Opinião

Morreu, com 194 anos, o curso de Direito no Brasil

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4 de agosto de 2021, 21h45

A ConJur noticiou que uma faculdade pernambucana teve aprovada pelo MEC a sua proposta de promover uma graduação em Direito 100% online. Segundo os idealizadores do projeto, a grade curricular será diferenciada; os alunos optarão, desde o primeiro ano, entre uma "trilha" para prestar um concurso público, outra "trilha" para seguir a carreira acadêmica e outra para advogar. Não fica claro até que ponto haveria a segregação dos alunos (os alunos de diferentes "trilhas" teriam as mesmas aulas? Leriam os mesmos textos?).

Em um contexto distópico, marcado por uma pandemia, por sucessivas ameaças à ordem democrática, por grave crise ambiental e econômica e pela deterioração da institucionalidade, a notícia passou razoavelmente despercebida. Contudo, não deveria. É necessário que a ela seja dada a devida atenção. Se, em breve, comemoraremos o dia da fundação dos cursos jurídicos no Brasil, essa aprovação de curso 100% online e "tripartido" pelo MEC deve entrar na história como a data do fim dos cursos jurídicos brasileiros.

Gostaria de dizer que o parágrafo anterior traz apenas um exagero retórico, uma espécie de hipérbole. Não é o caso, infelizmente. Acredito piamente que a decisão do MEC martelou o último prego no caixão dos cursos jurídicos brasileiros, que já estavam com o velório preparado há bastante tempo.

O curso de Direito, conforme originalmente idealizado, pretendia ser um curso de formação de pessoas aptas a exercerem a advocacia e outras funções de Estado, mas também um curso de formação em ciências humanas. Em uma era em que os cursos universitários eram raros, o curso de Medicina servia como um curso geral de ciência biológicas, o de Engenharia como um curso geral de ciências exatas e o de Direito como um curso geral de ciências humanas. Não raramente, os bacharéis em Direito exerciam funções na diplomacia, no Jornalismo, no ensino de Filosofia e Ciência Política, entre outras. O grande geógrafo brasileiro Milton Santos, por exemplo, era formado em Direito; Miguel Reale, expoente da Filosofia nacional, era jurista, advogado e professor de Direito.

Com o tempo, os cursos específicos de ciências humanas surgiram, mas isso nunca impediu que os bacharéis em Direito tratassem das ciências humanas com bastante familiaridade. Seria vergonhoso, por exemplo, que um bacharel em Direito se dissesse incapaz de acompanhar uma discussão sobre ciência política afirmando que sua formação era demasiada tecnicista para lidar com tais temas. Mais vergonhoso ainda seria se ele admitisse um desinteresse, classificando tal discussão de excessivamente teórica e irrelevante.

As coisas mudaram. Da mesma forma como Ernest Hemingway descreveu o processo em que alguém se vê falido — gradually and then suddenly —, os cursos de Direito se tornaram escolas técnicas, voltados à aprovação dos alunos em concursos públicos. Criou-se o mito de que o Estado brasileiro (melhor dizendo, o trabalhador brasileiro, que é quem sustenta o Estado através da tributação) tinha a obrigação de alocar todos os bacharéis em seus quadros e que a contínua expansão do serviço público, mesmo sem correlação com a qualidade da sua prestação, era prova de uma suposta garantia de direitos. Alunos passaram a entrar nos cursos jurídicos já visando uma aprovação em concurso público, ideia que era vendida à população mais empobrecida (boa parte do Brasil, aliás) como a garantia de uma vida próspera.

Agora temos, às escâncaras, um curso de Direito que já classifica os alunos de acordo com as suas pretensões profissionais. Alguém duvida que a maior parte dos alunos optará, já no primeiro ano, pela "rota" do concurso público? E que tal "rota" terá formação eminentemente tecnicista, visando a apenas cobrir o conteúdo dos editais? Por acaso alguém questionou se um aluno recém chegado à faculdade de Direito tem conhecimento e maturidade para saber qual caminho profissional irá trilhar?

