Garantias do consumo

É possível falar de soberania do consumidor no capitalismo de vigilância?

Autores

  • Dennis Verbicaro

    é doutor em Direito do Consumidor pela Universidade de Salamanca (Espanha) mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará professor da graduação e dos programas de pós-graduação stricto sensu da Universidade Federal do Pará e do Centro Universitário do Pará (Cesupa) líder dos grupos de pesquisa (CNPq) "Consumo e Cidadania" e "Consumo Responsável e Globalização Econômica" procurador do estado do Pará advogado e diretor do Brasilcon.

  • Felipe Guimarães de Oliveira

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA) mestre em Direito pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA) professor de Direito do Consumidor e Direito Econômico na Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário do Pará (CESUPA) e da Escola Superior da Advocacia (ESA – OAB/PA) coordenador da Clínica de Superendividamento do CESUPA e advogado.

4 de agosto de 2021, 8h02

No cenário do neoliberalismo, a cultura do consumo é impactada, formatando o conceito de hipermodernidade, uma sociedade liberal caracterizada pelo movimento, pela fluidez, pela flexibilidade, indiferente como nunca antes se foi aos grandes princípios estruturantes da modernidade, que precisaram adaptar-se ao ritmo hipermoderno para não desaparecer. Um mundo hedonista, medicalizado, online, conectado, como nunca antes e, na qual, a racionalidade do consumidor é paulatinamente mitigada em detrimento dos apelos da indústria cultural, da mídia, do marketing, das estratégias digitais e da captação indevida de dados pessoais em sistemas de big data.

As características centrais da cultura do consumo trabalhada por Mike Featherstone é justamente "a disponibilidade de uma vasta série de mercadorias, bens e experiências para serem consumidas, conservadas, planejadas e desejadas pela população em geral" [1]. Porém, esse consumo está longe de ser apenas o consumo de utilidades destinadas à satisfação de necessidades fixas. Essa cultura do consumo, por meio da publicidade, da mídia e das técnicas de exposição de mercadorias, é capaz de desestabilizar a noção original de uso ou significado dos bens e afixar neles imagens e signos novos, que podem evocar uma série de sentimentos e desejos associados. "A superprodução de signos e a perda de referências, portanto, é uma tendência imanente da cultura de consumo".

Cresce dentro dessa perspectiva uma nova cultura de consumo e de modernização da própria pós-modernidade, na qual, pautas como consumo consciente e responsável, hábitos sustentáveis, e preocupação com saúde e segurança do consumidor são desmerecidas em prol do consumismo, da ostentação, da euforia, do narcisismo e da instantaneidade. Todas essas novas características do mercado de consumo subvertem a ideia de que o consumidor é o soberano no mercado. Na verdade, a liberdade propagada pelo neoliberalismo não passa de uma ilusão e de um abstracionismo. O mercado de consumo cria necessidades artificiais, assedia o consumidor, intensifica práticas hostis de marketing e branding.

A era da hipermodernidade trabalha, portanto, a "Pescaria de Tolos", a que aludem George Akerlof e Robert Shiller [2], ou seja, levar as pessoas a fazerem coisas que são do interesse do pescador (fornecedor), mas não do interesse do alvo (consumidores). Está relacionada a fisgar, deixar cair uma isca artificial na água, sentar e esperar até que o peixe cauteloso nade, cometa um erro e seja fisgado. Nesse contexto, existem muitos pescadores (fornecedores) e eles são os mais astutos na variedade de iscas que, pelas leis da probabilidade, fisgarão a todos, mais cedo ou mais tarde, por mais cauteloso que o alvo o seja. Com base nessa definição um tolo é alguém que, por qualquer motivo, é pescado com sucesso. A sociedade civil e as normas sociais colocam freios nessa pescaria, porém, no equilíbrio resultante do mercado, se houver uma oportunidade para pescar, até mesmo os agentes econômicos com maior integridade moral, geralmente apelarão para essa pescaria, compelidos pelo espírito de competição e sobrevivência.

