Opinião

Inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria em PAD

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4 de agosto de 2021, 18h29

Com o advento da reforma previdenciária promovida pelas Emendas Constitucionais 03/1993 (para servidores federais), nº 20/1998 (para servidores estaduais e municipais) e nº 41/2003 (para servidores de todas as esferas do governo), instaurou-se o regime da contributividade e solidariedade para fins de concessão da aposentadoria aos servidores públicos titulares de cargos efetivos vinculados ao Regime Próprio de Previdência Social (RPPS).

Anteriormente, a aposentadoria desses servidores era unicamente custeada pelos cofres públicos, sendo concedida como forma de prêmio ou bonificação em razão do exercício diligente do cargo ao longo de certo tempo de serviço público, não se exigindo nenhum tipo de contribuição ou colaboração pecuniária.

No atual modelo, se tornou compulsória a cobrança paulatina da contribuição dos servidores vinculados ao RPPS, de modo que, conforme ensina Maria Sylvia Zanella Di Pietro [1], passou o servidor a "comprar" seu direito à aposentadoria, pagando por ela, com vistas a salvaguardar-se na ocorrência de riscos futuros.

Ocorre que a legislação infraconstitucional que trata sobre o estatuto dos servidores públicos — que regula a relação jurídico-funcional entre o servidor público estatutário e o ente da Administração Pública ao qual está vinculado — não se adaptou inteiramente ao novo regime de aposentadoria dos servidores e continuou a prever a possibilidade de aplicação da pena de cassação de aposentadoria, desconsiderando que tal sanção se tornou incompatível ao regime constitucional-previdenciário.

É o que se denota, por exemplo, do Estatuto do Servidor Público Civil Federal (artigo 127 da Lei nº 8.112/90) e do Estatuto dos Funcionários Públicos Civis do Estado de São Paulo (artigo 251 da Lei nº 10.261/1969), que ainda preveem a possibilidade de aplicação de tal sanção ao servidor público inativo que, quando em exercício, tenha praticado alguma falta grave ou gravíssima. Na prática, além de ter cessado o pagamento dos proventos de aposentadoria, também se suprime o direito do servidor à aposentadoria no regime em que contribuiu ao longo de sua vida laboral.

Deve-se considerar que, quando o servidor se aposenta, não mais está subordinado a um estatuto, encerrando-se sua relação jurídico-funcional (e dando-se início a uma nova relação de caráter exclusivamente previdenciário para com a instituição previdenciária). Sendo assim, não há que se falar em pretensão punitiva disciplinar por parte da Administração em relação aos servidores aposentados, que sequer poderiam responder a um PAD, quanto mais serem penalizados com tal sanção, de modo que não cabe falar em constitucionalidade da aplicação da pena de cassação de aposentadoria em sede de PAD.

Não bastasse, a doutrina ainda elenca diversos outros motivos para chegar-se a tal conclusão, abaixo pincelados.

Inicialmente, vale registar que tal penalidade sempre foi criticada pela doutrina, pois sequer poderia ser aceita em nosso ordenamento jurídico, uma vez que as sanções administrativas visam a reprimir o comportamento dissonante dos padrões de eficiência e moralidade almejados, bem como prevenir uma nova violação dos deveres funcionais que acarretem prejuízo ao serviço público (função reeducadora) [2], ao passo que a cassação da aposentadoria almeja apenas castigar o servidor inativo, que não mais detém relação direta com a Administração (ou seja, não detém mais poderes para a prática do serviço público) [3].

Ademais, tem-se que a pena de cassação de aposentadoria também ofende o direito adquirido e o ato jurídico perfeito (artigo 5º, inciso XXXVI). Vale dizer, em um cenário em que a aposentadoria foi regularmente deferida pela Administração, observando-se todos os ditames constitucionais e legais, bem como em que se reconheceu a satisfação de todas essas exigências (considere-se que a concessão da aposentadoria é um ato administrativo complexo), haverá um ato jurídico perfeito, o qual fica imune a qualquer situação posterior. Ademais, uma vez preenchidos os supracitados requisitos, o servidor detém direito adquirido ao benefício previdenciário, adquirindo status de intangível.

