe de Governo é o Primeiro-Ministro, responsável perante o Parlamento pelos assuntos de governo, a ele incumbentes. O que ocorre é que o presidente (o chefe de Estado), mormente considerada sua extrema legitimidade (eleito diretamente desde 1962) interage de forma "proativa" nesta seara.

Tanto assim é que a prática histórica tem sido a de formação dos governos, chefiados pelos primeiros-ministros, incumbidos por terem exatamente formado maioria para tal.

Isso levou, note-se, à eleição em determinados momentos históricos de maiorias de partidos diferentes do Presidente da República,[9] conduzindo ao fenômeno de formação da "cohabitacion".[10]

Nos períodos em que isso ocorreu, observou-se distanciamento maior do presidente do governo, tendendo a assumir papel mais associado ao tradicional das chefias de Estado, relegando ao primeiro-ministro esta tarefa.[11]

Um fato é inquestionável no ciclo político da 5ª República: o seu número de governos não se compara àqueles da 3ª e 4ª Repúblicas, permitindo maior governabilidade.

A importância da inovação francesa
A inovação francesa foi, de certa forma, a "pedra de toque" que possibilitou vislumbrar sistemática democrática e constitucional, no pós-guerra,[12] para além dos modelos tradicionais.

Uma série de países passaram a utilizar modelos assemelhados. Para além da questão da denominação, na qual vamos observar que a expressão semipresidencialismo vai se tornar a dominante,[13] uma série de particularidades serão observadas nos constitucionalismos que as adotam.[14]

São alguns exemplos importantes, os sistemas desenvolvidos, na Europa, em Portugal, Polônia, Romênia, Geórgia, Rússia,[15] dentre outros, em Madagáscar, Senegal, Moçambique etc., na África, ou na Ásia, v.g. Taiwan e Sri Lanka.

Aqui, "grosso modo", observam-se duas principais vertentes: na primeira, a atuação do presidente no governo não está a descaracterizá-lo como da essência parlamentar, ou seja, o presidente pode algumas coisas, mas não outras. Nestes regimes, o presidente nomeia o primeiro-ministro e o gabinete, mas a responsabilidade perante o parlamento permanece com os últimos, na tradição parlamentarista.[16] Aqui, além da França,[17] Portugal, Polônia e Senegal, por exemplo.

No segundo grupo, a responsabilidade do primeiro-ministro e de seu gabinete se dá tanto perante o parlamento quanto com o presidente. Há, por assim dizer, um "rasgo" maior em direção ao sistema presidencial; o poder de interferência dos presidentes é muito maior. Aqui, Rússia, Taiwan, Moçambique, para referir.

Cite-se ainda fenômeno outro, que é o de sistemas presidenciais tradicionais criarem a figura de um "superministro" a coordenar as atividades de governo em nome do presidente; são os casos assim de Argentina e Peru. Na primeira, a inovação veio com a reforma constitucional de 1994, com a criação da figura do chefe de gabinete, com atividade de exercer a coordenação governamental e ser o responsável pelas relações com o parlamento; no Peru, a existência do cargo de "primeiro-ministro" se dá desde meados do século 19, igualmente, na chefia e coordenação das tarefas governamentais e na relação com o Congresso. Inobstantemente, estas figuras não configuram de modo algum o deslocamento da chefia do governo da égide presidencial.[18]

Apesar da polissemia semântica, não se observa nestes dois casos qualquer alteração substancial na essência do regime presidencialista. Talvez, até em comparação grosseira, vislumbre-se paralelo com nossa Casa Civil.

Perspectivas no Brasil
Chegamos aqui ao momento de discorrer sobre a oportunidade da discussão do tema em nosso país e para isto propomos que fujamos do tão decantado debate das excelências dos sistemas presidencial e parlamentar, para nos fixarmos na realidade de que o Brasil pratica, desde 1889, o modelo presidencial, com a exceção do breve interregno parlamentarista.

Isso, de per se, já é algo que devamos considerar. Seria plausível a adoção de sistema estranho às nossas história e prática, em que pesem todas as propaladas virtudes do parlamentarismo? Seria possível — quanto a isto não sobram dúvidas — mas, a considerar, quantos anos de decantada prática presidencialista não estaríamos botando fora pela experimentação de modelo estranho? Ou, em outras palavras, quantas gerações futuras não teríamos que esperar para que uma eventual experiência parlamentarista viesse a se otimizar?

Percebam que ainda não referi algo fulcral: já não rechaçamos por duas vezes (1963 e 1993) a adoção do parlamentarismo?[19]

Bem, então o Autor estaria a desconhecer as (tradicionais) crises de nossa história política? Obviamente que não! Esta, para além dos períodos ditatoriais, é recheada de golpes e "contragolpes",[20] insurreições, levantes e revoluções, deposições, impeachments etc., para não mencionar os momentos de instabilidade política enorme.

Ou ainda, nos momentos de "normalidade", a percepção de que o funcionamento do nosso "presidencialismo de coalizão"[21] acaba sendo percebida por muitos como "presidencialismo de cooptação"

Ora, se todo o arrolado é verdade, não andaríamos em melhor senda se pudéssemos experimentar melhora de funcionamento em nosso tradicional e bem experimentado presidencialismo? Por que não buscar otimização de modelo já conhecido e, não se ignore, com profundo enraizamento na memória coletiva do povo brasileiro?