Nesse sentido, indaga-se: O consumidor ainda é o soberano no mercado de consumo [3]? A teoria econômica neoclássica marginalista de Léon Walras [4], Carl Menger e William Stanley Jevons afirma que as escolhas do consumidor no mercado de consumo são sempre racionais [5], [6], baseando-se na ideia de valor-utilidade. Para esta corrente, a atividade desenvolvida pelos agentes econômicos produz utilidades voltadas à satisfação das necessidades dos consumidores. Assim sendo, para estes teóricos, portanto, o ato de consumir impulsionaria o desenvolvimento da atividade econômica e não o inverso com a ideia de acumulação. Sendo assim, o consumidor seria o soberano e não o fornecedor/produtor/fabricante.

Nesta acepção da teoria, o consumidor então seria o soberano na definição da demanda e na consequente oferta de produtos e do impacto na sua escassez ou não no mercado, influindo decisivamente nos fatores de produção.

É justamente a partir deste ponto, que se desenvolve a ratificação da perspectiva mítica de soberania do consumidor tão cara à escola neoclássica marginalista do valor-utilidade, criticando-se essa corrente teórica para desmistificar que, na verdade, diante da atual quadra neoliberal e hipermoderna, a ideia de soberania do consumidor tem sido paulatinamente mitigada por diversos fatores, tendo por base a perspectiva trabalhada em "A Sociedade Afluente", na qual John Kenneth Galbraith [7], criticará ostensivamente a presunção equivocada de soberania do consumidor.

Nesse sentido, o autor afirmará que um fator determinante na produção é, de fato, não a escolha do consumidor, mas, em medida substancial, a manipulação que o fornecedor executa a partir da resposta do consumidor. A arte da venda, do design e a inovação, são elementos amplamente utilizados para atrair, capturar e alienar o consumidor. Nesse sentido a ideia de soberania do consumidor não ocupa mais papel central na economia de nosso tempo.

Numa crítica à perspectiva de racionalidade absoluta do comportamento do consumidor proposta pelos marginalistas, é evidente uma falha. Se as necessidades do indivíduo devem ser urgentes, têm de se originar nele próprio. Não podem ser urgentes se foram forjadas para ele. E, acima de tudo, não devem ser forjadas pelo processo de produção pelo qual são satisfeitas. Assim sendo, não se pode defender a produção por satisfazer as necessidades se a produção cria as necessidades.

Destarte, exemplifica Galbraith [8], se o consumo de um homem se torna o desejo de seu vizinho, isso já significa que o processo pelo qual as necessidades são satisfeitas é também o processo pelo qual as necessidades são criadas. Quanto mais necessidades são satisfeitas, mais novas surgem. O desejo de conseguir bens superiores adquire vida própria. Ele dá origem a um impulso por gastos mais elevados esse pode até ser mais forte do que o originado das necessidades que se supõem serem satisfeitas por esse gasto.

Mas esse não é o único diagnostico a descortinar o mito da soberania do consumidor, pois como este mesmo autor diagnostica, o elo ainda mais direto entre a produção e as necessidades é fornecido pelas empresas de publicidade e de técnicas de venda modernas. Estas não podem estar conciliadas à noção de desejos determinados independentemente, pois sua função é cria-los, dar vida às necessidades previamente não existentes. Assim sendo, cabe ao produtor tanto a função de produzir os bens quanto a de elaborar o desejo por eles. Reconhece que a produção cria necessidades que busca satisfazer não apenas passivamente, por meio da emulação, mas ativamente, a partir da publicidade e de atividades relacionadas.

Mas há outro elemento de mitigação gradual da soberania do consumidor, que vem se consolidando nas últimas duas décadas, de forma oculta e velada no mercado de consumo: a imersão tecnológica do consumidor, a captura e uso sorrateiro de seus dados pessoais e a superexposição da vida na comunicação digital, este último diagnosticado por Byung-Chul Han.

