Opinião

Limitação do acesso a dados armazenados nos celulares de investigados

Autor

  • Christian Corsetti

    é advogado criminalista no Brasil e em Portugal mestrando em Direito e Ciências Jurídico-Criminais pela Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa (FDUL) onde também concluiu a pós-graduação em Law Enforcement Compliance e Responsabilidade Empresarial.

3 de agosto de 2021, 6h01

O direito à intimidade e à vida privada do indivíduo, consagrado expressamente na Constituição Federal de 1988 no inciso X do seu artigo 5º, sofreu diversas mitigações ao longo dos últimos anos, principalmente nos julgamentos realizados pelos tribunais superiores.

Muito embora não exista direito absoluto, pois até mesmo o direito à vida é relativizado diante do que estabelece o artigo 5º, inciso XLVII, alínea "a" da própria Carta da República, a relativização das normas fundamentais vem sendo manipulada incansável e equivocadamente, em especial para viabilizar a proteção do braço punitivo estatal, preservando-se, com isso, as provas angariadas nas investigações preliminares, que, em algumas situações, são adquiridas através de meios ilícitos.

Essa colisão entre o direito à intimidade e à vida privada e o direito de acesso aos dados armazenados nos aparelhos celulares, pela Polícia Judiciária no momento da prisão, despido, portanto, da cláusula de reserva de jurisdição, é o ponto fulcral da questão que se coloca em debate.

Não estamos discutindo aqui, portanto, acerca do acesso às comunicações, às conversas, aos documentos, aos e-mails, às fotos, aos vídeos ou às mensagens armazenadas nos aparelhos celulares, pois estes ainda estão protegidos pela norma e só podem ser alcançados quando houver prévia autorização judicial. O tema que estamos trazendo à baila, em verdade, diz respeito à possibilidade de acesso aos dados armazenados nos referidos dispositivos móveis, como a agenda telefônica, o registro das chamadas, os nomes das pessoas com quem o preso teve contato nos últimos dias, entre outros, sem respeitar a cláusula de reserva de jurisdição.

No Superior Tribunal de Justiça, o entendimento pacificado na atual jurisprudência é no sentido de que esses dados não estão acobertados pelo manto da cláusula de reserva de jurisdição, não havendo, por esse motivo, qualquer ilegalidade na prova adquirida do acesso desse conteúdo pela autoridade policial, ainda que obtidas sem prévia autorização judicial. Nesse sentido é o julgamento do REsp 1.782.386, da relatoria do ministro Joel Ilan Paciornik, em 15/12/2020: "Destarte, pode-se concluir que o inciso XII do artigo 5º da Constituição veda o acesso a dados decorrentes de interceptação telefônica ou telemática, ainda que armazenados no aparelho celular, sem a correspondente autorização judicial. Todavia, a agenda de contatos telefônicos não se inclui nesta proteção, por ter sido compilada pelo proprietário do celular, haja vista que essas informações não são decorrentes de comunicação telefônica ou telemática". E após colacionar a íntegra do referido dispositivo constitucional, assim conclui: "Como visto, este inciso protege as comunicações de dados e telefônicas, sem mencionar nada a respeito da agenda do aparelho celular".

Nesse mesmo sentido são outros julgados recentes da mesma Corte Cidadã: AgRg no REsp 1.853.702/RS, de relatoria do ministro Reynaldo Soares da Fonseca, 5° Turma, em 23/6/2020; AgRg no REsp 1.760.815/PR, de relatoria da ministra Laurita Vaz, 6° Turma, julgado em 9/10/2020.

No entanto, o que está sendo violado não é a norma do inciso XII do artigo 5º da Constituição Federal, mas o direito à intimidade e à vida privada ancorado no inciso X do mesmo dispositivo constitucional, e isso é de uma diferença abissal.

Deve ser por essa razão que o Supremo Tribunal Federal ainda não chegou a um consenso acerca da matéria. Apesar de o tema 977 da repercussão geral, discutido no ARE 1.042.075, já ter seu julgamento iniciado, o ministro Alexandre de Morais pediu vista dos autos, em 11/11/2020.

O placar no Pretório Excelso, até agora, conta com o voto do ministro Dias Toffoli, advogando a tese de que "é lícita a prova obtida pela autoridade policial, sem autorização judicial, mediante acesso a registro telefônico ou agenda de contatos de celular apreendido ato contínuo no local do crime atribuído ao acusado, não configurando esse acesso ofensa ao sigilo das comunicações, à intimidade ou à privacidade do indivíduo (CF, artigo 5º, incisos X e XII)".

No entanto, em sentido diametralmente oposto, os ministros Gilmar Mendes e Edson Fachin defendem com precisão que "o acesso a registro telefônico, agenda de contatos e demais dados contidos em aparelhos celulares apreendidos no local do crime atribuído ao acusado depende de prévia decisão judicial que justifique, com base em elementos concretos, a necessidade e a adequação da medida e delimite a sua abrangência à luz dos direitos fundamentais à intimidade, à privacidade e ao sigilo das comunicações e dados dos indivíduos (CF, artigo 5º, X e XII)".