Ato contínuo, há ofensa ao princípio da dignidade da pessoa humana (artigo 1º, III, da Constituição Federal), pois cassada a aposentadoria de um servidor, o mesmo, que na maioria dos casos já é de idade avançada (e, portanto, terá uma enorme dificuldade para se recolocar no mercado de trabalho, se ainda estiver em condições para tanto), ficará desprovido de seus proventos de forma definitiva. Além disso, não poderá deixar a respectiva pensão aos seus dependentes em caso de morte (neste último caso, inclusive, pode-se afirmar que se viola o preceito constitucional da pessoalidade da pena — artigo 5º, XLV da CF/88 —, uma vez que os familiares dependentes do servidor não poderão fazer jus à pensão por morte decorrente dos proventos do servidor cassado).

Além disso, não se pode ignorar que a previdência é um direito social previsto no artigo 6º da CF/88, que visa a justamente garantir o bem-estar de cidadãos que estejam em situações que impossibilitem ou dificultem o trabalho e, consequentemente, seu sustento (como no caso da velhice). Logo, o servidor que tem sua aposentadoria cassada está sendo privado indevidamente de um direito social destinado efetivamente para garantir condições de subsistência àqueles que se encontram incapacitados para laborar.

Não bastasse, deve ser registrado que a pena de cassação de aposentadoria pode ser enquadrada como uma pena de caráter perpétuo, em inobservância ao artigo 5º, inciso XLVII, "b", da Constituição Federal, pois suprime direitos de forma permanente (uma vez cassada, em qualquer hipótese, o servidor não faz mais jus ao benefício anteriormente auferido), direitos estes que também são constitucionalmente garantidos.

Nesse cenário também é possível verificar o enriquecimento ilícito da Administração Pública, pois, como visto, ao contribuir de forma paulatina, o servidor constrói uma espécie de "poupança" ao longo de sua vida laboral, arrecadando valores para retomar tal quantia, de forma gradual, quando preenchidos os requisitos legais. Ocorre que, se penalizado, o mesmo não terá mais acesso a tais valores, ficando tal numerário em posse da Administração Pública que, sem sombra de dúvidas, estar-se-á apropriando indevidamente do montante, enriquecendo ilicitamente.

Por fim, mas não menos importante, deve-se considerar que existem outros meios legais de punir o servidor público inativo que tenha cometido alguma falta quando em atividade pública, bem como de ressarcir o erário, seja na esfera criminal, seja na esfera cível (por exemplo, através de ação civil pública por ato de improbidade administrativa ou ação ordinária de reparação civil dos prejuízos causados ao erário). Sendo assim, utilizando-se do meio jurídico cabível, o servidor inativo não ficará impune e responderá de forma proporcional ao prejuízo eventualmente ocasionado ao erário.

Contextualiza-se que a questão já foi levada à apreciação dos tribunais superiores, que, mesmo à luz do atual quadro normativo, continuam a replicar o entendimento jurisprudencial firmado antes do advento das Emendas Constitucionais nº 20/1998 e nº 41/2003 (ou seja, há mais de vinte anos), no sentido da constitucionalidade da aplicação de tal sanção administrativa em sede de PAD, data máxima vênia, de forma veementemente engessada e incoerente com o cenário atual [4].

O Supremo Tribunal Federal defende, em suma, que a impossibilidade de aplicação de tal sanção resultaria em tratamento diverso entre servidores ativos e inativos para o sancionamento dos mesmos ilícitos, em prejuízo aos princípios isonômico e da moralidade administrativa, representando indevida restrição da competência disciplinar da Administração em relação a servidores aposentados que cometeram faltas graves enquanto em atividade, favorecendo a impunidade [5].

O Superior Tribunal de Justiça, por sua vez, fixou em seu quadro de "Jurisprudência em Teses" o seguinte entendimento [6]: "A pena de cassação de aposentadoria prevista no artigo 127, IV e artigo 134 da Lei 8.112/1990 é constitucional e legal, inobstante o caráter contributivo do regime previdenciário".

Em que pese tal cenário, diversos tribunais pátrios vêm registrando sua compreensão em sentido oposto, a exemplo dos Tribunais de Justiça de São Paulo [7], do Paraná [8] e de Santa Catarina [9], os quais vêm enfrentando a questão sob um prisma contemporâneo, coerente e compatível com a instituição do atual regime previdenciário, registrando seu entendimento no sentido da inconstitucionalidade da pena da cassação de aposentadoria em PAD (o qual, ao nosso ver, é totalmente acertado e adequado). É possível notar, portanto, a formação de uma nova e moderna frente de entendimento que traz esperança aos defensores da presente tese.