Segundo Han [9], todo clique na rede mundial de computadores é salvo. Todo passo é rastreável. A vida digital se forma de modo exato na rede e a servidão voluntária do consumidor a alimenta com os seus dados e rastros digitais, fazendo substituir a ideia de confiança pela de controle. No lugar do Big Brother, há a ascensão do big data. Essa estrutura especial panóptica tem habitantes que se conectam e comunicam intensamente uns com os outros e vivem uma ilusão de liberdade, abastecendo essa espécie de panóptico digital com informações que eles mesmos emitem e produzem voluntariamente. Essa é a sociedade de controle, que rompe com a possibilidade de soberania do consumidor no mercado de consumo, na qual os habitantes se comunicam não por coação exterior, mas sim por carência interna, onde, então, o medo de ter de abdicar de sua esfera privada e íntima dá lugar à carência de se colocar desavergonhadamente à vista, ou seja, onde a liberdade e o controle são indistinguíveis.

Ainda assim, Han [10], desenvolve a ideia de que se vive um novo tipo de panóptico na era hipermoderna: o panóptico aperspectivístico, ou seja que prescinde de um centro específico de vigilância, ou mesmo de um olhar despótico. Ele surge totalmente desprovido de qualquer ótica perspectivística, e isso é que constitui seu fator de eficiência. Não se estabelece olho central algum, não se dá qualquer subjetividade ou soberania central. Os habitantes desse panóptico digital imaginam estar em total liberdade.

Formata-se mais recentemente um quadro geral de capitalismo de vigilância, que se expressa, claramente, como mais um elemento de perda da soberania do consumidor no mercado. O termo em referência foi cunhado por Shoshana Zuboff que entende a atual quadra do capitalismo a partir da vertente de vigilância, na qual os agentes econômicos conduzem suas operações de modo a torná-las indetectáveis, indecifráveis [11], marcadas por retórica, com o objetivo de conduzir o consumidor por caminhos obscuros, e desconcertar a todos.

No início dos anos 2000 muitas informações de usuários e consumidores na rede mundial de computadores eram consideradas adicionais ou como "fumo de escape digital ou fumo digital" (data exhaust), tidas como informações adicionais aleatórias, que mais tardiamente, foram consideradas como uma base de informações muito ricas. Acabou por se reconhecer que estes materiais residuais continham dados muito detalhados e específicos dos usuários das plataformas online [12].

Na perspectiva do capitalismo de vigilância, a maior parte dos dados e informações pessoais dos consumidores são usados pelos agentes econômicos para a criação de modelos, ou seja, padrões de comportamento humano. Assim ao se criar grandes padrões de comportamento (modelos), automaticamente, o agente econômico consegue ver as pessoas, consumidores e suas características peculiares. Identificam como elas se comportam ao longo tempo, permitindo ao fornecedor adequar os dados dos consumidores a esse padrão, e, prever, o que vão fazer não apenas agora, mas no futuro.

Esse é o chamado excedente comportamental, ou seja, correntes de dados repletas de previsões ricas. Chama-se de excedente, pois são dados utilizados além da necessidade de melhoramento da prestação do serviço ou fabricação do produto. Em um primeiro momento, sabe-se que agora, pode-se manipular sugestões subliminares em um contexto online para mudar comportamentos no mundo real ou emoções no mundo real. Em segundo, consegue-se exercer a este poder, estes métodos, quando o utilizador não se apercebe. No capitalismo de vigilância, na sua versão original, online, prevê-se a taxa de visitas e se vende isso ao anunciante, que paga para ter visitas em seu site [13].

Na perspectiva digital, online e síncrona, o capitalismo de vigilância encontrou espaço para monitorar, ocultar e perspicazmente, cada passo do consumidor nas plataformas online, em que são coletados dados pessoais, gostos, preferências, estilos, opções políticas, experiências sensoriais, com fulcro na formatação de modelos. Assim, ao se criar grandes padrões de comportamento (modelos), automaticamente, o agente econômico consegue ver as pessoas, consumidores e suas características peculiares.

A soberania do consumidor no contexto atual do capitalismo de vigilância representa, portanto, um mito, o que exige o alargamento do conceito de vulnerabilidade para uma nova dimensão algorítmica. Isso porque o uso das plataformas virtuais pelo consumidor  aparentemente, vantajoso, dinâmico, barato, eficaz, conferindo-lhe supostamente autonomia e domínio sobre a qualidade dos serviços  esconde, na verdade, inúmeros riscos de devastação mercadológica da privacidade e da intimidade, levando à captura de perfis de consumo pelas mais diversas práticas de assédio.

