Observatório constitucional

50 anos depois, a importância e a atualidade da Teoria da Justiça de Rawls

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7 de agosto de 2021, 8h00

Neste ano de 2021, completam-se os 50 anos da conhecida obra "Uma Teoria da Justiça" ("A Theory of Justice", 1971 [1]) e os cem anos do nascimento de seu autor, o filósofo John Rawls (21/2/1921 — 24/11/2002).

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No grupo de pesquisa do Observatório Constitucional (IDP-CNPq), desenvolvemos uma série de eventos comemorativos para produzir discussão crítica sobre os 50 anos da Teoria da Justiça de Rawls. Quanto mais aprofundamos os estudos e debates, mais constatamos a importância dessa teoria para a preservação das atuais democracias constitucionais.

Rawls foi um dos maiores filósofos políticos do século 20. Essa afirmação não é nenhum exagero, se tivermos em conta a dimensão do impacto de sua filosofia moral e política sobre quase tudo o que se produziu nesse campo nas últimas décadas. O pensamento de Rawls marcou o final do século 20 na mesma proporção que o século 17 ficou marcado pela filosofia de Hobbes e Locke, o século 18, por Rousseau e Kant, e o século 19, por Hegel, Mill e Marx [2].

Rawls se insere nessa linha histórica das ideias morais e políticas não apenas como um grande pensador do século 20 (e um dos maiores de todos os tempos). Sua teoria entra no presente século 21 fornecendo aos novos filósofos uma sólida base teórica para a construção de sociedades mais justas. Como ressaltou um de seus principais discípulos, o professor Samuel Freeman, talvez esse seja o maior legado da obra de Rawls: não apenas por sua teoria, mas também por sua personalidade, ele ainda nos mostra que a Justiça é congruente com a natureza humana e que uma sociedade justa está ao alcance humano [3].

A primeira publicação da mais famosa obra de Rawls, em 1971, ressuscitou o interesse filosófico no tema da justiça. "Na verdade, Rawls fez do tema o que ele é hoje", como recentemente destacou Amartya Sen, conhecido Prêmio Nobel de Economia [4]. professor visitante em Harvard, Sen acompanhou de perto aquele momento e descreveu a "emoção de vê-lo transformar a filosofia política contemporânea de forma verdadeiramente radical". A revolução causada nos debates filosóficos se deve, especialmente, ao reavivamento (em grau mais alto de abstração) da tradicional teoria do contrato social presente no pensamento de Locke, Kant e Rousseau [5], com uma justificação moral mais apropriada para as atuais democracias constitucionais.

Na Teoria da Justiça, o contrato original (em termos hipotéticos) é caracterizado como um acordo imparcial entre pessoas livres e racionais que, em uma "posição original de igualdade" e sob um "véu de ignorância" (todos desconhecem os interesses, as capacidades e o status social dos demais), definem os princípios de justiça que devem reger a sociedade. Os princípios de justiça que seriam objeto de consenso nessa situação inicial equitativa — desse aspecto advém a denominação da teoria de "justiça como equidade" (justice as fairness) — seriam, basicamente, dois: 1) o primeiro exige a igualdade na atribuição de liberdades básicas (princípio de liberdade igual) [6]; e 2) o segundo afirma que as desigualdades econômicas e sociais serão justas apenas se resultam em benefícios para todos [7], especialmente para os membros menos favorecidos da sociedade (princípio da diferença) [8].

Os pressupostos contratualistas e antiutilitaristas da Teoria da Justiça passaram a constituir a base de sustentação da teoria dos direitos, influenciando diretamente o Direito Constitucional. Por isso, hoje temos a convicção de que Rawls é um daqueles pensadores indispensáveis para uma boa formação acadêmica em Direito, que igualmente deve ser composta pela compreensão adequada do pensamento de grandes juristas e filósofos como Hans Kelsen, Herbert Hart, Ronald Dworkin, Jürgen Habermas.

O destaque da obra de Rawls é que ela impactou profundamente todo o debate da filosofia jurídica de sua época, de modo que muitos desses grandes juristas passaram a reconhecer na Teoria da Justiça uma base de fundamentação de suas próprias teses. Esse é o caso de Ronald Dworkin, cuja conhecida concepção deontológica dos direitos (uma das bases da teoria dos direitos fundamentais no direito constitucional) busca fundamento nos pressupostos liberais e antiutilitaristas da teoria de Rawls, como o próprio Dworkin revelou em diversas passagens de sua obra [9]. Também a teoria discursiva dos direitos e da democracia de Habermas dialoga diretamente com as teses de Rawls, especialmente aquelas expostas na obra sobre o liberalismo político [10], cuja primeira publicação no início da década de 1990, com uma série de revisões dos argumentos antes presentes na Teoria da Justiça, desencadeou o memorável debate Habermas-Rawls [11], com imediato impacto na produção teórica do direito a partir daquele momento.