Por fim, traz-se importante reflexão da doutrina [10], no sentido de que também cabe à Administração Pública, assim como têm feito alguns tribunais pátrios, por si só, deixar de aplicar tal penalidade na esfera administrativa, uma vez que, como visto, existem diversos outros mecanismos cabíveis e legítimos de ressarcimento e penalização do servidor inativo faltoso, além de que, ao fazê-lo, estará dando cumprimento à obrigação que lhe recai de zelar pela integridade da Constituição Federal (constante junto ao artigo 23, inciso I, da Constituição Federal).

Sendo assim, de maneira motivada, deve a Administração deixar de aplicar tal penalidade (substituindo-a por outra mais compatível) como medida advinda da própria vinculação à tutela constitucional, de modo que, quando do exercício da ponderação administrativa, se refute em aplicar tal penalidade no caso concreto (constatando a sua inadequação) ante seu compromisso maior de zelo à Constituição [11].

 


[1] DI PIERO, Maria Sylvia Zanella. Cassação de aposentadoria é incompatível com regime previdenciário dos servidores. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2015-abr-16/interesse-publico-cassacao-aposentadoria-incompativel-regime-previdenciario-servidores> Acesso em 02.02.2021.

[2] BANDEIRA DE MELLO, Celso Antônio. A cassação de aposentadoria de servidor público. Boletim de Direito Administrativo, São Paulo, ano 2, p. 183-186, 1986, apud
PUCCETTI, Renata Fiori; ESTEFAM, Felipe Faiwichow. Da inconstitucionalidade da pena de cassação de aposentadoria. Revista Brasileira de Estudos da Função Pública — RBEFP, Belo Horizonte, ano 4, nº 10, p. 235-255, janº/abr. 2015.

[3] PUCCETTI, Renata Fiori; ESTEFAM, Felipe Faiwichow. Op. cit., p. 235-255, janº/abr. 2015.

[4] No que toca ao Supremo Tribunal Federal, tem-se o Mandado de Segurança nº 21.948/RJ, julgado em 29/09/1994, como primeiro precedente que trata, ainda que superficialmente, sobre a questão (o qual costuma ser referenciado nos julgados mais recentes).

[5] BRASIL. Supremo Tribunal Federal. ADPF nº 418, Relator: Ministro Alexandre de Moraes, Data de Julgamento: 15/04/2020, Data da publicação: 30/04/2020. Disponível em:<http://portal.stf.jus.br/jurisprudencia>.

[6] BRASIL. Superior Tribunal de Justiça. Jurisprudência em Teses. Tese nº 10: A pena de cassação de aposentadoria prevista nos artigo 127, IV e artigo 134 da Lei nº 8.112/1990 é constitucional e legal, inobstante o caráter contributivo do regime previdenciário. Disponível em:< https://sconºstj.jus.br/SCON/jt/toc.jsp>. Acesso em 01/02/2020.

[7] BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo (Órgão Especial). MS n° 2091987-98.2014.8.26.0000. Relator: Paulo Dimas Mascaretti, Data de Julgamento: 28/01/2015, Data de Publicação: 11/02/2015. Disponível em: <https://esaj.tjsp.jus.br/cjsg/consultaCompleta.do>. Acesso em: 01.02.2021.

[8] BRASIL. Tribunal de Justiça do Paraná. Apelação Cível 7209081, Relator: Antenor Demeterco Junior, Data de Julgamento: 08/02/2011, Data de Publicação: 17/02/2011. Disponível em: <https://www.tjpr.jus.br/jurisprudencia>. Acesso em: 01.02.2021.

[9] BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina (Órgão Especial). Arguição Incidental de Inconstitucionalidade nº 1001729-45.2016.8.24.0000, Relator: Desembargador Pedro Manoel Abreu, Data de julgamento: 20/10/2017, Data de Publicação 28/11/2017 Disponível em: <https://www.tjsc.jus.br/web/jurisprudencia>. Acesso em: 01.02.2021.

[10] ESTEFAM, Felipe Faiwichow. A configuração e reconfiguração do princípio da legalidade. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2013.

[11] Idem.

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