Público & Pragmático

CPSI no Marco Legal das Startups: o que se vê e o que não se vê

Autor

  • Gustavo Schiefler

    é doutor em Direito do Estado (USP) advogado (Schiefler Advocacia) e professor (Zênite e IDP) em matéria de licitações públicas e contratos administrativos.

8 de agosto de 2021, 8h00

Após o surgimento de um diploma legal, é comum eclodir o seu processo de desbravamento, por meio do qual a comunidade jurídica perscruta suas disposições, a fim de que sejam descobertas, contextualizadas, domadas e amansadas.

Não é diferente com o novo Marco Legal das Startups (Lei Complementar nº 182/2021). O presente artigo exemplifica esse fenômeno: busca-se descobrir e contextualizar, em notas de destaque, o regime licitatório e contratual instituído pela referida norma.  

Como qualquer norma, em qualquer tempo, as suas características e efeitos pragmáticos podem ser: 1) visíveis, ou seja, imediatamente perceptíveis e compreendidos pelos intérpretes e destinatários; ou 2) não visíveis, isto é, incertos, ou menos óbvios, ou apenas esperados, ou até inconvenientes, não aferíveis de modo claro e incontroverso, ao menos em seu primeiro momento de vigência ou sem algum aprofundamento da análise [1].

O que se vê, de imediato à leitura, é que o Marco Legal das Startups instituiu, a partir de seus artigos 12 a 15, um microssistema licitatório e contratual para disciplinar o intitulado Contrato Público para Solução Inovadora (CPSI), em medida que materializa o "fomento à inovação e as potenciais oportunidades de economicidade, de benefício e de solução de problemas públicos com soluções inovadoras" (artigo 3º, VIII).

O que não se vê, contudo, talvez por ser conclusão contraintuitiva, é que este microssistema licitatório e contratual para a contratação de soluções inovadoras não é, em si, uma solução normativa inovadora. Há, inegavelmente, uma seleção de práticas consideradas como mais adequadas e modernas, mas nada revolucionário em relação aos regimes jurídicos concorrentes.

A rigor, mediante esforço de memória comparativa, torna-se espinhosa a missão de identificar algo que, isoladamente, seja inédito em relação à legislação preexistente, ou que não possa ser feito com base noutros diplomas vigentes, sobretudo quando considerada a nova Lei de Licitações (Lei nº 14.133/2021), a Lei das Estatais (Lei nº 13.303/2016) e todo o leque de modelagens contratuais para soluções inovadoras que foi estabelecido pelo Marco da Ciência, Tecnologia e Inovação (Lei nº 13.243/2016 e Decreto Federal nº 9.283/2018).

O que se vê, então, é um conjunto de disposições que avivam em nossa memória variantes conhecidas. Para quem tem familiaridade com as contratações públicas, a simples leitura da lei gera um grau razoável de compreensão do regime proposto, razão pela qual suas disposições dispensam descrição exaustiva, bastando um rol exemplificativo destacado:

1) Como faculdade ao gestor, permitiu-se a dispensa da descrição, no edital, da solução técnica a ser contratada, com suas especificações técnicas. Nesse caso, caberá aos licitantes a tarefa de criar e propor diferentes meios para a resolução do problema indicado. Ou seja, o edital poderá focar-se e restringir-se a indicar o problema a ser resolvido, com os resultados esperados pela administração pública (artigo 13, §1º). Essa peculiaridade é das mais harmônicas e vocacionadas à contratação de inovação tecnológica. A sistemática é semelhante ao que propõe a modalidade do diálogo competitivo, da nova Lei de Licitações, ou mesmo o objetivo dos procedimentos de manifestação de interesse (PMIs);

2) Como regra, previu-se que os preços das propostas não serão comparados objetivamente, e, sim, considerados em dois critérios de julgamento técnico, quais sejam: por ocasião da análise da viabilidade econômica da proposta e de sua relação entre custo e benefício (artigo 13, §5º);

3) Como faculdade, previu-se a possibilidade de celebração direta (ou seja, sem licitação) de contrato subsequente para o fornecimento do produto, do processo ou da solução resultante do CPSI (artigo 15), de forma muito semelhante ao que ocorre nas encomendas tecnológicas;

4) Como regra, previu-se o prazo máximo de vigência do CPSI em 12 meses e, como faculdade, a prorrogação por até 12 meses adicionais (artigo 14). Para o contrato de fornecimento subsequente, o prazo máximo de 24 meses, prorrogável por até 24 meses adicionais (artigo 15, §2º). Obrigatoriamente, também, o contrato deve conter matriz de riscos (artigo 14, §1º, III);

5) Como faculdade, permitiu-se, justificadamente, a antecipação da primeira parcela de pagamento ao contratado (artigo 14, §7º). Além disso, como regra geral, estabeleceu-se o limite de valor de até R$ 1,6 milhões para o CPSI e de R$ 8 milhões para o eventual contrato de fornecimento subsequente, além do dever de inclusão de uma matriz de riscos;

Esse breve apanhado permite confirmar o que sobredito: são regras e faculdades inspiradas em práticas preexistentes. São ingredientes utilizados noutras normas sobre licitações e contratos, que, aqui, encontram-se misturados em combinação única, e, diga-se, bem encadeada.

