Opinião

O véu ideológico que encobre o ativismo jurídico

Autor

  • Renzzo Giaccomo Ronchi

    é juiz de Direito do TJ-MG doutorando em Direito pelo IDP mestre em Direito Constitucional pelo IDP docente da Escola Judicial (Ejef) do TJ-MG e professor colaborador do mestrado em administração pública da UFVJM.

3 de agosto de 2021, 19h31

No último dia 5 de maio, o emblemático julgamento realizado pelo Supremo Tribunal Federal, que reconheceu a constitucionalidade das uniões homoafetivas, completou uma década.

Naquela data, em 5 de maio de 2011, a Suprema Corte dava ao artigo 1723 do Código Civil interpretação conforme à Constituição para dele excluir no âmbito hermenêutico qualquer significado que impedisse o reconhecimento da união contínua, pública e duradoura entre pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, entendida esta como sinônimo de família.

O julgamento foi por unanimidade, ocasião em que o tribunal fez questão de constar na suma da tese que a deliberação, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, produzia as mesmas regras e consequências da união estável heteroafetiva, estando os ministros autorizados a decidir monocraticamente sobre a mesma questão, independentemente da publicação do acórdão.

Em voto que conduziu o julgamento, o ministro Ayres Britto, relator, destacou que o sexo das pessoas, salvo expressa disposição constitucional em contrário, não pode servir como fator de desigualdade jurídica, tanto que o artigo 3º, inciso IV, da Constituição da República, veda expressamente qualquer tipo de tratamento discriminatório ou preconceituoso em razão da sexualidade dos seres humanos.

Essa premissa, segundo o ministro Ayres Britto, decorreria de um constitucionalismo fraternal, que tem como objetivo a integração comunitária das pessoas, a se viabilizar, para ele, mediante a adoção de políticas públicas afirmativas da fundamental igualdade civil-moral dos estratos sociais historicamente desfavorecidos, dentre eles, a título de exemplo, os negros, os índios, as mulheres, os portadores de deficiência física e/ou mental e as pessoas identificadas como homoafetivas.

Os demais votos proferidos pelos ministros foram acordes com a tese do ministro Ayres Britto, embora cada um tenha formulado sustentação própria em voto individual, tanto que o acórdão, em sua íntegra, possui 270 páginas. De toda, sorte há um dado comum que foi encontrado em vários votos que foram proferidos no plenário, qual seja o fato de que o artigo 226, §3º, da Constituição da República deve ser interpretado de modo a gerar segurança jurídica e, portanto, previsibilidade e certeza, servindo como proteção às uniões homoafetivas.

O acórdão proferido é uma aula de direito constitucional que, mesmo fazendo a defesa desse direito fundamental a um grupo minoritário, não foge ao necessário debate constitucional que há entre conceitos como democracia, constitucionalismo e separação de poderes, tanto que o voto proferido pelo ministro Gilmar Mendes é um registro muito preciso dessa honestidade intelectual com que a Corte enfrentou o tema. Vale dizer, a Corte não se omitiu sobre o dilema hermenêutico envolvendo o texto da regra prevista no §3º do artigo 226 da CR, mas, ao fazer a defesa de um direito fundamental, a Corte fez uma opção e justificou as razões para a sua interpretação.

A decisão do Supremo Tribunal Federal é um marco na história de defesa das minorias e a Unesco, em seu programa "Memória do Mundo", reconheceu esse julgamento como um patrimônio documental da humanidade pela sua transformação da realidade.

Após a decisão do STF, o Superior Tribunal de Justiça passou a entender pela possibilidade de haver casamento entre pessoas do mesmo sexo, conforme julgamento do REsp n° 118.3378 e, ante a recusa de cartórios celebrarem casamentos homossexuais, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou a Resolução n° 175, proibindo serventias extrajudiciais de deixarem de celebrar casamentos entre pessoas do mesmo sexo ou de converter uniões estáveis em casamento.