A onipresença de Rawls é reconhecida e admirada pelos atuais filósofos da política e do direito, que hoje costumam formular anedotas sobre o seu caráter "divino". Uma dessas histórias — que acabam se tornando lendas nas conversas entre professores — foi relatada pelo professor Roberto Gargarella em um dos eventos recentemente organizados por nosso grupo do Observatório Constitucional sobre os 50 anos da Teoria da Justiça. O professor Gargarella, que é autor de um dos melhores estudos sobre a teoria de Rawls e seus críticos [12], nos contou naquele encontro que quando o jovem Michael Sandel chegou pela primeira vez em Harvard para o início de sua carreira como professor de filosofia política, recebeu uma chamada telefônica de alguém convidando-o para almoçar e dizendo pausadamente: "Este é John Rawls… R-A-W-L-S". Sobre o episódio, Sandel depois disse: "Foi como se o próprio Deus tivesse me telefonado e convidado para almoçar, soletrando seu nome caso eu não soubesse quem ele era!".

Todos os que conviveram com Rawls reconhecem que a grandiosidade (quase divina!) de sua teoria contrastava com a sua personalidade, descrita comumente como a de um homem generoso e modesto, daqueles capazes de rir de si mesmo em várias situações, como descreveu Samuel Freeman [13], um de seus principais amigos. Freeman nos conta que já no final de sua vida Rawls escreveu uma pequena autobiografia intitulada "Just Jack". Esse título derivava de uma história verdadeira, de dois juízes que atuavam nos juízos federais de Chicago e que se chamavam, ambos, Julius Hoffman. Para distingui-los, os advogados costumavam chamar um deles, que era muito respeitado, de "Julius the Just" (Julius, o Justo); e o outro juiz, que havia presidido o conhecido julgamento dos Sete de Chicago (em 1970), era reconhecido como "Just Julius" (Só Julius). A partir dessa história, John Rawls passou a escrever cartas e dedicatórias de livros assinando "Just Jack", o que depois se atribuiu à sua modéstia e à vontade que tinha de ser lembrado por todos como "apenas o Jack".

Talvez essa personalidade tenha sido uma das razões para sua confiança incondicional na capacidade do ser humano para construir sociedades justas. Como enfatizou Samuel Freeman [14], Rawls permaneceu até os seus últimos dias confiante em que, mesmo ante as limitações da natureza humana, as pessoas razoáveis ainda são capazes de ter um sentido efetivo de justiça e de adotar moralmente uma concepção liberal que proteja as liberdades básicas, ofereça oportunidades iguais e assegure um mínimo social para todos os cidadãos.

A construção de sociedades mais justas com igualdade de oportunidades é algo que precisa ser bem compreendido a partir dos fundamentos da Teoria da Justiça de Rawls. O segundo princípio de justiça (ou "princípio da diferença", acima exposto) exige que em democracias constitucionais o foco das políticas públicas deve ser, em primeiro lugar, as pessoas menos favorecidas economicamente, com o objetivo de compensar as desigualdades ou de maximizar suas oportunidades. As desigualdades sociais e econômicas devem ser compensadas de modo que resultem em vantagens para todos [15].

Os arranjos institucionais nas democracias constitucionais devem estar voltados para a redução das desigualdades concretas, em benefício dos menos favorecidos. E isso significa que, para a Teoria da Justiça, a garantia da igualdade de oportunidades não é suficiente para a construção de uma sociedade efetivamente justa. Rawls enfatiza que em qualquer comunidade os talentos individuais são arbitrários e resultam de uma "loteria natural" da vida, que faz com que alguns sejam mais afortunados e capazes que outros, atribuindo-lhes vantagens desiguais se os arranjos institucionais ensejam uma competição social baseada apenas no mérito de cada um.

Em sua mais recente obra, "A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum?" [16], Michael Sandel recupera os fundamentos do liberalismo igualitário de John Rawls e, concordando com suas bases filosóficas, rejeita o mérito ou o merecimento como base de justiça de uma sociedade democrática. Referindo-se diretamente à Teoria da Justiça, ele destaca: "Se pessoas competissem em um campo verdadeiramente nivelado, os vencedores seriam aqueles dotados dos melhores talentos. Mas diferenças de talento são tão moralmente arbitrárias quanto são as diferenças de classe". E, assim, Sandel esclarece a posição igualitária de Rawls: "Em vez de prejudicar o talento, Rawls faria com que vencedores e vencedoras compartilhassem a vitória com as pessoas menos afortunadas do que eles e elas. Não faça os melhores corredores calçarem tênis de chumbo; permita que corram em velocidade máxima. No entanto, reconheça com antecedência que as vitórias não pertencem somente a essas pessoas. Incentive quem tem talento a cultivar e exercitar seus talentos, mas compreendendo que as recompensas colhidas por esses talentos no mercado deveriam ser compartilhadas com a comunidade inteira" [17].

