Opinião

A inconstitucional e inócua PEC dos precatórios de Guedes

Autores

  • Rodrigo Marchetti Ribeiro

    é graduando em Direito pela Universidade de São Paulo (USP) com dupla titulação pela Université Lumière Lyon II e estagiário da Laguz Opportunities.

  • Marco Antonio Innocenti

    é presidente da Comissão de Precatórios do Iasp (Instituto dos Advogados de São Paulo) e ex-presidente da Comissão de Precatórios da OAB nacional (gestões 2013/2016 e 2016/2019).

7 de agosto de 2021, 9h13

Nos últimos dias, a mídia vem noticiando que o governo federal, por iniciativa do ministro Paulo Guedes, estuda apresentar uma PEC para conter os gastos com precatórios. Trata-se — é quase desnecessário dizer — de um caso claro de populismo fiscal, isto é, o governo visa a driblar todas as normas que encontra (especialmente o teto de gastos) visando a garantir recursos para a ampliação do programa Bolsa Família. Mais do que isso, porém, cuida-se de um caso de ignorância jurídica, pois a PEC, nos moldes em que vem sendo apresentada (mudança no pagamento), é inconstitucional e inócua em relação a sua finalidade.

Para chegar a tais conclusões, duas questões se impõem: 1) se o pagamento dos precatórios é questão de Direito processual ou de Direito material; e 2) se incidem, nesses casos, a proteção do ato jurídico perfeito, direito adquirido e da coisa julgada.

A doutrina processualista usualmente discorre que questões jurídicas podem ser ora de Direito material (os direitos em si) ora de Direito processual (isto é, o instrumento por meio dos quais os direitos são efetivados). Ninguém tem, segundo tal doutrina, direito a um processo específico — ainda que existam garantias processuais-constitucionais — e, em casos de alteração legislativa (alteração do processo), o artigo 14 do Código de Processo Civil (que rege, também, o litígio contra a Fazenda Pública) adota a solução de que a norma processual é imediatamente aplicável, mas não retroage. Por conseguinte, se o pagamento dos precatórios for considerado uma questão meramente processual (o que é uma frase contraditória, considerando que o pagamento é, sempre, um direito do credor), a PEC poderia alterar o seu pagamento.

O pagamento dos precatórios é, na realidade, simultaneamente, de Direito processual e de Direito material (situação sui generis), tal como a requisição de pequeno valor (RPV). Explicamos. O Supremo Tribunal Federal, em diversas ocasiões, sustentou que a alteração de normas locais que definem o valor máximo das RPVs não podem ser aplicadas a situações jurídicas já consolidadas (isto é, em que já se deu o trânsito em julgado da sentença condenatória), exatamente em razão da proteção do ato jurídico perfeito, coisa julgada e direito adquirido. O regime de pagamento, nestes casos, é definido no momento em que prolatada a sentença, como parte implícita desta. Em outras palavras, cria-se, com a sentença, uma expectativa de cumprimento da obrigação, dentro de um determinado tempo, que não pode mais ser frustrada pelo poder público, por alteração legislativa posterior, por uma questão de defesa da segurança jurídica, um dos postulados fundamentais do Estado democrático de Direito, que, enquanto cláusula pétrea que é, não pode ser revogada pela PEC.

As duas características que distinguem precatórios de RPVs são o quantum debeatur (a RPV vai até um teto máximo) e o tempo do pagamento (a RPV deve ser paga em até 60 dias), mas não há nada que indique que, no caso dos precatórios, não exista, também, já na sentença, o regime do pagamento implícito (e, no caso dos entes no regime ordinário, também, o tempo). O raciocínio da jurisprudência do STF sobre RPVs (de proteção do direito adquirido, do ato jurídico perfeito e coisa julgada) aplica-se, portanto, ipsis litteris, ao caso dos precatórios. Não é demais notar, ainda, que a União está no regime ordinário e, portanto, paga todos os seus precatórios em um tempo determinado (o final do ano orçamentário, in casu, 2022)

Nesse diapasão, faz-se mister apontar também que, uma vez que os precatórios foram processados pelos tribunais, há a expectativa dos credores da União (sejam eles pessoas físicas ou empresas) de receber o pagamento até 2022 e estes valores podem ter sido incluídos em planejamentos financeiros diversos (isso sem mencionar o mercado de investimentos que existe ao redor destes títulos). A disciplina tributária veda o tributo imprevisto, por uma questão de calculabilidade e planejamento do contribuinte. Pelos mesmos motivos a Constituição, pela proteção do ato jurídico perfeito, da coisa julgada e do direito adquirido, veda (como mostra a jurisprudência do STF) a proposta do ministro Guedes de alterar o tempo dos pagamentos.

Assim, a PEC é evidentemente inócua para o fim a que se destina, no caso da União, pois os precatórios do ano orçamentário de 2022 (o "meteoro") devem ser pagos no ano de 2022 (feitas apenas as ressalvas já existentes no artigo 100 da Constituição Federal); e, evidentemente, é inócua para estados e municípios no regime especial. Além disso, qualquer alteração no regime visando a atingir especificamente o ano de 2022 será, também, inconstitucional.

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