Mas essa inspiração, sem uma disrupção, significa também a preservação de problemas antigos.

O que se vê sobre o momento mais sensível de todo o certame, qual seja, o julgamento da licitação para a celebração de um CPSI, é que este ocorre de forma semelhante às licitações cujo critério de julgamento é técnica e preço ou melhor técnica. As propostas devem ser avaliadas e julgadas por comissão especial integrada por, no mínimo, três pessoas de reputação ilibada e reconhecido conhecimento no assunto. A composição deve necessariamente contemplar, pelo menos, um servidor público integrante do órgão para o qual o serviço está sendo contratado e um professor de instituição pública de educação superior na área relacionada ao tema da contratação.

O que não se vê, contudo, é que a designação de uma comissão especial para o julgamento técnico das propostas apresentadas na licitação revela-se solução historicamente problemática. É comumente frustrada a expectativa de se assegurar a tecnicidade e a impessoalidade por ocasião da atribuição de pontos às propostas técnicas das empresas licitantes. A agravante é que as licitantes frequentemente surgem e se desenvolvem em mercados restritos, com atores conhecidos pelos julgadores, que carregam experiências de relações pretéritas, diretas ou indiretas, as quais oportunamente se somam, no julgamento, aos elementos técnicos da proposta.

Se há subjetividades intrínsecas aos quesitos, como fazer para diferenciar, na prática, um julgamento eminentemente técnico de um julgamento essencialmente contaminado, mesmo que, involuntariamente, por elemento impróprio (amizades, inimizades, interesses ou preferências pessoais, achismos e arbitrariedades)?

Um avanço pragmático nesse quesito seria: 1) o desenvolvimento de uma cultura de rotatividade, por exemplo, a partir de chamamentos públicos para credenciamento de avaliadores; e 2) de maior sindicabilidade sobre as notas em licitações desta natureza, a partir do efetivo escrutínio das motivações apresentadas pelos julgadores para justificá-las. Atualmente, em licitações com julgamento de propostas técnicas, são raríssimas as ocasiões em que, diante de uma motivação inadequada ou inexistente, a nota do julgador é efetivamente corrigida pela Administração Pública ou por meio de provocação ao Poder Judiciário.

O que não se vê, também, é que inexistem incentivos adequados para o exercício dessa função sensível para licitação: o que atrairá um professor universitário a participar como julgador de um certame, se, como regra, esta função nem sequer é remunerada e, na prática, essa atividade pode o expor a riscos jurídicos significativos? Além da garantia de rotatividade, sugere-se, como medida de integridade, que haja transparência ao histórico de julgamentos de cada avaliador, revelação detalhada sobre conflitos de interesse e remuneração aos julgadores.

O que não se vê, ao menos claramente, é que, em se tratando de contratações públicas, não há como encontrar um ponto de equilíbrio ideal entre redução de burocracia e manutenção de controle sobre a Administração Pública. A consideração exclusiva dos resultados é inservível para balizar o controle quando o próprio atingimento do resultado idealizado, dada a natureza do objeto contratado, não pode e deve ser exigido. Nesses casos, o resultado não deve ser exigido, e, sim, recompensado. O equilíbrio verdadeiro, então, ocorre entre riscos e incentivos, sendo indispensável compreender que assumir riscos significa, sim, assumir naturalmente a possibilidade de perda financeira, de fracasso da solução planejada, de insucesso. Em inovação tecnológica, pode-se exigir o esforço, mas nem sempre o resultado.

O controle rigoroso de meios, por sua vez, é refratário à dinâmica intrínseca ao processo privado de inovação tecnológica, embora seja requisito para a existência de monitoramento mínimo. O Marco Legal das Startups segue, então, a lógica de controle mínimo de meios durante a execução do CPSI — por exemplo, monitoramento do esforço a partir de relatórios parciais de andamento da execução do contrato (artigo 14, §1º, I), prestação de contas para reembolso de custos (artigo 14, §3º), se aplicável. São riscos jurídicos menos comuns na seara estritamente privada, mas necessários à preservação dos interesses públicos.

O que se vê, de modo imediato, é mais um diploma legislativo criado para superar a dificuldade burocrática inerente às contratações de tecnologia pelo poder público. É ressabida a cotidiana insegurança a respeito da forma de seleção do particular e de modelagem contratual, acentuada pelo histórico conhecido de casos em que uma contratação não traz a eficiência tecnológica esperada.

