Opinião

A competência legislativa plena dos estados no cultivo da cannabis medicinal

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3 de agosto de 2021, 10h38

Nos últimos anos, a sociedade brasileira acompanha no plano internacional e, mais vagarosamente no contexto nacional, novos marcos regulatórios em torno do uso terapêutico das propriedades constituintes de uma planta medicinal, que, entre as muitas variedades genéticas existentes, dados os diferentes processos de domesticação e hibridização, é genericamente conhecida como cannabis.

A regulamentação do Canadá conta com serviços e informações para o problema da adicção da mesma e, ao mesmo tempo, traz diretrizes para sua prescrição terapêutica. Neste país, há possibilidade de registro de pacientes que queiram produzir a própria cannabis para fins terapêuticos.

A lei portuguesa estabelece que o Conselho Diretivo da Infarmed deve publicar lista das indicações terapêuticas consideradas apropriadas para a prescrição de preparações e substâncias à base da planta da cannabis para fins medicinais (Decreto-Lei 8/2019, artigo 17, 2), havendo, até então, sete indicações relacionadas a várias doenças.

Ainda no plano internacional, a Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas aprovou no final de 2020 a reclassificação da cannabis para um patamar de substâncias consideradas menos perigosas para fins de fiscalização da prescrição médica, seguindo recomendação da Organização Mundial de Saúde.

Diante dos benefícios medicinais alcançados por pacientes que necessitam do uso contínuo, seja por meio de óleo artesanal caseiro, seja por meio de preparados ou extratos industrializados, é hoje indubitável o consenso sobre a necessidade de uma política brasileira para o acesso terapêutico da cannabis.

Relevante lembrar que a cannabis é uma das plantas mais antigas domesticadas para o cultivo humano. O uso medicinal é milenar, sendo citada na Pen-ts'ao ching, da tradicional medicina chinesa, a farmacopeia mais antiga do mundo [1]. Posteriormente, a proibição não se deu em razão dos avanços da medicina científica, mas, sim, em razão de suas próprias limitações técnicas naquele tempo de bem compreender a complexidade da planta em estudo, cujos avanços nas pesquisas somente se tornaram viável em meados do século passado, com a descoberta do sistema endocanabinoide.

A ciência de vanguarda traz a informação de que "no próprio cérebro existe um conjunto de mecanismos especificamente desenvolvidos durante a evolução para interagir com substâncias semelhantes aos canabiboides da maconha" [2], denominado sistema endocanabinoide, com forte atuação na regulação da integridade física e do equilíbrio funcional e mental do indivíduo.

Porém, no cenário nacional, ainda se discute quanto à possibilidade do cultivo dessa planta para fins de produção de fitomedicamentos e a realização da pesquisa científica. Ou seja, sequer está em pauta tratativas inerentes ao uso social adulto não médico.

Nesse sentido, encontra-se em trâmite na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 399/2015, que além de consagrar os benefícios à saúde, também prevê o cultivo da cannabis medicinal e do cânhamo industrial por pessoas jurídicas, dando ensejo a fortes embates no âmbito político.

Cumpre anotar que, para fins de cultivo da cannabis medicinal, o aludido projeto de lei estabelece uma série de exigências, de modo a garantir o controle e a segurança do cultivo, visando a evitar o desvirtuamento do uso desta planta para outros fins, que não o estritamente medicinal, científico e industrial.

A mora legislativa em atender os conclames dos milhões de brasileiros que necessitam do uso medicinal, além de repercutir no recrudescimento dos custos inerentes a aquisição do medicamento, tem o condão de mitigar os estímulos econômicos que giram em torno dessa planta, ainda mais no cenário de crise global, em que o fomento da agricultura, da pesquisa científica e do potencial farmacêutico poderiam ser aproveitados para o incremento da produção nacional, gerando emprego, renda e tributação.

É nesse ambiente de insegurança jurídica e de incertezas quanto à tramitação do referido PL 399/2015, que alguns estados brasileiros começaram, ainda de forma incipiente, a legislarem a respeito do tema, sendo pioneiro o Estado do Rio de Janeiro, com a Lei 8872/2020, que "dispõe sobre a política de prevenção da saúde e o incentivo às pesquisas científicas com a cannabis medicinal".

Na mesma toada, verificam-se outros projetos em casas legislativas municipais ou estaduais, tais como Maranhão, Goiás, Paraná, São Paulo, Rio Grande do Sul, entre outros. Mais recentemente, no Distrito Federal, foi sancionada a Lei 6839/2021 (dispõe sobre as diretrizes para o fomento à pesquisa sobre o uso medicinal de produtos da cannabis e seus derivados). Na Paraíba, foram sancionadas a Lei 11338/2019 (instituiu o dia estadual da visibilidade da cannabis terapêutica) e a Lei 11972/2021 (dispõe sobre a política de prevenção e promoção da saúde de pacientes usuários de cannabis terapêutica e o incentivo à formação, estudos e pesquisas científicas com a cannabis).

