Diário de Classe

Reflexões sobre Direito e moral a partir de 'Terror', de F. von Schirach

Autor

  • Luã Nogueira Jung

    é doutor e mestre em Filosofia pela PUC-RS pós-doutorando em Direito Público (Unisinos) professor do PPGD Unedsa-RJ e membro do Dasein — Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

7 de agosto de 2021, 8h00

Abordar obras literárias a partir de uma perspectiva jurídica é um recurso muito utilizado e profícuo para a teoria do Direito. Isso porque, através da literatura, as contradições institucionais e discursivas, assim como as idiossincrasias dos personagens jurídicos são postas em evidência. Tal possibilidade teórica se intensifica, todavia, no caso de Ferdinand von Schirach, advogado alemão que, há alguns anos, dedica-se a explorar os limites da racionalidade jurídica através de sua capacidade narrativa ímpar. Desde o seu primeiro livro de contos, "Verbrechen" ("Crimes"), de 2009, o autor utiliza a sua experiência na advocacia para apresentar ao público casos desconcertantes e colocar em dúvida o nosso senso comum acerca da fundamentação e função do direito penal.

No presente texto, pretendo utilizar uma peça de teatro escrita pelo autor, intitulada "Terror: ein Theaterstück und eine Rede", para, a partir dela, revisitarmos a antiga, porém sempre atual, questão acerca da relação entre o Direito e a moral. A trama da peça é simples: um terrorista sequestra um avião comercial com 164 passageiros e força os pilotos a seguirem em direção à Allianz Arena, em Munique, totalmente cheia. Contra as ordens de seus superiores, um piloto da força aérea, Lars Koch, abate no último instante o avião sequestrado. Como resultado, a ação do piloto salva a vida de cerca de 70 mil pessoas que seriam atingidas pelo ataque terrorista, mas, para tanto, ele se torna responsável pela morte dos 164 passageiros do avião. Assim, o piloto deve responder perante o Tribunal do Júri pelas mortes causadas. O dilema se dá a partir do debate entre a acusação e a defesa sobre se a ação deliberada de destruição de um avião com 164 pessoas seria moral e juridicamente justificável, tendo em vista o objetivo almejado: salvar as 70 mil pessoas presentes no estádio. Schirach deixa a conclusão em aberto: após a encenação da peça, cabe ao público, levando em consideração a argumentação da defesa e da acusação, decidir.

Gostaria de explorar um trecho da arguição da promotora pública responsável pela acusação. Independentemente da conclusão a que chega a personagem no caso explorado pela peça, o seu discurso acerca da necessária autonomia do Direito frente a raciocínios práticos ordinários é provocativo e apresenta aos leitores, sejam eles juristas ou não, de forma intelectualmente madura, a referida controvérsia acerca da relação entre direito e moral.

No início de sua arguição, a promotora faz menção a problemas morais análogos àquele enfrentado pelo piloto. O primeiro exemplo é extraído do jurista alemão Hans Welzel: um vagão de carga se solta em um trecho de uma montanha íngreme e corre com força total para o vale em direção a uma pequena estação de trem. Na estação, encontra-se estacionado um trem com centenas de passageiros que serão atingidos pelo vagão descontrolado. Imagine que você é o responsável pela ferrovia e tem a possibilidade de acionar um desvio na rota do vagão. No entanto, há cinco operários realizando a manutenção dos trilhos dessa outra direção possível. O que você faria? Assumiria a morte dos cinco trabalhadores para salvar a vida da centena de passageiros do trem estacionado?

O outro exemplo apresentado pela promotora é de Judith Thomson, filósofa americana: imagine agora que o mesmo vagão de carga continua correndo colina abaixo, mas agora não há a possibilidade de mudança de rota. Como espectador, você agora está em uma ponte observando o que acontece e há um homem muito gordo sentado ao seu lado. Se ele caísse da ponte, bloquearia o vagão e impediria a morte dos passageiros do trem estacionado, ainda que, para tanto, o homem gordo morresse atropelado. Mas o homem em questão não cairia simplesmente da ponte. Para isso, você precisaria assassiná-lo com uma faca ou algo semelhante, para então conseguir empurrá-lo entre o vagão que se aproxima e o trem lotado.