Um sistema que pudesse — já se disse — desatrelar qualquer crise de governo de possível crise de Estado, situação a que nos acostumamos a presenciar no acúmulo de atribuições de nossos presidentes. Talvez o semipresidencialismo, a estudar em qual melhor formulação, possa vir a assegurar o melhor de nossa tradição e costume com modernização necessária. Não devemos dispensar a reflexão, em prol da garantia de melhor governabilidade.

Ao tema voltaremos, com a vontade de contribuir para tão importante discussão, não antes de mencionarmos aos que vislumbram eventual "casuísmo" em qualquer tentativa de melhoramento institucional, que essa temática se encontra presente em nossa história há muitos e muitos anos, sendo muito pródiga nossa classe política na discussão. A doutrina, igualmente, sempre muito prolífica.

REFERÊNCIAS
BEÇAK, Rubens. Sucessão presidencial de 1955: aspectos políticos e jurídicos. São Paulo: J. de Oliveira, 2003.

_____. A hipertrofia do executivo brasileiro: o impacto da Constituição de 1988. São Paulo: Millennium, 2007.

DE JOUVENEL, Bertrand. As origens do Estado Moderno: uma história das ideias políticas no séc. XIX. São Paulo: Zahar, 1978.

FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Curso de Direito Constitucional. 41. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020.

LIJPHART, Arend. Modelos de democracia: desempenho e padrões governo em 36 países. Rio de Janeiro: C. Brasileira, 2003.

MONtesquieu (Charles-Louis de Secondat). O espírito das Leis. São Paulo, 2004.

TOCQUEVILLE, Aléxis de. A Democracia na América. São Paulo: Abril, 1985.

VIANSSON-PONTÉ, Pierrre. Histoire de la république gaullienne. Paris: Arthème Fayard, 1971.


[1] Montesquieu tratou do tema no famoso Capítulo VI do Livro XI d’ ‘O Espírito das leis’. Cf. p. 189-197.

[2] Cf. Bertrand de Jouvenel.

[3] No que Tocqueville percebe o papel dos EUA, como essencial. Cf. passim.

[4] Manoel Gonçalves Ferreira Filho sempre lecionou sobre a diferença. Cf.

[5] Para não dizer da legiferação, característica tão notável do Poder Executivo. Cf. Beçak (2007).

[6] Cf. Lijphart. p. 25 e s.s.

[7] Cf. Viansson-Ponté, p. 7-38.

[8] 21 Governos efetivamente incumbidos, entre o primeiro, chefiado por Ramadier, em 1947, e o último, De Gaulle, chefiando a transição, em 1958.

[9] Considere-se o descompasso entre as eleições presidenciais e as parlamentares.

[10] A coabitação ocorreu por três vezes: 1986/88, 1993/95 e 1997/2002.

[11] Há que aponte a maior dificuldade do fenômeno ocorrer após o ‘encurtamento’ do mandato presidencial francês (desde 2000), sobretudo verificado o menor lapso entre uma eleição e a outra.

[12] Weimar (1919-33) conheceu sistema semelhante.

[13] Denominação hoje preponderante, mas que durante muito tempo não foi aceita com tanta naturalidade, encontrando-se referências a presidencialismo mitigado, parlamentarismo mitigado, semiparlamentarismo etc.

[14] Esses sistemas todos, serão objeto de consideração, em sequência deste trabalho.

[15] Obviamente aqui utilizou-se conceito não necessariamente geográfico para a definição de continente.

[16] Em que isso possa ser relativizado em certas circunstâncias, face ao poder presidencial de dissolver o Parlamento e, assim agindo, provocar a queda do Governo.

[17] Em que pese aqui, parcela da doutrina entender a responsabilidade também perante o Presidente, com o que discordamos. O equívoco decorre basicamente de dois fatos: O primeiro é a possibilidade de o Presidente nomear Primeiro-Ministro que não seja representante da maioria ou mesmo parlamentar, como foi, por exemplo, a nomeação de R. Barre, em 1976. Mas isto acontece, diga-se, somente em momentos em que inexiste clara formação de maiorias, em momentos inter-eleições. O segundo, é que o Conselho de Ministros é presidido pelo Presidente.

[18] No caso peruano, a ‘confusão’ é um pouco maior pois o Primeiro-Ministro necessita obter o placet do Parlamento para assumir (assim como o Conselho de Ministros).

[19] Não me refiro, claramente, à que não possarmos voltar a fazê-lo – aliás não percebo óbice de ordem constitucional para tal – somente quis realçar a questão do ponto de vista histórico político.

[20] Tivemos a oportunidade de estudar momento significativo de nossa história, qual seja a ‘Novembrada’, como ficaram conhecidos os ‘contragolpes’ efetuados pelo Mal. Lott em novembro de 1955. Cf. Beçak (2003).

[21] A teoria desenvolvida por Abranches em 1988, com espesso comentário da doutrina.

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    é mestre e doutor em Direito Constitucional e livre-docente em TGE pela Universidade de São Paulo. Professor associado da USP e professor visitante da Universidad de Salamanca (ESP). Membro da Abradep.

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