Sendo assim, passa-se a perquirir: qual o limite da competência dos estados federados para legislarem a respeito do plantio da cannabis exclusivamente para fins de pesquisa científica e produção de medicamentos?

A Lei 11343/2006, por se tratar de uma norma penal em branco, para fins de tipificação dos crimes de uso ou de tráfico de drogas, necessita de uma norma legal complementar.

É nesse contexto que se insere a Portaria MS 344/1998, como sendo o regulamento técnico sobre substâncias e medicamentos sujeitos a controle especial, com a inserção indistinta da planta no Anexo, Lista "E" (lista de plantas que podem originar substâncias entorpecentes e/ou psicotrópicas) e seu componente químico ou psicotrópico "THC", na Lista "F2" (lista das substâncias de uso proscrito no Brasil). Excetuam-se, contudo, dos controles dessas listas, os medicamentos registrados na Anvisa que possuam em sua formulação o tetrahidrocannabinol (THC) ou o canabidiol (CBD) em concentrações especificadas e, da mesma forma, excetuados estão os produtos de cannabis produzidos nacionalmente e os produtos derivados de cannabis importados, de acordo com a RDC 404/2020.

Por sua vez, o Dronabinol sintético está na lista A3 de substâncias psicotrópicas, sujeita à notificação de receita "A". O princípio ativo do CBD purificado está na lista C-1 de substâncias sujeitas a controle especial (sujeitas à receita de controle especial em duas vias), conforme RDC 192/2017 que atualizou a referida Portaria 344/1998.

A Resolução da Diretoria Colegiada da Anvisa, a RDC 327/2019 (dispõe sobre os procedimentos para a concessão da autorização sanitária para a fabricação e a importação e estabelece requisitos para a comercialização, prescrição, a dispensação, o monitoramento e a fiscalização de produtos de cannabis medicinal), tão somente permitiu que empresas, diga-se, pessoas jurídicas de direito privado, importem o insumo farmacêutico nas formas de derivado vegetal, fitofármaco, a granel, ou produto industrializado (artigo 18). Nada deliberou sobre o cultivo da planta, permanecendo o vácuo legislativo.

De se destacar que para pessoas comprovadamente hipossuficientes, o Supremo Tribunal Federal (RE 1165959) determinou o fornecimento pelo SUS de óleo de canabidiol com importação autorizada pela Anvisa.

Noutro giro, a Lei 11343/2006, no artigo 2º, parágrafo único, consagra que pode a União autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais proscritos, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização.

Dos marcos normativos referidos, é possível afirmar que o enquadramento da cannabis nas listas "E" e "F", da Portaria 344/98, não enseja necessariamente a total a proibição do cultivo desta planta no território brasileiro. Isso porque existe regulamentação para o procedimento de autorização especial de plantio por pessoas jurídicas, que deve ser precedida de autorização de funcionamento (Portaria MS 344/98, artigo 5, c/c RDC 16/2014, artigo 4, parágrafo primeiro). É bom lembrar que com relação às pessoas físicas, a omissão regulamentar sobre cultivo é total, sendo hipótese de mandado de injunção.

Ante todo o imbróglio apresentado, frente a primazia constitucional ao direito à vida e à saúde, tem-se patente morosidade da União Federal para legislar a respeito do tema. Isso abre a pergunta sobre a possibilidade constitucional dos Estados ou do Distrito Federal exercerem a competência legislativa plena para tratarem do tema.

Cabe pontuar que as associações de cannabis terapêutica inserem-se no contexto do federalismo cooperativo da saúde e também da ciência e tecnologia, podendo ser celebrados convênios e acordos de parceria para inovação (CF, artigo 199, §1º, c/c. Lei 10973/2004).

Sendo assim, em matéria unicamente de saúde e pesquisa científica, com arrimo na Constituição (artigos 196, 200, V, VI), na Lei do SUS (Lei 8080/90, artigo 15, XIX), na Convenção Única sobre Entorpecentes (Decreto 54216/1964) e também nos regulamentos (Portaria MS 344/98, artigos 5º, §3º, c.c. 107), a conclusão é no sentido de ser patente a competência dos estados da federação para a fiscalização de cannabis, obviamente partilhada com o Ministério da Saúde.

Além disso, a Convenção Única sobre Entorpecentes não requer licenciamento de fabricação para empresas estatais (Decreto 54216/1964, artigo 29, 1), desde que observados requisitos técnicos sobre as especificações do plantio.

Quanto à comercialização, em suma, pode-se afirmar a permissão da venda nas farmácias ou a distribuição na rede pública de saúde, não se observando, até então, maiores celeumas jurídicas.