Apesar da possível analogia do caso em julgamento com os exemplos de dilemas morais, a promotora apela aos jurados para que não apliquem em seu raciocínio jurídico o mesmo tipo de avaliação que seria utilizada naqueles casos, mas que, enquanto investidos da responsabilidade pública de decidir sobre a punibilidade ou não do réu, pensem exclusivamente a partir e de acordo com o Direito. Esse é o ponto central da presente reflexão: assim como a tese desenvolvida no discurso da promotora, proponho que as decisões judiciais devam ser justificadas a partir de critérios jurídicos previamente estabelecidos e compartilhados, cujo núcleo normativo encontra-se nos princípios constitucionais.

Segundo a promotora, a absolvição do réu implicaria a relativização da vida dos 164 passageiros do avião abatido, admitindo-se, nesse caso, a possibilidade de um cálculo utilitário e, portanto, a objetificação de vidas humanas: "A nossa Constituição começa com a afirmação: 'a dignidade da pessoa é inviolável' […] mas o que significa, afinal, dignidade? A suprema corte afirma que dignidade significa que uma pessoa não pode nunca ser tratada como mero objeto pela atuação estatal. […] e, portanto, resta claro: o Estado não pode nunca sopesar uma vida contra outra. Também não pode sopesar uma vida contra 100, nem contra 1.000 vidas. Cada pessoa – também vocês, senhoras e senhores jurados – possuem esta dignidade. Pessoas não são objetos. A vida não pode ser medida em números, não estamos falando de um mercado" [1]

A partir dos dilemas acima relatados, a promotora argumenta que, apesar de nossas incertezas morais e de consciência, "nós precisamos de algo mais confiável do que nossas convicções espontâneas. Algo a partir do que nós possamos a cada momento nos direcionar e nos manter seguros. Algo que nos proporcione clareza no caos uma linha de orientação que seja válida também nas situações mais difíceis. Nós precisamos de princípios. Esses princípios, respeitáveis senhoras e senhores julgadores, nós demos a nós mesmos. Eles são a nossa Constituição. Nós decidimos que escolheríamos a partir deles em cada caso concreto. Qualquer caso deve ser medido e provado a partir deles. A partir deles – não de acordo com nossa consciência, não de acordo com nossa moral e em hipótese alguma de acordo com algum poder maior. Direito e moral devem ser fortemente separados entre si. […] A nossa Constituição é, assim, uma reunião de princípios, os quais devem anteceder sem falta e sempre a moral, a consciência e qualquer outra ideia. E o princípio mais alto desta Constituição é a dignidade humana" [2].

Não pretendo substituir o papel da plateia, a quem, de acordo com a proposta da peça, cabe ouvir o debate travado entre acusação e defesa e realizar o julgamento do caso Lars Koch. Isso não significa, todavia, que qualquer decisão, mesmo neste hard case, seja cabível e que, nesse sentido, não haja respostas corretas no direito. O que importa aqui, no entanto, é destacar o argumento da promotora pública em favor da autonomia do Direito e o peso conferido aos princípios constitucionais em detrimento de raciocínios morais genéricos.

O discurso da dogmática tradicional costuma conceber a relação entre direito e moral como algo dicotômico: ou negamos a referida relação e estamos condenados a uma concepção positivista e "insensível" de direito, situação em que teríamos o famoso "juiz boca da lei", ou aceitamos que Direito e moral se comunicam e, por isso, advogados, juízes e demais operadores do Direito estariam autorizados a apelar para valores éticos, mesmo que contra legem, em busca da realização da justiça, do bem comum, ou a algo nesse sentido.

A argumentação da promotora da peça de Schirach quebra essa aparente dicotomia: o seu apelo ao princípio da dignidade e à autonomia do Direito está vinculado a uma leitura sobre o papel e valor político do direito enquanto um compromisso público estabelecido entre indivíduos cujas vidas têm igual valor. Decidir por princípio, e não por razões éticas e morais genéricas e particulares, nesse sentido, é fazer valer uma promessa institucional anterior aos casos concretos e cuja correta aplicação reconhece e efetiva a igualdade dos membros de uma comunidade política.

