Opinião

A capsaicina e a violência psicológica contra a mulher

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8 de agosto de 2021, 13h14

Se o(a) leitor(a) ingerir uma quantidade excessiva de pimenta, vai sentir sua boca queimando. Intuitivamente, muito(as) de nós vamos beber água gelada para aliviar essa sensação, como faríamos no caso de uma queimadura por fogo. Infelizmente, a "queimadura" por pimenta não é uma queimadura real. É uma irritação provocada por uma substância presente na pimenta, chamada capsaicina. A capsaicina não é solúvel em água. Por isso, se você beber água, só vai espalhá-la mais na sua língua. O que piora a sensação de queimadura.

Agora, você deve estar se perguntando: o que a capsaicina tem a ver com violência psicológica contra a mulher? Diretamente, nada. Além de ser um fato interessante sobre pimentas e sobre solubilidade de líquidos, a questão a capsaicina ilustra como, muitas vezes, soluções que parecem intuitivas não funcionam. Ou até pioram o problema.

Em 2006, foi editada a Lei 11.340. Recebeu o nome de Lei Maria da Penha, em homenagem a Maria da Penha Maia Fernandes, que ficou paraplégica depois de ser alvejada na coluna por um marido abusivo, que ela já havia denunciado diversas vezes às autoridades, as quais falharam em protegê-la. A lei promoveu diversas mudanças na legislação e procurou endurecer o tratamento penal de crimes que vitimavam mulheres. De lá para cá, o número de mulheres mortas por atos de violência doméstica aumentou.

Daí, foi editada em 2015 a Lei 13.104, que criou um crime chamado "feminicídio". Esse crime tem uma pena maior do que a do homicídio simples, e consiste em matar mulheres por motivos relacionados ao gênero.

De lá para cá, o número de mulheres mortas oscilou mais ou menos em torno do mesmo número: entre quatro e 4,5 a cada cem mil habitantes, em torno de 4,5 mil mulheres mortas por ano vítimas de violência. Há indícios de que esse número tenha crescido por causa do confinamento derivado da pandemia.

Agora, em 2021, foi editada a Lei 14.188, que estabelece o crime de violência psicológica contra a mulher e cria uma forma mais grave de lesão corporal quando praticado por razões de gênero. Notaram o padrão?

Há várias questões jurídicas interessantes no novo crime de violência psicológica. Uma delas é o fato de que, quebrando a tradição da técnica legislativa no Direito Penal brasileiro, a redação do texto é incrivelmente complexa e rocambolesca. Para ter uma ideia, o novo texto, inserido no artigo 147-B do Código Penal, tem 55 palavras. Para comparar, o crime de ameaça, de natureza similar ao novo crime, tem 18 palavras — cerca de um terço. E o crime de homicídio, o texto mais conciso do Código Penal, tem somente duas palavras ("matar alguém", para quem ficou curioso).

Esse preciosismo e a proliferação de palavras conspiram contra a efetividade da criação do crime. Afinal, a acusação tem de provar todos os elementos do crime. Cada elemento corresponde a uma ou poucas dessas palavras. Num crime de 55 palavras, a acusação tem talvez dezenas de circunstâncias a provar para condenar um acusado.

Porém, não é essa a questão principal. A questão principal é que, apesar das boas intenções, criar novos crimes — ou novas leis penais, em geral— é uma estratégia ineficiente para atingir objetivos louváveis como tentar proteger a mulher da vitimização pelo machismo na sociedade brasileira.

A lógica do Direito Penal, ao criar crimes, é uma lógica individual. O crime vale para qualquer pessoa, mas avaliar se uma pessoa cometeu crime envolve uma série parâmetros individuais, de cada caso. A pessoa tem de praticar uma ação que seja correspondente ao modelo da lei penal (nesse caso, com 55 palavras!), a pessoa tem de ter a intenção consciente de praticar essa ação, ela tem de estar em uma situação não justificada, entre outros parâmetros.

Para que novos crimes ou penas mais duras gerem um resultado coletivo, ou um número grande de pessoas que cometeram crimes precisam ser punidas, ou uma quantidade enorme de pessoas têm de ter medo de ser punidas. Idealmente, um misto dos dois. Isso é muito difícil de conseguir. Ainda mais em crimes com redações rocambolescas e com agentes do sistema de Justiça Criminal com orçamentos apertados, quase todos gastos em operações custosas contra tráfico de drogas.

Raciocínio similar vale para medidas jurídicas não penais, como as medidas protetivas da Lei Maria da Penha ou a criação de redes de proteção de vítimas. Essas medidas vão ser tão eficazes quanto os agentes do poder público forem capazes, inclusive financeiramente, de colocá-las em prática.

No caso da Lei Maria da Penha, até há evidências de que ela funcionou, modestamente, para diminuir o ritmo de aumento de mortes contra mulheres. Se as evidências estão corretas, isso aconteceu, provavelmente, não porque a lei em si foi criada, mas porque sua criação motivou mudanças de comportamento de diversos atores sociais, incluindo autoridades públicas.

Essas mudanças de comportamento podem ser buscadas sem a criação de leis, que geram efeitos colaterais muitas vezes imprevisíveis. Está na hora de parar de confiar na intuição de criar leis, criar crimes e aumentar penas automaticamente melhora a situação de vítimas. É uma solução fácil, intuitiva, mas, frequentemente, equivocada. Beber leite, iogurte ou comer pão puro com miolo macio funcionam melhor contra pimenta. Buscar políticas públicas sem leis grandiosas tende a funcionar melhor contra a violência.

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