Conquanto a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADI 4277 seja de uma importância inegável para o fortalecimento dos direitos das minorias, não faltou na época crítica acadêmica rotulando-a de ter sido ativista, embora uma grande parcela tenha compreendido que esse ativismo, especificamente no julgamento das uniões homoafetivas, foi necessário por ter sido empregado para garantir direito fundamental a um grupo marginalizado juridicamente da sociedade.

Entendendo que a decisão do STF no julgamento da ADI 4277 foi ativista e que esse ativismo judicial foi empregado de forma benéfica porque supriu a inércia do parlamento são os estudos de Moreira e Oliveira (2020); Galdino, Cazelatto e Ruffo (2019); e Chaves (2012).

De outro lado, sustentando que a atuação da jurisdição constitucional usurpou função do Poder Legislativo com risco de fragilização da democracia é a posição de Streck e Lima (2011); Douglas (2011); e Carvalho e Lelis (2015).

Independentemente desse histórico julgamento realizado pelo STF, vale a pena citar a posição de Cappelletti (1993) para quem a tarefa do juiz é de interpretação e aplicação do direito e que constitui uma ficção acreditar que o magistrado se limite a declarar o significado do direito preexistente, pois, diante de um processo legislativo, "lento, obstruído e pesado" (Cappelletti, 1993, p. 131), é natural, por consequência, o aumento do grau de criatividade da função judiciária. (Cappelletti, 1993, pp. 131-132).

Se o ativismo em si é um dado quase que incontestável da vida diária dos juízes e tribunais, que estão sempre tentando dar respostas adequadas a problemas sociais cuja solução não pode esperar o timing do parlamento, certo é que o termo ativismo judicial carrega um simbolismo, cujo significado, por si só, sempre põe em dúvida a legitimidade da atuação judicial em confronto com a teoria da separação de poderes.

Não por outro motivo há quem defenda que não existe ativismo bom ou ruim e que toda forma de ativismo judicial é perigosa para o Estado Democrático de Direito (Abboud, 2019, p. 1295).

No caso das uniões homoafetivas, é importante relembrar que o julgamento se originou do ingresso de duas ações do controle concentrado no STF, a ADPF 132 proposta pelo então governador do Estado do Rio de Janeiro, enquanto a ADI 4277 foi assinada pela procuradoria-geral da república.

Em relação à primeira demanda, houve perda parcial de objeto, sendo recebida, em seu remanescente, como ADI, pelo que foi julgada em conjunto com a ADI 4277.

No relatório do voto que conduziu o julgamento, elaborado pelo ministro Ayres Britto, consta expressamente que a presidência da República, a Câmara dos Deputados, o Senado Federal, a Advocacia-Geral da União e a própria procuradoria-geral da república se manifestaram no sentido de serem acolhidos os pedidos formulados nas ações, isto é, não haver qualquer discriminação em relação às uniões homoafetivas.

Embora a teoria do Direito seja muito centrada no discurso judicial, o Poder Judiciário, pelo princípio da imparcialidade, somente produz decisões ativistas porque é provocado por algum agente legitimado a tanto e, no caso da jurisdição constitucional concentrada no STF, os agentes, órgãos e as pessoas jurídicas definidas no artigo 103 da Constituição da República.

Assim, se o Supremo Tribunal Federal praticou ativismo judicial no julgamento das uniões homoafetivas, antes é preciso reconhecer que os agentes legitimados a provocá-lo pela via do controle concentrado também promoveram ativismo jurídico quando, mediante uma interpretação que extravasa o limite do texto da norma, quiseram atribuir um significado que, em tese, não poderia ser dado pelo Poder Judiciário, sob pena de afronta ao princípio da separação de poderes.

A questão parece simples se não fossem as implicações políticas que o ativismo tem proporcionado no contexto político atual.

A inquietação do presente texto, que toma como ponto de partida o julgamento das uniões homoafetivas que foi tão criticado na época por ter sido ativista, serve como reflexão ao projeto de lei n. 4754/2016, de autoria do deputado federal Sóstenes Cavalcante e outros, que pretendia alterar a redação do artigo 39 da Lei n° 1079/1950 para incluir nova conduta tipificada como crime de responsabilidade de ministros do STF, qual seja usurpar competência do Poder Legislativo ou do Poder Executivo.