Aqui entram em cena duas teses famosas de Ronald Dworkin: a noção de decidir por princípio e a proposta de que o Direito está relacionado com a moralidade política na medida em que as decisões realizadas a partir de princípios devem atender ao ideal político da integridade. Para Dworkin, princípios são "trunfos sobre a vontade da maioria" [3], de maneira que decidir por princípios requer a independência das razões daquele que julga em relação a possíveis considerações de conveniência ou de consciência. Assim, os princípios devem manter o intérprete vinculado à promessa fundante do Estado representada pela Constituição.

A palavra promessa normalmente é utilizada em contextos particulares. No entanto, se expandirmos o seu emprego cotidiano para o nível público, podemos dizer que a efetivação de direitos previamente estabelecidos é uma promessa que nós, enquanto comunidade política, fizemos a nós mesmos. Afirmamos que alguém que não cumpre suas promessas com base em desculpas ou pretextos é alguém que não cumpre a sua palavra e que, portanto, não é uma pessoa íntegra. Isso é o que representa, para Dworkin, a integridade do Direito: a ideia de que a Constituição e o sistema jurídico, enquanto promessa institucional, sejam cumpridos de forma equânime em cada caso, de maneira que os diferentes conflitos sociais sejam sempre reinterpretados de acordo com uma linha coerente de razões antecedentes.

O papel moral e político dos aplicadores do Direito é, portanto, o de identificar e aplicar as normas que unificam uma comunidade política composta por indivíduos livres e iguais, ainda que, para isso, devam saber separar tais normas de seus anseios contingentes e de suas predileções éticas e morais pessoais. É nesse sentido que Dworkin conclui "O império do Direito" afirmando que "a atitude do direito é construtiva: sua finalidade, no espírito interpretativo, é colocar o princípio acima da prática para mostrar o melhor caminho para um futuro melhor, mantendo boa-fé em relação ao passado. É, por último, uma atitude fraterna, uma expressão de como somos unidos pela comunidade apesar de divididos por nossos projetos, interesses e convicções" [4].

A peça de teatro de Schirach transfere para o público a responsabilidade do julgamento de Lars Koch: devemos considerar que: 1) a dignidade é um princípio constitucional intransponível; e que, portanto, 2) a morte deliberada de pessoas, ainda que sob o motivo de salvar um número maior, é uma ação em si condenável e passível de punição, sob pena de abrirmos uma exceção a partir da qual vidas humanas estariam sujeitas a um cálculo utilitário? Por outro lado, se considerarmos que, em uma situação limite como a apresentada, a decisão tomada pelo piloto estaria fora do alcance das previsões jurídicas, o único julgamento cabível seria o de sua própria consciência moral? Tal qual o discurso de acusação da promotora pública, a defesa realizada pelo advogado de Lars Koch suscita razões filosoficamente profundas. A resposta a ser dada pela plateia, portanto, deve levar em consideração argumentos complexos dos dois lados. O sopesamento entre as razões jurídicas e morais, no entanto, é uma tarefa lúdica e intelectual destinada ao público da peça [5], não aos profissionais responsáveis pela interpretação e aplicação da Constituição e do Direito.

 


[1] SCHIRACH, Ferdinand von. Terror: ein Theaterstück und eine Rede. btb Verlag, München, 2015, p. 120/121. Tradução nossa.

[2] SCHIRACH, Ferdinand von. Terror: ein Theaterstück und eine Rede. btb Verlag, München, 2015, p. 118/119. Tradução nossa.

[3] Ver: DWORKIN, Ronald. A matter of principle. London: Harvard University Press, 1985.

[4] DWORKIN, Ronald. Law’s Empire. Cambridge: Harvard University Press, 1986, p. 413.

[5] Tendo em vista a defesa de que as decisões judiciais devem ser pautadas por princípios e, portanto, juridicamente justificadas, a própria atuação do júri no Brasil precisa ser revista. Como afirma Lenio Streck, a "íntima convicção é incompatível com o dever de fundamentação (art. 93, IX, CF)". Ver, nesse sentido, https://www.conjur.com.br/2020-dez-31/senso-incomum-juri-soberania-reforma-honra-nao-entre-perna

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    é advogado, pós-doutorando em Direito Público (Unisinos/RS), mestre e doutor em filosofia (PUC-RS) e membro do Dasein – Núcleo de Estudos Hermenêuticos.

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