Opinião

Fishing expedition e quebra de sigilo com base em coordenadas geográficas

Autor

  • Daniel Soares de Andrade

    é assistente de magistrado no Tribunal de Justiça do Estado do Paraná pós-graduando em Direito Contemporâneo e pesquisador nas áreas de Direito Penal e Processual Penal.

8 de agosto de 2021, 17h14

O presente estudo busca diferenciar a quebra de sigilo de dados com base em coordenadas geográficas da chamada técnica de pesca, ou fishing expedition.

Começamos, então, conceituando a técnica de pesca, tida como expediente utilizado pelos órgãos de repressão em que uma rede é acionada sobre determinado grupo de pessoas, visando à coleta de elementos de prova de forma discricionária e aleatória. Trata-se de uma técnica prospetiva que desconsidera o fato de que muitas pessoas inocentes serão averiguadas.

Sobre o tema, Aury Lopes Jr. e Alexandre Morais da Rosa se manifestaram efusivamente contra a utilização do fishing expedition nos casos dos chamados mandados coletivos de busca e apreensão, nas regiões de periferia. Segundo os autores, tal prática implica em uma violação sistemática de direitos fundamentais, que não se compatibiliza com o Estado democrático de Direito, ou seja, está em desacordo com os mandamentos constitucionais [1].

Não se descura que a ideia de utilização dos mandados coletivos de busca surgiu no contexto da intervenção federal [2] ocorrida no estado do Rio de Janeiro, decorrente de uma aparente crise na segurança pública, durante o governo do então presidente Michel Temer.

Aliás, há muito o estado do Rio de Janeiro tem sido palco de iniciativas violadoras de direitos fundamentais. A esse respeito, citamos o exemplo da utilização de balão dirigível nas favelas, no ano de 2002, visando à gravação de delitos nas favelas, violando a privacidade de toda a comunidade. Sobre o tema, Carlos Roberto Bacila se posicionou contrariamente a tal iniciativa, afirmando que a medida de fiscalização é fundada em uma concepção estigmatizante de que moradores da favela cometem mais delitos do que residentes em outras áreas [3].

Trata-se, ao nosso ver, de mais um exemplo da técnica de fishing expedition.

Na sequência, nunca é demais lembrar que a expedição de mandados de busca e apreensão deve seguir os rígidos requisitos do Código de Processo Penal, que em seu artigo 243, inciso I, preceitua que o mandado deverá indicar, o mais precisamente possível, a residência em que será realizada a diligência. Em suma, para a autorização judicial da busca e apreensão é necessário o preenchimento dos requisitos do fumus comissi delicti e do periculum in mora, além da comprovação do vínculo entre o imóvel e o suspeito do crime.

É, pois, evidente que a expedição de mandado de busca e apreensão coletivo, mesmo que com prévia autorização judicial, afronta diretamente o direito constitucional à inviolabilidade de domicílio e não se compatibiliza com a própria disciplina do Código de Processo Penal.

Em outro artigo, de autoria também de Alexandre Morais da Rosa, o autor define fishing expedition como sendo a "procura especulativa, no ambiente físico ou digital, sem 'causa provável', alvo definido, finalidade tangível ou para além dos limites autorizados (desvio de finalidade), de elementos capazes de atribuir responsabilidade penal a alguém" [4].

Ainda segundo o referido autor, seriam hipóteses de fishing expedition:

a) Busca e apreensão sem alvo definido, tangível e descrito no mandado (mandados genéricos);

b) Vasculhamento de todo o conteúdo do celular apreendido;

c) Continuidade da busca e apreensão depois de obtido o material objeto da diligência;

d) Investigações criminais dissimuladas de fiscalizações de órgãos públicos (Receita Federal, controladorias, Tribunais de Contas, órgãos públicos etc.);

e) Interceptação ou monitoramento por períodos longos de tempo;

f) Prisão temporária ou preventiva para "forçar" a descoberta ou colaboração premiada ou incriminação;

g) Buscas pessoais (ou residenciais) desprovidas de "fundada suspeita" prévia e objetiva; e,

h) Quebra de sigilo (bancário, fiscal, dados etc.) sem justificativa do período requisitado [5]

Por vezes, a técnica do fishing expedition está relacionada com investigações prévias, antes mesmo da instauração do inquérito policial, outras vezes com procedimentos já formalizados.