Na justificativa do projeto, o autor da proposição sustentou a necessidade de tipificação da conduta para conter o ativismo do Poder Judiciário que estaria usurpando as atribuições dos demais poderes.

Agora no último dia 5 de maio de 2021  mesma data em que o julgamento das uniões homoafetivas completou 10 anos , a proposta legislativa foi rejeitada pela Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados, em parecer elaborado pelo deputado federal Pompeo de Mattos. A título de registro, quando o projeto foi posto em votação, 33 votos foram contrários ao projeto, enquanto 32 votos foram favoráveis à sua aprovação, o que demonstra, portanto, que o tema, reprovado por maioria muito estreita, divide e muito o parlamento.

Se a justificativa inserida no projeto de Lei n° 4754/2016 também servisse para criminalizar aqueles que promovem ativismo jurídico, partidos políticos do Congresso Nacional talvez fossem os primeiros a serem atingidos, a exemplo, a título ilustrativo, da ADO n°26/DF, que versou sobre a criminalização da homofobia, cuja decisão também foi extremamente criticada por ter sido ativista criando um tipo penal em detrimento do princípio da legalidade inserido expressamente no artigo 5º, XXXIX, da Constituição da República.

Quem levou o tema ao debate no STF foi o partido popular socialista, sendo esse apenas um exemplo dentre milhares de outras situações que ocorrem todos os dias em que partidos políticos, frustrados com suas expectativas na sua própria casa, deixam a arena política para tentar modificar o resultado pela via judicial na Suprema Corte.

O dia 5 de maio de 2021 é, portanto, uma data marcada na história em que, a um só tempo, serve para relembrar um julgamento histórico do STF em favor das minorias e, também, para advertir que o tema do ativismo judicial está longe de pacificar os ânimos social e político, mesmo quando é realizada a defesa de um direito fundamental.

O que essa data, no entanto, não revela é que o fenômeno do ativismo jurídico é mais amplo do que o conceito de ativismo judicial e, embora seja posto em prática com muita frequência pelos agentes legitimados a propor ações do controle concentrado, estes permanecem ocultados do debate que vilaniza somente o Supremo Tribunal Federal.

Se a democracia se aproxima do constitucionalismo porque pressupõe uma parceria em um empreendimento coletivo de governo dos cidadãos (Dworkin, 2011, p. 161), por qual razão os agentes que promovem ativismo jurídico permanecem escondidos sem qualquer exposição à severa crítica que se faz ao ativismo judicial?

De nossa parte, o termo ativismo judicial é turvo porque, a depender do direito em jogo, serve como véu ideológico para quem não aceita o conteúdo da decisão judicial que está em desconformidade com a sua visão de mundo. Além disso, o termo ativismo judicial vem perdendo cada vez mais força diante de um mundo fragmentado e líquido cujo conceito de separação de poderes remonta há mais de dois séculos. Em outros termos, trata-se de uma crença fetichista no parlamento como ideal de representação do povo escorando-se em uma teoria da separação de poderes que peca pelo seu anacronismo e pela natural dificuldade de adaptação ao "(…) surgimento, em nível mundial, de novas formas institucionais que não podem ser categorizadas como legislativas, judiciárias ou executivas". (Ackerman, 2014, 15).

De toda sorte, se persistir a crítica ao ativismo judicial, considerando o conceito dworkiniano de democracia como um empreendimento coletivo de cidadãos, todos precisam ser responsáveis e trazidos para o palco do ativismo, deixando a invisibilidade.

Referências bibliográficas
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ACKERMAN, Bruce. Adeus, Montesquieu. RDA – Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro, v. 265, 2014.

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Autores

  • é juiz de Direito do TJ-MG, mestrando em Direito Constitucional pelo Instituto Brasiliense de Direito Público (IDP) e em Processo Constitucional pela Universidad Lomas de Zamora na Argentina (UNLZ), pós-graduado em Filosofia e Teoria do Direito pela PUC Minas, membro da Associação Brasileira de Direito Processual Constitucional, membro do Centro de Estudos Constitucionais Comparados (CECC) da UNB e professor do Curso de Direito do Centro Universitário Doctum.

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