Opinião

O relatório da conversão da MP 1.045/2021: Uma (es)quadra de erros

Autores

  • Guilherme Guimarães Feliciano

    é juiz do Trabalho titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (15ª Região) e professor da FDUSP.

  • Rodrigo Trindade

    é juiz do Trabalho no TRT-4 (RS). Mestre em Direito das Relações Sociais pela UFPR. Especialista em Direito do Trabalho pela UDELAR (Montevideo-Uy) e pela Unibrasil (Curitiba-PR). Professor de Direito Material e Processual do Trabalho

8 de agosto de 2021, 18h29

Reincidir no erro é falhar duas vezes. Já repetir dois erros performa uma quadra de equívocos, inspirando preocupações, porque as coisas começam a ficar bem mais sérias. Erros sucessivos e deliberados insinuam-se já não como erros, mas como estratégia para subverter a fórceps o que não poderia ser subvertido. E, nesse caso, já não há incidentes, mas beligerância. Ou, em um licencioso trocadilho: já não há uma "quadra", mas uma esquadra de erros: cada erro funciona como um vaso de guerra, para coordenadamente romper com as linhas de defesa do "adversário".

Spacca
Guilherme Guimarães Feliciano

Pois bem: o relatório parlamentar para conversão em lei da MP 1.045/2021, que "institui o Novo Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda e dispõe sobre medidas complementares para o enfrentamento das consequências da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus (Covid-19) no âmbito das relações de trabalho", equivoca-se em forma e conteúdo. Vulnera normas-princípios que edificam o próprio Direito do Trabalho. E tudo isso pela segunda vez.

Vejamos.

A MP 1.045/2021 reedita políticas previstas na Lei 14.020/2020, a qual teve origem na MP 936/2020. Esses dois últimos diplomas já haviam merecido acerbas críticas da doutrina, em diversos pontos. À altura, o relatório parlamentar de conversão da MP 936/2020 em lei buscava inicialmente enxertar diversas matérias estranhas ao tema original. Isto agora se repete, na discussão parlamentar da MP 1.045/2021. Naquela primeira ocasião, como a prática já era suficientemente reconhecida como indevida, os "contrabandos" foram posteriormente retirados e apenas se mantiveram emendas na matéria pertinente.

No Brasil, o Decreto Legislativo n. 6/2020 definiu que a crise de emergência sanitária deveria ir até 31/12/2020; e, ao não ser renovado, impediu a continuidade de importantes políticas governamentais. Não por outra razão, aliás, o Poder Judiciário precisou intervir, nos autos da ADI nº 6.625-DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 5.3.2021 (em que se decidiu, no campo sanitário, manter vigentes as medidas excepcionais previstas na Lei 13.979/2020, "mesmo porque à época de sua edição [do Decreto Legislativo n. 6/2020] não lhes era dado  [aos parlamentares] antever a surpreendente persistência e letalidade da doença", que, como se sabe, protagonizou uma agressiva "segunda onda" no início deste ano.

A Lei 14.020/2020 (originada da MP nº 936/2020) alcançou 9,8 milhões de empregados e suas medidas foram utilizadas por cerca de 1,5 milhão de empregadores de todo o país. Graças a esse programa, foi possível efetuar o pagamento de R$ 3,7 bilhões aos trabalhadores atingidos com suspensão contratual ou redução proporcional de jornada e salário. Trata-se, aqui, de medida que evitou fechamento de milhares de empresas e consequentemente manteve, ainda que minimamente, as condições de sobrevivência de famílias que fatalmente seriam atingidas pelo desemprego.

O programa governamental possuía deficiências e inadequações pontuais, é certo. Tais problemas foram identificados desde seu nascedouro, por diversos segmentos da doutrina e da jurisprudência nacionais. Indicamos apenas os mais preocupantes. De um lado, deixava de reconhecer, de forma efetiva e séria, o inapelável papel das entidades sindicais, dando preferência pela intrínseca insegurança de acertos individuais para definir consequências graves. De outra banda, os benefícios gerados para empregadores não são acompanhados de claras contrapartidas aos trabalhadores afetados, nomeadamente com a outorga de real estabilidade no emprego.

Como todos percebemos, seguem vigentes as restrições econômicas decorrentes da necessidade de menor circulação social. Tudo isso faz perceber o encaminhamento de uma convergência, em todos os Poderes da República, quanto à necessidade de prosseguimento das políticas públicas de garantia de empresas, empregos e renda.

E agora?

À partida, a Medida Provisória n. 1.045, de 27.4.2021, permite nova rodada do PEMER (Programa Emergencial de Manutenção do Emprego e da Renda) e (re)autoriza  o pagamento do BEM ou Beper nas hipóteses de suspensão temporária de contratos individuais de trabalho e de redução proporcional de jornada e salário. No Congresso, a MP 1.045/2020 recebeu relatório para possível conversão em lei; e, mais uma vez, o relator desbordou dos limites esperados para a sua atuação. O texto resultante, que deveria — como diz a Constituição — limitar-se a eventuais aperfeiçoamentos no conteúdo da MP, respeitando o seu objeto e a sua finalidade (a saber, enfrentar a pandemia no mundo do trabalho), reincidiu no vício e acabou por inocular organismos totalmente estranhos ao diploma originário. Erra na forma e no conteúdo, mais uma vez.