Alguém poderia se perguntar: ora, mas qual é o problema com tudo isso? Se uma pessoa quer estudar ciências humanas, que vá às faculdades de humanas. Se quer estudar Direito, vá à faculdade de Direito e lá aprenda o que tem que aprender para ter uma carreira, seja na advocacia ou no serviço público. Do que adianta um advogado que saiba os dilemas da filosofia de Wittgenstein, mas confunda os prazos prescricionais, causando danos ao seu cliente?

O problema dessa linha de raciocínio é que ela ignora a necessidade de pensarmos a ciência do Direito. Se classificarmos o Direito como "ciência social aplicada", tal como o Ministério da Educação o faz, devemos considerar se esta classificação nos leva à conclusão de que o direito é uma "ciência" (uso o termo no sentido lato; não ignoro as críticas que alguns juristas, como Eros Grau, têm com a classificação do direito como "ciência") que tem como corte metodológico o estudo de normas, ou melhor, dos enunciados normativos que levam às normas (a norma é o enunciado normativo somado à interpretação). Ocorre que tais enunciados normativos mudam constantemente. Nenhuma ciência pode se desenvolver em um cenário de completa efemeridade. Na Filosofia, há uma base formada por textos ditos "clássicos" que servem como um ground epistemológico para o surgimento de novas discussões entre filósofos contemporâneos.

O caso do Direito é bastante diferente. Se o enunciado normativo servir de base para o estudo do Direito — tal e qual a atual concepção tecnicista do ensino propõe — não teremos possibilidade de desenvolvimento da ciência do Direito, pois a mudança na legislação é constante. A jurisprudência, que deveria servir para dar estabilidade à interpretação, também muda de forma periódica e nem sempre os debates que ensejam a mudança têm a profundidade necessária.

Assim, seria suicida afirmar que o Direito se limita a estudar enunciados normativos, devendo o aluno decorar o teor e a aplicação de tais enunciados. Um curso estruturado com base apenas nos presentes enunciados normativos formará apenas um "operador do Direito" — péssima expressão, que dá a entender que o jurista é apenas alguém capaz de invocar os enunciados normativos no momento certo, obtendo uma resposta satisfatória do Estado.

O resultado é que a teoria geral e a filosofia do Direito ficam relegadas a um papel secundário, uma espécie de complementação inócua aos estudos da dogmática, cuja finalidade é apenas dar um aspecto de erudição ao discurso sobre uma determinada disciplina do Direito. A dogmática jurídica passa a ser vista como estática (coisa que ela não é) e o jurista passa a ser relegado ao papel de um mero detentor de uma licença profissional. Quem se dedica de forma séria a estudar a teoria geral, a filosofia ou a história do Direito passa a ser visto como alguém "improdutivo".

Chegou o momento de perguntarmos se é isso que queremos. Queremos um exército de bacharéis semiletrados? Queremos perpetuar a experiência deprimente de entrar em uma livraria jurídica e ver apenas obras de péssima qualidade? Vamos continuar vendendo a fábula imoral de que o bacharel em Direito tem como objetivo o eldorado de um emprego público?

Se não quisermos que o modelo "tripartido e 100% digital" seja a regra, se quisermos salvar o Direito do inferno da hiperespecialização, se quisermos preservar o caráter de ensino verdadeiramente superior que deveria caracterizar cursos jurídicos — em contraposição ao meramente técnico —, temos de nos articular para trilhar um caminho diferente. Esse caminho passa por uma revalorização do curso de Direito, com uma volta às ciências humanas e a uma formação inicialmente mais generalista. Poderíamos até mesmo pensar em um curso básico (mas muito rigoroso) de ciências humanas que serviria como acesso aos cursos superiores de Direito e outras ciências humanas. E teríamos de debater o mito imoral do Estado como ente obrigado a criar mais e mais cargos públicos para acomodação dos bacharéis.

Isso contraria diversos interesses e exigiria muita luta. Quem tem disposição para lutar por um cadáver?

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