O liberalismo igualitário de Rawls fornece aos atuais juristas um robusto arcabouço teórico para a reflexão crítica e a discussão pública sobre igualdade de oportunidades, meritocracia e justiça distributiva em sociedades profundamente marcadas pela extrema desigualdade, como é o caso do Brasil. Nesse aspecto, a teoria de Rawls é cada vez mais atual, na medida em que possui bases filosóficas para a deliberação pública voltada para a redução das desigualdades e a erradicação da pobreza em novas (e ainda não consolidadas) democracias. As repercussões práticas da teoria são evidentes, com potencial impacto, inclusive, nos debates sobre a necessária reforma do sistema tributário conforme parâmetros mais igualitários de justiça distributiva.

Além da crucial (e cada vez mais atual) temática da desigualdade, o conjunto da obra de Rawls também oferece ao debate público parâmetros para a compreensão e enfrentamento da radicalização e da polarização dos discursos, problema que aflige praticamente todas as atuais democracias. O liberalismo político de Rawls desenha modelos normativos de sociedades democráticas nas quais possam conviver pacificamente cidadãos profundamente divididos por doutrinas (religiosas, filosóficas e morais) incompatíveis entre si [18].

Com a formulação do conceito de "razões públicas", Rawls defende que, em democracias caracterizadas pelo "fato do pluralismo razoável" (the fact of reasonable pluralism), nas quais prevalece a divergência de visões filosóficas, morais e religiosas, os participantes de um debate público que envolva questões básicas de justiça e elementos fundamentais da Constituição (as "essências constitucionais") não podem invocar sua concepção particular sobre o que é correto (ou sobre a verdade), mas, sim, devem utilizar argumentos que possam ser aceitos por todos como razoáveis. As deliberações públicas devem girar em torno de razões que expressem "concepções políticas de justiça", as quais possam ser objeto de um "consenso por sobreposição" (overlapping consensus, acordos a que idealmente poderiam chegar pessoas razoáveis com diferentes concepções sobre a justiça) [19]. Apesar de todas as posteriores reformulações [20], o conceito de razões públicas ainda pode sugerir parâmetros teóricos para um debate público educado e pacífico nas atuais democracias.

Esses são apenas alguns dos conceitos e concepções fundamentais que nos revelam, após 50 anos, que a Teoria da Justiça de Rawls é cada vez mais importante e atual. Nestes tempos difíceis para a consolidação das democracias constitucionais, a teoria de Rawls pode continuar sendo desenvolvida e aplicada por uma nova geração de filósofos e juristas comprometidos com a construção de sociedades democráticas efetivamente justas.

 


[1] RAWLS, John. A Theory of Justice. Cambridge: Harvard University Press; 1971; Revised Edition, 1999. Na edição traduzida para o português: RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. Almiro Pisetta e Lenita Esteves. 1ª Ed. São Paulo: Martins Fontes; 2000.

[2]  Essa é uma constatação que pode ser extraída a partir da obra: RAWLS, John. Lectures on the History of
Political Philosophy. Edited by Samuel Freeman. Cambridge: Harvard University Press; 2007.

[3] FREEMAN, Samuel. Rawls. Trad. Adolfo García de la Sienra. México: Fondo de Cultura Económica; 2016.

[4] SEN, Amartya. A ideia de justiça. Trad. Denise Bottmann e Ricardo Mendes. São Paulo: Companhia das Letras; 2011, p. 82.

[5] RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press; 1999, p. XVIII (preface).

[6] First: each person is to have an equal right to the most extensive scheme of equal basic liberties compatible with a similar scheme of liberties for others.

[7] Second: social and economy inequalities are to be arranged so that they are both (a) reasonably expected to be everyone’s advantage, and (b) attached to positions and offices open to all.

[8] RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press; 1999, p. 52.

[9] DWORKIN, Ronald.Taking rights seriously. Cambridge: Harvard University Press; 1978. A matter of principle. Cambridge: Harvard University; 1985. Law’s Empire. Cambridge: Belknap-Harvard; 1986.

[10] RAWLS, John. Political liberalism. New York: Columbia University Press; 1993. Expanded edition; 2005.

[11] RAWLS, John. Reply to Habermas. In: Political liberalism. Expanded edition. New York: Columbia University Press; 2005. MELKEVIK, Bjarne. Rawls o Habermas: un debate de filosofía del derecho. Trad. Claudia Cáceres. Bogotá: Universidad Externado de Colombia; 2006.

[12] GARGARELLA, Roberto. As teorias da justiça depois de Rawls. Um breve manual de filosofia política. Trad. Alonso Reis Freire. São Paulo: Martins Fontes; 2008.

[13] FREEMAN, Samuel. Rawls. Trad. Adolfo García de la Sienra. México: Fondo de Cultura Económica; 2016.

[14] Id. Ibid..

[15] RAWLS, John. A Theory of Justice. Revised Edition. Cambridge: Harvard University Press; 1999, p. 65 e ss.

[16] SANDEL, Michael. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum? Trad. Bhuvi Libanio. 1ª Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; 2020.

[17] Id. Ibid. p. 188 e ss.

[18] RAWLS, John. El liberalismo político. Trad. Antoni Domènech. Barcelona: Crítica; 2006, p. 266.

[19] Id. Ibid.

[20] RAWLS, John. The idea of public reason revisited. In: Political liberalism. Expanded edition. New York: Columbia University Press; 2005.

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