Entre outras "novidades", vale registrar desde logo as seguintes:

(a) a instituição do Programa Primeira Oportunidade e Reinserção no Emprego (Priore), nos artigos 24 e seguintes do PLV, ressuscitando a problemática figura da “carteira verde-amarela”, agredindo a isonomia constitucional (CRFB, art. 5º, caput) e a própria imperatividade do artigo 7º da CRFB;

(b) a criação do Regime Especial de Trabalho Incentivado, Qualificação e Inclusão Produtiva (Requip), nos artigos 43 e seguintes do PLV, a veicular igualmente matéria estranha ao texto original da medida provisória, promovendo exploração da mão-de-obra em condições de sub-reptícia precariedade; e

(c) alteração de preceitos legais atualmente em vigor, reduzindo direitos sociais e relativizando garantias trabalhistas, a reboque do discurso do "barateamento" da força de trabalho e, para mais, revitalizando ideias que se imaginava superadas em legislaturas pregressas.

Vejamos, porém, com maior cautela.

 A oportunidade da conversão em lei da MP 1.045/2021 deveria ser ocasião de reafirmação da necessidade do agir estatal firme no sentido da proteção social; e, em paralelo, de atuação consistente na correção dos defeitos que já haviam sido apontados no Pemer original, a ponto de suscitar inúmeros processos judiciais e consequentes passivos empresariais. Mas não é o que se viu; e nem o que se segue a ver.

No lugar da sempre pretendida "segurança jurídica" — tão propalada e tão pouco praticada —, o relatório de conversão da MP em lei incorreu em novos equívocos e suscitou redobradas inseguranças. Segue a censurável estratégia dos "jabutis" legislativos, que vem sendo repetida — e repelida — nos últimos anos: tenta-se inserira a fórceps, no texto original, matérias estranhas ao tema de fundo da medida provisória, com diversos subterfúgios retóricos de "conexão". Na espécie, entranham-se enxertos que propõem a criação de amplos programas, proponíveis a qualquer tempo, e modificações de diversos artigos da legislação trabalhista em vigor, resgatando propostas já superadas ao tempo da MP n. 905/2019 e da MP 936/2020. Tudo sem qualquer relação, insista-se, com o objeto e a finalidade da MP 1.045/2021.

Quanto ao Priore, o relatório revive os piores ensejos da MP 905/2019, como o seu midiático — e pouco efetivo — "contrato verde e amarelo". Em poucas palavras, dirige-se à contratação, por prazo determinado, de pessoas com idade entre 18 e 29 anos; e se estende também a trabalhadores com idade igual ou superior a 55. Ou seja: como alternativa para as altas taxas de desemprego, especialmente entre jovens e idosos, opta-se pela precarização desses contratos, com redução da contribuição para o FGTS e remuneração máxima de dois salários mínimos, somando-se à "Bolsa de Incentivo à Qualificação" (BIQ) e ao pagamento de um bônus pelo FAT (BIP).

Em relação ao Requip, restaura-se um modelo também testado pelo Governo Federal nos primeiros meses de 2020, igualmente sob a égide da caducada MP 905/2019. Cuida-se de um regime especial de trabalho "incentivado", com duração máxima por dois  anos, com os trabalhadores "elegíveis" – basicamente pessoas entre 18 e 29 anos, sem emprego formal nos dois anos anteriores e inscritos no cadastro único para programas sociais, com renda mensal familiar de até dois salários mínimos —, tudo sem vínculo empregatício (mas com jornada de trabalho e com vale-transporte!), ao qual se associam iniciativas de qualificação profissional, em que o beneficiário faria jus ao mesmo BIP e ao mesmo BIQ (supra), cada qual no valor máximo de R$ 275,00, totalizando máximos R$ 550,00/mês. Como se vê, menos que o salário mínimo nacional e ao arrepio do que dispõe o artigo 7º, IV, da CRFB. 

O projeto de conversão da MP ainda segue precarizando o sistema nacional de fiscalização, diminuindo a autonomia do Ministério Público do Trabalho, estendendo jornadas laborais e reduzindo o adicional de horas extras para profissões com jornada diferenciada, ampliando o pagamento de prêmios em detrimento de salários etc. São temas sem qualquer relação com o pontual e temporalmente limitado enfrentamento das consequências trabalhistas da pandemia.