Para a efetiva proteção do consumidor e resgate de sua capacidade decisória no mercado de consumo será determinante, portanto, o diálogo entre a Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD ou Lei 13.709/2018) e o Código de Defesa do Consumidor (CDC ou Lei 8.078/90), favorecendo um melhor controle e a responsabilidade dos agentes econômicos diante das novas práticas abusivas no consumo digital, a participação qualificada do consumidor pelo exercício de sua cidadania instrumental, assim como a mediação responsável do Estado, através Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD), Secretaria Nacional do Consumidor (Senacon) e demais órgãos integrantes do Sistema Nacional de Defesa do Consumidor (SNDC).

Referências bibliográficas
AKERLOF, George A.; SHILLER, Robert J. Pescando Tolos: A Economia da Manipulação e Fraude. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016.

FEATHESTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995.

GALBRAITH, John Kenneth. Galbraith Essencial: Os Principais Ensaios de John Kenneth Galbraith. São Paulo: Saraiva, 2012.

HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Rio de Janeiro: Vozes, 2018.

HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Rio de Janeiro: Vozes, 2017.

JEVONS, Willian Stanley. A Teoria da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

MENGER, Carl. Princípios de Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

VERBICARO, Dennis. Consumo e cidadania: identificando os espaços políticos de atuação qualificada do consumidor. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2017.

WALRAS, Léon. Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.


[1]FEATHESTONE, Mike. Cultura de Consumo e Pós-Modernismo. São Paulo: Studio Nobel, 1995. p. 159-160.

[2]AKERLOF, George A.; SHILLER, Robert J. Pescando Tolos: A Economia da Manipulação e Fraude. Rio de Janeiro: Alta Books, 2016. p. 6-7.

[3]Atribui-se à Willian Harold Hutt (1990) na sua obra "Economists and the Public: A Study of Competition and Opinion", publicada originalmente em 1936, a criação do termo "soberania do consumidor", muito embora a teoria econômica neoclássica marginalista, implicitamente já trabalhasse a ideia na análise da racionalidade do consumidor no modelo valor-utilidade.

[4]Cf. WALRAS, Léon. Compêndio dos Elementos de Economia Política Pura. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

[5]Cf. MENGER, Carl. Princípios de Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

[6]Cf. JEVONS, Willian Stanley. A Teoria da Economia Política. São Paulo: Nova Cultural, 1988.

[7]GALBRAITH, John Kenneth. Galbraith Essencial: Os Principais Ensaios de John Kenneth Galbraith. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 42-49.

[8]GALBRAITH, 2012, p. 45-46.

[9]HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Rio de Janeiro: Vozes, 2018. p. 122.

[10]HAN, Byung-Chul. Sociedade da Transparência. Rio de Janeiro: Vozes, 2017. p. 106-108.

[11]ZUBOFF, Shoshana. A Era do Capitalismo de Vigilância: A Luta por um Futuro Humano na Nova Fronteira do Poder. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020. p.18-19.

[12]Ibid., p. 86.

[13]Ibid., p. 92-101.

Autores

  • Brave

    é doutor em Direito do Consumidor pela Universidad de Salamanca (Espanha), mestre em Direito do Consumidor pela Universidade Federal do Pará, professor da Graduação e dos Programas de Pós-Graduação Stricto Sensu da Universidade Federal do Pará-UFPA e do Centro Universitário do Pará-CESUPA, diretor do Brasilcon, procurador do Estado do Pará, advogado.

  • Brave

    é doutorando em Direito pela Universidade Federal do Pará (UFPA), mestre em Direito pelo Centro Universitário do Pará (CESUPA), professor de Direito do Consumidor e Direito Econômico na Graduação e Pós-graduação do Centro Universitário do Pará (CESUPA) e da Escola Superior da Advocacia (ESA – OAB/PA), coordenador da Clínica de Superendividamento do CESUPA e advogado.

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