Mesmo sem esquecimento

Citar absolvido por chacina no Linha Direta gera indenização, diz Salomão

Autor

3 de agosto de 2021, 19h12

Ainda que não se reconheça a existência do direito ao esquecimento no ordenamento jurídico, ao citar no programa Linha Direta um acusado de participar da chacina da Candelária que foi absolvido, a Globo cometeu excesso no exercício da liberdade de informação. Logo, deve indenizar pelos danos morais.

Tânia Rêgo/Agência Brasil
Episódio da chacina da Candelária ficou nacionalmente conhecido nos anos 90
Tânia Rêgo/Agência Brasil

Essa foi a proposta apresentada pelo ministro Luís Felipe Salomão à 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça nesta terça-feira (3/8), na reanálise de um caso devolvido à corte pelo Supremo Tribunal Federal para eventual juízo de retratação.

Trata-se do primeiro caso em que o STJ analisou e aplicou o direito ao esquecimento, em 2013, mantendo a decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro de condenar a Globo a pagar R$ 50 mil pelos danos morais contra o homem.

A Globo recorreu ao Supremo, e o caso ficou parado. Em fevereiro de 2021, o STF fixou tese em repercussão geral na qual concluiu que o direito ao esquecimento é incompatível com a Constituição Federal.

Mas abriu uma brecha, ao incluir que "eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais — especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral — e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível".

Com a devolução do caso à 4ª Turma para aplicação do julgado do STF, o ministro Salomão concluiu que a postura da Globo quanto ao acusado de participar do crime, que gerou comoção nacional, se enquadrou exatamente na hipótese de abuso de direito.

A proposta de ratificar a condenação da emissora não foi analisada pelos demais ministros porque o segundo a votar, Raul Araújo, pediu vista dos autos.

Gustavo Lima/STJ
Não se pode, para narrar a história, atropelar os outros direitos fundamentais”, afirmou ministro Luís Felipe Salomão
Gustavo Lima/STJ

Linha Direta
A chacina aconteceu no Rio de Janeiro em 1993, quando policiais à paisana abriram fogo contra as cerca de 70 crianças e adolescentes que dormiam nas escadarias da igreja da Candelária. Várias ficaram feridas e oito morreram. Três policiais foram condenados pelo crime e dois foram absolvidos.

A Globo retratou o crime no programa Linha Direta e procurou um dos absolvidos para entrevista-lo. Ele recusou e manifestou expressamente sua vontade de não ser citado. Ainda assim, constou como um dos acusados. Ao ajuizar a ação, alegou que o fato reascendeu na comunidade onde reside a imagem de chacinador e provocou ódio social, entre outros prejuízos.

Para o ministro Salomão, aí reside o abuso cometido pela emissora. A menção no programa televisivo ressaltou sua imagem de indiciado, não de inocentado pelo crime. O relator ainda criticou a tentativa da Globo de prevalecer a aplicação apenas da primeira parte da tese do STF — que veda o direito ao esquecimento —, ignorando a parte final, que pune abusos.

"Percebam a gravidade que seria se o Supremo tivesse parado na primeira parte da tese”, ressaltou. “É que ele foi além e fez as ressalvas. Senão nós teríamos uma absoluta liberdade nessa situação, inclusive quando o exercício abusivo desse direito atentasse contra o princípio democrático, que compreende o equilíbrio dinâmico entre as opiniões contrarias, pluralismo, respeito a diferenças e tolerâncias", continuou.

Salomão apontou que não houve impedimento para a divulgação do programa, que foi ao ar sem obstáculos e não precisou ser retirado da programação ou do acervo. "Não se pode, para narrar a história, atropelar os outros direitos fundamentais", afirmou.

Lucas Pricken
Julgamento foi interrompido por pedido de vista do ministro Raul Araújo
Lucas Pricken

Mais juízo de retratação
Esse é o primeiro julgamento que o STJ recebe de volta do STF para eventual juízo de retratação. Outro caso já liberado pela vice-presidência da corte é o Recurso Especial 1.660.168, que será enfrentado pela 3ª Turma.

Em 2018, o colegiado aplicou o direito ao esquecimento para obrigar Google, Yahoo e Microsoft a filtrar resultados em suas páginas de busca referentes às suspeitas de fraude em concurso para magistratura que teria sido praticada por uma promotora.

Também nesse caso, a autora da ação foi inocentada — esta, pelo Conselho Nacional de Justiça, que reconheceu problemas no método adotado pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro e até emitiu recomendações para os concursos seguintes. Ainda assim, quaisquer buscas de seu nome na internet a vinculavam diretamente às acusações.

REsp 1.334.097

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!