Renato Brasileiro de Lima também se posiciona contrariamente ao expediente de pesca. Veja-se:

"É dizer, se ninguém pode ser submetido indevidamente ao constrangimento ilegal decorrente de um processo criminal leviano e temerário (strepitus judicii), tampouco pode ser desarrazoadamente objeto de investigação indevida (strepitus investigationem). Com efeito, vedadas que são as denominadas fishing expeditions, não se pode admitir a deflagração de um procedimento investigatório sem um mínimo de indícios acerca da materialidade e/ou autoria de um ilícito" [6].  

Já a quebra de sigilo de dados com base nas coordenadas geográficas, por sua vez, ocorre quando a autoridade policial ou membro do Ministério Público requisita informações informáticas de um número não especificado de pessoas, com base em parâmetros geográficos para, então, colher indícios de autoria.

Trata-se de uma técnica de investigação bastante eficaz, sobretudo em casos complexos em que, inicialmente, não há qualquer evidência acerca da autoria. Sem a efetivação da medida, muitos casos graves estariam predestinados ao arquivamento. 

Esse tipo de quebra de sigilo de dados ficou conhecido no Brasil por sua utilização nas investigações do assassinato da vereadora do munícipio do Rio de Janeiro Marielle Franco e de seu motorista, Anderson Gomes.

Na ocasião, o Juízo da 4ª Vara Criminal da Comarca do Rio de Janeiro requisitou à empresa Google dados de usuários que transitaram no local do crime. Entretanto, a empresa recorreu da decisão judicial, alegando que a requisição dos dados seria medida inconstitucional, por afronta à inviolabilidade de sigilo de comunicações e de dados. A questão chegou ao STJ e, então, a 3ª Seção da corte superior ratificou a validade da medida, assentando o seguinte entendimento:

"Logo, a quebra do sigilo de dados armazenados, de forma autônoma ou associada a outros dados pessoais e informações, não obriga a autoridade judiciária a indicar previamente as pessoas que estão sendo investigadas, até porque o objetivo precípuo dessa medida, na expressiva maioria dos casos, é justamente de proporcionar a identificação do usuário do serviço ou do terminal utilizado" [7].

Trata-se, em verdade, de um julgado paradigma que deve basilar o estudo do tema. Um dos pontos fulcrais é que a quebra de sigilo de dados com base em coordenadas geográficas não é hipótese de inviolabilidade de sigilo de comunicações e de dados, nos termos do artigo 5º, inciso XII, da CF. Em verdade, os dados de localização nada dizem respeito às comunicações pessoais, em que pese sejam considerados dados privados que possuem proteção constitucional [8].

Por consequência, não se assemelha a quebra de sigilos de dados em questão com o ingresso em residência alheia. Também não há de se falar em aplicação da Lei de Interceptações Telefônicas (Lei nº 9.296/1996) na quebra de sigilo de dados com base em parâmetros geográficos, eis que tais informações não estão em fluxo, ou seja, não há uma comunicação propriamente dita a ser interceptada, tratando-se de dados estáticos (armazenados). 

O diploma aplicável para o caso em questão é o chamado Marco Civil da Internet (Lei nº 12.965/2014), que, em seu artigo 22, prevê expressamente a possibilidade de requisição de dados de registros de conexão ou de registros de acesso a aplicações de internet, mediante a demonstração de: 1) indícios da ocorrência de ilícito; 2) justificativa motivada da utilidade dos registros para fins de investigação criminal ou instrução probatória; e 3) período ao qual se referem os registros.

Tal quebra de sigilo estará resguardada pela reserva de jurisdição, ou seja, demandará autorização judicial. Contudo, como se vê, o Marco Civil da Internet nada dispõe sobre a necessidade de demonstração de indícios de autoria. Ao nosso ver, está prejudicada a arguição de necessidade de individualização de autoria para quebra de sigilo com base em parâmetros de localização.

