Controvérsias Jurídicas

Limites constitucionais à interceptação telefônica

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

5 de agosto de 2021, 8h00

A Constituição Federal, em seu Título II, trata dos direitos e garantias fundamentais, com vistas a assegurar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Embora sejam garantias indispensáveis à concretização da dignidade humana e inerentes ao Estado democrático de Direito, podem ser relativizadas de acordo com as peculiaridades do caso concreto, como observa Celso de Mello: "Não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição" [1].

Surgindo conflito entre dois ou mais princípios constitucionais, não ocorre a revogação de um pelo outro, mas a comparação entre eles, a fim de verificar qual deve prevalecer na hipótese concreta.

É o caso da relativização do direito à intimidade (CF, artigo 5º, X) e da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (CF, artigo 5º, XII), para fins de investigação penal ou instrução processual penal, ditada pela necessidade e razoabilidade do caso concreto. Há situações em que o interesse maior da sociedade no combate à criminalidade prevalece sobre as garantias constitucionais protetivas do cidadão.

A necessidade da coexistência harmônica entre as garantias constitucionais fez com que o próprio legislador estabelecesse previamente limites às hipóteses de exceção, através do sopesamento dos bens jurídicos tutelados no caso específico, como se deu com a regulamentação da parte final do inciso XII do artigo 5º da CF pela Lei 9.296/1994, sobre interceptação telefônica.

Anteriormente à Lei 9.296/1996, a jurisprudência do STF já havia se orientado no sentido de que, enquanto a matéria não fosse regulamentada pelo legislador ordinário, deveria ser considerada inconstitucional toda e qualquer prova obtida por meio de captação de conversa telefônica, ainda que autorizada pela Justiça [2].

No mesmo sentido, Ada Pellegrini Grinover: "Evidente que enquanto não vier a lei a estabelecer as hipóteses e a forma em que as interceptações poderão ser permitidas, não haverá, por enquanto, como ordená-las" [3].

É que, de acordo com o artigo 5º, XII, da Constituição Federal, o sigilo das comunicações telefônicas somente pode ser quebrado quando presentes três requisitos: 1) ordem judicial autorizadora; 2) finalidade de instruir investigação criminal ou processo penal; e 3) existência de lei prevendo as hipóteses em que a quebra será permitida. Como não havia nenhuma lei, juiz nenhum poderia autorizar a medida.

No âmbito do Direito Comparado, o Código Processual Penal Português de 1987, em seu Capítulo IV, artigo 187, trata "Das escutas telefónicas" e estabelece como requisitos: motivação da decisão judicial e rol taxativo dos crimes em que se admite a medida.

Nos Estados Unidos, a Omnibus Crime Control and Safe Streets Act, aprovada em 1968 pelo Congresso norte-americano, impõe a necessidade de regras minuciosas, hipóteses taxativas e rígida disciplina procedimental, a fim de que a autorização e execução da diligência não viole direitos garantidos constitucionalmente.

No Brasil, houve a tentativa de emplacar a tese de que a falta de lei regulamentadora poderia ser suprida pelo Código Brasileiro de Telecomunicações. Não deu certo, uma vez que o artigo 57, II, "e", da Lei 4.117/62 [4], era extremamente vago e não atendia às exigências do artigo 5º, XII, da CF.

Possibilitar a interceptação telefônica pela inteligência do artigo 57, II, "e", implicaria em discricionaridades sem balizas regulatórias, abrindo perigoso campo para o arbítrio, ainda que sob o pálio da defesa social. Nesse sentido: "A pretendida recepção do artigo 57, II, e, C. Bras. Telecomunicações, esvaziaria por completo a garantia constitucional, tornando-a vulnerável a toda a forma de arbítrio judicial[5].

Tornou-se, então, pacífico o entendimento de que o artigo 57, II, "e", do Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei nº 4.117/62), não fixava forma, nem enumerava as hipóteses de interceptação, sendo inapto a constituir a base legal para a quebra do sigilo das comunicações telefônicas.

Sobreveio, então, a Lei 9.296/1996, determinando que: a interceptação telefônica depende de ordem do juiz competente para o julgamento da ação penal, exige indícios razoáveis de autoria ou participação em crime apenado com reclusão, e só pode ser autorizada se não houver outro meio (artigos 1º e 2º).

Atualmente, a principal discussão está relacionada às novas hipóteses trazidas pelas novas tecnologias digitais. Esse avanço tecnológico alargou o conceito de comunicação telefônica, para alcançar muito além das conversas por linha telefônica. Com a vasta oferta de aplicativos (WhatsApp, Telegram, Instagram etc.) à disposição, inúmeras são as possibilidades de interação.