Por fim, como gran finale, o projeto avança em campos absolutamente inauditos, ainda mais grotescamente diversos, dispondo sobre Juizados Especiais Cíveis e Criminais no âmbito da Justiça Federal e sobre exames periciais em ações previdenciárias. Como se não bastasse, propõe alteração no texto do Código de Processo Civil e se perde assustadoramente entre outros tantos imprevisíveis "jabutis" processuais, em contraste com a diretriz constitucional explicitamente impeditiva da integração de regras processuais nos textos de medidas provisórias (artigo 62, §7º, I, "b", da CRFB). Trata-se, é claro, de intervenção legislativa póstera, por iniciativa parlamentar incidental; mas não deixa de impressionar o uso "estratégico" de uma espécie legislativa em cuja iniciativa originária não se poderia alterar legislação processual. E, nesse afã, segue na tentativa de modificação de disposições relativas ao acesso à Justiça, ao procedimento para homologação de acordos extrajudiciais, às condições para o benefício de justiça gratuita e ao pagamento de honorários sucumbenciais.

O processo de conversão da medida provisória em lei convola uma iniciativa momentânea do Executivo em ato permanente do Parlamento. A prerrogativa de apresentação, no curso do processo legislativo, de emendas aos textos das espécies normativas em tramitação no Congresso Nacional é inerente ao exercício da atividade parlamentar. Mas não é absoluto. Trata-se de consequência necessária da efetiva participação dos membros das Casas Legislativas no processo de elaboração, redação, alteração e consolidação das leis. A efetiva participação do Parlamento faz-se a partir do circuito de integração em comissões, com apreciações sucessivas sobre diferentes óticas. Nessa direção, a prerrogativa de emendar jamais deveria se confundir com a própria iniciativa legislativa, muito menos na hipótese de projeto de conversão de MP.

Aliás, a tentativa de inserir temas estranhos ao texto original de medida provisória não é nova. O STF já teve oportunidade de reconhecer a inadequação do procedimento, por agredir expressos dispositivos da Constituição. No julgamento da ADI n 5.127, declarou-se que a prática dos "jabutis" viola o devido processo de tramitação legislativa e descumpre o compromisso democrático anotado na Constituição.

E há justificativas da essência da democracia parlamentar que impedem a prática. Os enxertos são feitos a partir de um nítido “furar a fila”: pretende-se valer do regime de tramitação sumária para alijar a sempre necessária apreciação profunda dos temas pelo Congresso Nacional. Isso diminui o Parlamento e enfraquece o regime democrático. Não por outra razão, em seu voto na ADI n. 5127, o Min. Edson Fachin advertiu que, "quando uma MP, ao ser convertida em lei, passa a tratar de diversos temas inicialmente não previstos, o seu papel de regulação da vida comum vê-se enfraquecido no que diz respeito à legitimação pelo procedimento democrático". Os atropelos em temas com amplas e permanentes repercussões socioeconômicas apenas poderão conduzir a dificuldades de adequação com o sistema jurídico nacional, especialmente com a Constituição.

Para completar, o conteúdo dos enxertos ora em causa insiste em um rumo já comprovadamente desatinado: o de associar redução dos níveis de proteção trabalhista com a diminuição de desemprego e/ou o crescimento econômico. Nesse estranho looping de coisas velhas, repete-se a continuamente descumprida promessa de reduzir a desocupação no Brasil; e os quase cinco anos de vigência da Reforma Trabalhista bem o demonstram, mercê dos níveis ainda altamente elevados de desemprego, do achatamento geral da renda e da ampliação da subocupação e do desalento.

Insista-se, pois: nada de bom, em nenhum momento e em nenhum lugar, adveio de políticas e práticas com os "valores" da redução de direitos trabalhistas, da facilitação de contratações precárias, do achatamento de sindicatos, da diminuição da estrutura fiscalizatória e da leniência na repressão a maus empregadores. Se não funcionou com lei formalmente aprovada, dificilmente será com disposições enxertadas.

O relatório do Deputado Christino Aureo (PP-RJ), a propósito, segue em votação no momento em que concluímos este texto. O que nos recordou a canção "O abraço da esperança", do grupo Razão Áurea: "Haverá um recomeço/Para quem sabe em paz esperar/Essa dor que hoje machuca, ao fim da luta/Vai me transformar". Eis a nossa esperança, pois, para esse "recomeço" legislativo: a de que o Parlamento mantenha a sua coerência e, mais uma vez, lancete as adições absolutamente impróprias feitas no texto da MP n 1.045/2021. Ou será isto, ou será mesmo a evidência cabal de que o Direito do Trabalho tem, diante de si, uma esquadra hostil, altamente articulada, que pretende simplesmente o reduzir a platitudes normativas. Oxalá não seja isto.

Autores

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    é juiz titular da 1ª Vara do Trabalho de Taubaté (SP), professor associado II do Departamento de Direito do Trabalho e da Seguridade Social da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, livre-docente em Direito do Trabalho e doutor em Direito Penal pela FDUSP, doutor em Ciências Jurídicas pela Faculdade de Direito de Lisboa.

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    é presidente da Associação dos Magistrados da Justiça do Trabalho da 4ª Região (Amatra IV).

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