Em resumo, enquanto a técnica do fishing expedition busca colher indícios da prática de crimes que se desconhece e de maneira discricionária, ou seja, sem um objetivo prévio, na quebra de sigilo de dados em estudo já existe uma investigação em curso, sendo necessária a averiguação de pessoas que possam possuir alguma relação com o delito investigado.

Não se ignora que o tratamento do sigilo de dados demanda do Estado uma atuação negativa, evitando-se, sempre que possível, a efetivação da medida invasiva. Entretanto, uma vez que há previsão legal que autorize o levantamento de tal sigilo, não deve prosperar a arguição de inconstitucionalidade, sobretudo, considerando que os direitos fundamentais não são absolutos e podem sofrer ponderação no caso em concreto, quando em confronto com outros valores constitucionais de igual relevância, tais como o direito à segurança pública. 

Na sequência, vislumbra-se que a medida não visa a levantar o sigilo de dados de quaisquer pessoas, discricionariamente, sem um objetivo prévio ou qualquer tipo de parâmetro. Antes, a requisição deve ser instruída com parâmetros geográficos claros, demonstrando que a área pesquisada tem relação direta com o crime investigado.

Também não se ignora que o Marco Civil da Internet não dispõe expressamente sobre a quebra de sigilo não individualizada. Entretanto, entendeu o STJ que a finalidade precípua da lei é justamente possibilitar a identificação dos autores do crime, devendo existir um filtro investigativo para que os dados de usuários que não importem para a investigação sejam descartados. Em outras palavras, os dados de pessoas inocentes ainda estarão sob sigilo e não deverão ser divulgados a terceiros, em qualquer hipótese.  

Com isso, o entendimento do STJ foi no sentido de reconhecer a constitucionalidade e a proporcionalidade da medida de requisição de dados pessoais, acerca de um número não especificado de pessoas, que tiveram alguma possível relação com o crime investigado, com base em parâmetros geográficos. Defendemos, assim, a legalidade e constitucionalidade da medida, nos moldes do supracitado julgado do STJ.

 


[1] ROSA, A. M.; LOPES J. A. A ilegalidade de fishing expedition via mandados genéricos em "favelas". Disponível em: https://www.conjur.com.br/2017-fev-24/limite-penal-fishing-expedition-via-mandados-genericos-favelas#author. Acesso em: 26 julho 2021.

[2] Diferentemente do Estado de Sítio e do Estado de Defesa, não há a possibilidade de restrição aos direitos fundamentais na vigência de Intervenção Federal, nos termos da Constituição Federal. Aliás, uma das hipóteses que ensejam a decretação da Intervenção Federal é justamente a violação de direitos humanos, nos termos do artigo 34º, inciso VII, alínea 'b' da CF.

[3] BACILA, Carlos Roberto. Estigmas: um estudo sobre os preconceitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris: 2005, pág. 200.  

[4] ROSA, Alexandre Moraes da. A prática de fishing expedition no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 26 julho 2021.

[5] ROSA, Alexandre Moraes da. A prática de fishing expedition no processo penal. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-jul-02/limite-penal-pratica-fishing-expedition-processo-penal. Acesso em: 26 julho 2021.

[6] LIMA, Renato Brasileiro de. Manual Processo Penal Volume Único. 8. ed. rev. atual. ampl. Salvador: JusPodivm, 2020, pág. 197.

[7] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Agravo Regimental no Recurso em Mandado de Segurança n° 61.302/RJ. Terceira Seção. Relator Rogerio Schietti Cruz. Disponível em: https://sconºstj.jus.br/SCON/GetInteiroTeorDoAcordao?num_registro=201901991320&dt_publicacao=04/09/2020. Acesso em: 27 de junho 2021.

[8] Segundo o entendimento do STF, os dados informáticos são protegidos pela cláusula de proteção do artigo 5º, inciso X, da CF que dispõe "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação". 

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