O ponto de maior controvérsia reside no âmbito do cultivo. Em vista também do que preconizam as disposições regulamentares para laboratórios públicos, que os dispensam de autorização especial, há possibilidade de assentar a competência dos Estados da Federação, no âmbito de institutos ou laboratórios públicos, para fins de plantio da cannabis (Portaria MS 33/17 c/c Portaria 344/98, artigo 8º, III e IV, c/c. Portaria MS 6/99, Instrução Normativa, artigo 10).

O artigo 23, inciso II, da Constituição Federal, estabelece ser competência comum da União, dos estados, do Distrito Federal e dos municípios "cuidar da saúde e assistência pública, da proteção e garantia das pessoas portadoras de deficiência". Logo em seguida, o artigo 24, inciso XII, consagra a competência concorrente dos entes federados para legislarem sobre proteção e defesa da saúde e o seu parágrafo terceiro estabelece que "inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender as suas peculiaridades".

O artigo 2º da Lei de Drogas dispõe de regulamentação por meio do artigo 14, I, "c", do Decreto 5912/06, que vem se mostrando insuficiente, não existindo lei federal específica.

Insta também lembrar o artigo 196, da Lei Maior, consignando ser a saúde "direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas públicas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravamentos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação". Lembrado que direito à saúde é mais do que simples acesso à medicação, compreendendo o direito à assistência integral (CF, artigo 198, II).

O direito à saúde é indubitavelmente uma prerrogativa constitucional indisponível, devendo ser garantido o amplo acesso à medicação e a realização da pesquisa científica da cannabis por meio da implementação de políticas públicas capazes de criar condições objetivas que possibilitem dar efetividade a produção de medicamentos e a pesquisa científica nacional.

Importante lembrar que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento do RE 855178, relator ministro Luiz Fux, DJ-e de 16/3/2015, assentou que "o tratamento médico adequado aos necessitados se insere no rol dos deveres do Estado porquanto responsabilidade solidária dos entes federados".

Ainda no âmbito da Suprema Corte, quando do julgamento da ADI2435, relatora ministra Cármen Lúcia, DJ-e de 26/3/2021, restou consignado que "(…) a delimitação do campo de atuação legislativa dos entes federativos, em matéria de competência concorrente (artigo 24, CF), requer postura interpretativa que considere: (i) a intensidade da situação fática normatizada com a estrutura básica descrita no tipo da regra de competência; (ii) valorização do fim primário a que se destina a norma, relacionado, no federalismo cooperativo, com o princípio da predominância de interesses; (…) (iv) na seara da competência legislativa concorrente, a norma geral assenta-se no pressuposto que a colaboração federativa depende de uma uniformização do ambiente normativo (…)". Do caso do combate à Covid-19, em que foi reconhecida a competência concorrente, extrai-se:

"O pior erro na formulação das políticas públicas é a omissão, sobretudo para as ações essenciais exigidas pelo artigo 23 da Constituição Federal. É grave que, sob o manto da competência exclusiva ou privativa, premiem-se as inações do governo federal, impedindo que Estados e Municípios, no âmbito de suas respectivas competências, implementem as políticas públicas essenciais. O Estado garantidor dos direitos fundamentais não é apenas a União, mas também os Estados e os Municípios" (STF, Adi 6341 MC-Ref, relator ministro Marco Aurélio, DJ-e 13/11/2020).

Pois bem, os estados e municípios também são responsáveis por garantir os direitos fundamentais, abrangendo não só a dimensão do direito à prestação de serviços públicos, mas também o direito a procedimentos administrativos.

Sendo assim, considerando que o Projeto de Lei federal 399/2015 encontra-se há mais de cinco anos em trâmite na Câmara dos Deputados, não havendo qualquer perspectiva de breve aprovação no parlamento, bem como considerando o já evidenciado o interesse de estados, do Distrito Federal e até mesmo de municípios na realização de políticas públicas visando a incentivar o uso medicinal e a pesquisa científica da cannabis, tem-se viável o exercício da competência legislativa plena como um norte jurídico razoável para avanços em torno da celeuma, bastando visão e vontade política dos estados-membros em prol do cultivo da cannabis para fins exclusivamente medicinal e científico, sobretudo, por parte de laboratórios de saúde pública, empresas estatais e fundações estatais, contando com a expertise legislativa necessária para dar plena eficácia ao direito à saúde e à pesquisa científica em inovação em saúde, além de todos os benefícios econômicos decorrentes para àquele que primeiro superar tabus ainda indevidamente existentes em torno dessa planta medicinal.

 


[1]CONRAD, Chris. Hemp. O uso medicinal e nutricional da maconha. Record. Rio de Janeiro: 1997, p. 32

[2] MALCHER-LOPES, Renato, RIBEIRO, Sidarta. Maconha, Cérebro e Saúde. São Paulo: Editora Yagé, 2019, p. 64

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