O que não se vê, por outro lado, é que o excesso de modelagens contratuais disponíveis pode também causar dúvida e insegurança ao gestor público. De uma banda, incrementa-se a discricionariedade administrativa com nova opção; de outra, contudo, arrisca-se o excesso de opções, que traz complexidade ao dever de motivar a escolha.

Em face de tantas alternativas disponíveis, como justificar derradeiramente a decisão ótima? Ter de decidir entre múltiplas alternativas, especialmente quando possuem finalidades semelhantes (celebrar um CPSI com risco tecnológico, uma encomenda tecnológica, um contrato de impacto social — CIS — ou um contrato administrativo com remuneração variável?), não é necessariamente algo desejável ou eficiente. Excesso de opções pode embaraçar o processo de formação decisória, com maior dificuldade operacional para a instrução adequada do processo administrativo.

O que não se vê, então, é que a proliferação de leis esparsas sobre licitações e contratos administrativos gera complexidade jurídica e operacional custosa à Administração Pública brasileira. A cada nova modelagem contratual prevista em lei, um sem-número de recursos humanos e financeiros precisam ser despendidos para que a Administração Pública efetivamente absorva, conheça e se adapte às novidades normativas.

De qualquer modo, reconheça-se, uma lei especial para determinada espécie de contratação pode, sem contradição, ser benéfica nesta jornada em prol da redução da insegurança, caso passe a ser reconhecida pelos atores e órgãos de controle como vocacionada para tanto — o que nos leva ao próximo ponto.

O que não se vê, em todo esse contexto, é que, apesar de toda a boa vontade legislativa, as carências administrativas existentes na seara das contratações tecnológicas pela administração pública são muito mais culturais, contextuais e operacionais do que normativas, já que atualmente, como dito, concorrem outras modelagens contratuais tão ou mais flexíveis do que esta que foi dedicada ao CPSI.

Sob essa perspectiva, é comum que haja dificuldade em contratar inovação tecnológica por receio ou desconhecimento sobre como conduzir processos administrativos para contratação de inovação tecnológica, em fenômeno que causa paralisia administrativa e arruína a capacidade adaptativa dos órgãos e entidades públicos. A aposta, para reverter este quadro, é a intensificação de diálogos institucionais entre órgãos de controle, órgãos jurisdicionados e comunidade jurídica, para que haja a disseminação de boas práticas e a formação de um importante consenso cultural: no caso de inovação tecnológica, o resultado útil pretendido com o contrato pode, naturalmente, não ser atingido.

O que se não vê, ainda nesse contexto, é que frequentemente as startups encontram obstáculos para colocar em prática, simplesmente, os seus pitchs dedicados às dores do setor público. Querem vender, querem ajudar, mas não sabem como se comunicar. Mesmo para as GovTechs, mais acostumadas com o ambiente público, são obscuras as regras de integridade aplicáveis sobre a cotidiana conduta de dialogar com os agentes públicos potencialmente interessados em suas soluções. Portanto, outro ponto essencial para a maturidade da norma, solucionável a partir de regulamentação: não há regras claras sobre a forma com que os diálogos público-privados devem acontecer (note-se, por exemplo, a insuficiência e até o desconhecimento sobre a existência de normas como a do Decreto Federal nº 4.334/2002).

E por falar em regulamentação, o que não se vê também é o relevante impacto que normas infralegais podem ter sobre as contratações de soluções inovadoras pelo poder público, em superação até mesmo do impacto legislativo. Um exemplo, sem adentrar ao seu mérito: a Resolução nº 335/2020, do CNJ, indicativa, por exemplo, de que o eventual contrato administrativo de solução tecnológica deve prever, em favor da Administração Pública, o direito de compartilhamento não oneroso da solução na Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ), além do direito à propriedade do que for desenvolvido e direito aos códigos fonte, documentação e quaisquer outros artefatos que venham a ser produzidos.

Por fim, o que se vê é que, sem inovação tecnológica, o poder público remanescerá incapaz de materializar suas obrigações constitucionais prestacionais, e que, sim, a iniciativa privada costuma desenvolver soluções inovadoras que interessam ao exercício da função administrativa. As GovTechs prometem ocupar este importante vácuo no mercado brasileiro. Mas ninguém quer se ver pessoalmente entranhado a uma tomada de contas especial daqui a cinco ou dez anos.

Essa projetada segurança jurídica depende do desbravamento e consolidação das boas práticas jurídicas decorrentes do Marco Legal das Startups, o qual se encontra em processo de domação, amansamento. Por tal razão, é relevante maturar-se para além do que se vê no texto legal.

 


[1] Este exercício analítico inspira-se na metodologia retórica empregada pelo economista e jornalista Frédéric Bastiat no clássico ensaio em que buscava decifrar o que se vê e o que não se vê de determinados atos públicos. Cf. BASTIAT, Frédéric. O que se vê e o que não se vê. In: BASTIAT, Frédéric. Frédéric Bastiat. 2ª edição. São Paulo: Instituto Ludwig von Mises, 2010. 

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