Recentemente o STJ, no julgamento do REsp 1.806.792-SP, de relatoria da ministra Laurita Vaz, abordou questão de ordem, autorizando a autoridade policial a habilitar chip no aparelho telefônico em substituição ao do titular da linha. A controvérsia gerada acerca da validade do pedido ensejou a elaboração da tese de que "é ilegal a quebra do sigilo telefônico mediante a autorização de chip da autoridade policial em substituição ao do investigado titular da linha", publicada no Informativo 969 do Superior Tribunal.

No caso, a ordem judicial endereçada à companhia telefônica determinou fosse viabilizada à autoridade policial a utilização de SIM card ou, em português, "cartão SIM", sigla em inglês da expressão subscriber identity module, popularmente conhecido como chip, em substituição ao do aparelho celular do usuário investigado "pelo prazo de 15 (quinze) dias e a critério da autoridade policial, em horários previamente indicados, inclusive de madrugada" [6]. Cassada a decisão em segunda instância, mediante exitosa impetração de mandado de segurança por parte da empresa concessionária, o Ministério Público Federal interpôs o recurso especial, o qual teve provimento negado por unanimidade de votos.

Segundo os julgadores, a medida não se enquadra na hipótese excepcional do artigo 5º, XII, da CF, pois não se pode confundir interceptação telefônica, a transferência, ainda que momentânea, dos terminais dos investigados para o chip da autoridade policial.

Por se tratar de medida que excepciona direito fundamental, o conceito de interceptação telefônica deve ser entendido de forma restrita, nos exatos limites da lei, não se podendo cogitar de analogia para ampliar as hipóteses de cabimento e criar novo instituto, ainda que assemelhado. As medidas invasivas não podem extrapolar os contornos estabelecidos pela norma regulamentadora (Lei 9.296/1996).

A efetivação da medida buscava o controle total do aparelho "grampeado", pois a inserção de SIM card próprio proporcionaria, além do acesso ao conteúdo das conversas entre os interlocutores, o acesso a todos os demais aplicativos e dados do dispositivo. Torna possível enviar, apagar e arquivar mensagens, redigir e-mails, efetuar ligações, sem deixar rastros, em razão da criptografia. Torna possível até mesmo questionar a autenticidade dos diálogos que vierem a ser encontrados no dispositivo.

O malabarismo hermenêutico malsucedido tornou inválida promissora investigação e contaminou as provas derivadas daquela origem envenenada. Independentemente de sua utilidade, as provas foram maculadas pelo pecado original da ilicitude (teoria da árvore dos frutos envenenados) [7], anulando todo o processo.

O atalho probatório nem sempre é o melhor caminho, pois normalmente a estrada termina no abismo da nulidade, garantindo a impunidade que se pretendia combater, de boa-fé, mas com má técnica. Investigar com respeito à Constituição mantém a higidez da persecução penal e assegura a eficácia da defesa social. O abuso, ao contrário, contribui para o fracasso do Estado em uma de suas mais importantes missões, a proteção da pessoa humana, seja vítima, seja investigado.

 


[1] MS 23452, Relator: Celso de Mello, Data do Julgamento: 16/09/1999, Tribunal Pleno, Data da Publicação DJ 12-05-2000

[2] HC 69912-RS, Relator: Sepúlveda Pertence, Data de Julgamento: 30/06/1993, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 26/11/1993.

[3] Grinover, Ada Pellegrini. "Interceptações Telefônicas e Gravações Clandestinas No Processo Penal", In: Novas Tendências Do Direito Processual. Rio De Janeiro: Forense Universitária, 1990.

[4] "Artigo 57 – Não constitui violação de telecomunicação:
(…)
II – O conhecimento dado:
(…)
e) ao juiz competente, mediante requisição ou intimação deste".

[5] HC: 69912 RS, Relator: Ministro Sepúlveda Pertence, Data de Julgamento: 30/06/1993, Tribunal Pleno, Data de Publicação: DJ 26-11-1993.

[6] REsp 1.806.792-SP, Relatora: Ministra Laurita Vaz, Data do julgamento: 11/05/2021, Sexta Turma, Data da Publicação DJe 25/05/2021

[7] Essa categoria de provas ilícitas foi reconhecida pela Suprema Corte norte-americana, com base na teoria dos "frutos da árvore envenenada" — fruits of the poisonous tree —, segundo a qual o vício da planta se transmite a todos os seus frutos. A partir de uma decisão proferida no caso Siverthorne Lumber Co. vs. United States, em 1920, as cortes americanas passaram a não admitir qualquer prova, ainda que lícita em si mesma, oriunda de práticas ilegais.

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