Destarte, a interpretação desse conjunto de direitos e garantias constitucionais, juntamente com os dispositivos legais, deve ser realizada de forma sistêmica e harmônica, respeitando-se, sobretudo, a essência do nosso ordenamento jurídico, notadamente naquilo que foi conquistado a duras penas, através de muitas lutas e dificuldades, que, aliás, ainda combatemos para manter e evitar o indesejado efeito cliquet (vedação ao retrocesso).

É claro que as provas colhidas no curso das investigações criminais merecem proteção, mas o direito não pode ser colocado em segundo plano para salvaguardar a prova, justamente por ser o direito e existir antes da prova! E é exatamente por essa razão que o direito deve ser preservado, ainda que a ilicitude da prova acarrete na absolvição do agente.

Dessa forma, a análise que devemos adotar à solução desse conflito de direitos deve partir das exceções selecionadas pontualmente pelo legislador, como é o caso do artigo 13-A do Código de Processo Penal (CPP), que permite ao membro do Ministério Público ou ao delegado de polícia requisitar, de quaisquer órgãos do poder público ou de empresas da iniciativa privada, dados e informações cadastrais da vítima ou de suspeitos, sem a necessidade de autorização judicial, tão somente quando estão investigando os fatos tipificados no artigo 148 (sequestro e cárcere privado), 149 (redução a condição análoga à de escravo) e 149-A (tráfico de pessoas), no §3º do artigo 158 (extorsão mediante a restrição da liberdade da vítima) e do artigo 159 (extorsão mediante sequestro), todos do Código Penal, bem como do artigo 239 (tráfico de menores para o exterior) do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/90).

Esse dispositivo legal, o artigo 13-A do Código de Processo Penal, é uma exceção ao direito à intimidade e à privacidade do indivíduo, que o próprio legislador entendeu ser passível de relativização, justamente para proteger um bem jurídico penalmente tutelado maior, a liberdade de locomoção da vítima. Assim, através de um juízo de ponderação entre o direito à intimidade e à privacidade e o direito à liberdade de locomoção da vítima, o legislador colocou este acima daquele, mas isso não significa a derrotabilidade do direito à intimidade e à privacidade do indivíduo, colocando-se, assim, todos os demais direitos acima dele. É uma exceção e, portanto, assim deve ser respeitada.

Ao interpretar o alcance da exceção trazida pelo artigo 13-A do Código de Processo Penal, o entendimento que vem prevalecendo nos tribunais é no sentido de que os dados que o membro do Ministério Público e o delegado de polícia podem requisitar para os órgãos públicos e as empresas privadas, sem prévia autorização judicial, são bastante amplos, porém, restritos aos dados, não alcançando, dessa forma, as comunicações e documentos. Até aí tudo bem, pois ainda está-se dentro do alcance da norma, mas aumentar os tipos penais excepcionados no referido dispositivo legal, viola frontalmente a Constituição da República, pois assim agindo o julgador não está apenas interpretando extensiva ou analogicamente a norma processual, mas atuando como verdadeiro legislador positivo, o que é vedado pelo nosso ordenamento jurídico.

Mas, então, qual é a relação do artigo 13-A do Código de Processo Penal com o acesso aos dados do aparelho celular do indivíduo que é preso em flagrante delito ou no cumprimento do mandado de busca e apreensão, sem autorização expressa para esse acesso? Toda! Porque ao permitir a requisição dessas informações sem a necessidade de autorização judicial, está, ao mesmo tempo, permitindo que essas mesmas autoridades acessem os aparelhos celulares das pessoas presas e envolvidas nesses tipos penais, justamente pela necessidade da urgência em localizar as vítimas daquela espécie de delito. É essa urgência de proteção ao bem jurídico penalmente tutelado, a liberdade de locomoção da vítima, que orientou o legislador na prioridade do direito de acesso aos dados cadastrais dos suspeitos. Mas o que está sendo colocado em primeiro plano pelo legislador, não são as provas e acesso em si, mas a urgente liberdade de locomoção das vítimas. Isso é muito diferente.

Se não fosse para trazer uma exceção ao direito à intimidade e à vida privada do indivíduo, o legislador simplesmente diria que o acesso aos dados do aparelho celular dos investigados é permitido, sem autorização judicial, para todos os tipos penais e não faria essa ressalva apenas aos delitos que foram destacados no artigo 13-A do CPP.

Nesse diapasão, a autoridade policial somente poderá acessar os dados que estão no celular das pessoas presas em flagrante ou no cumprimento de mandado judicial, sem autorização judicial expressa, quando estiverem investigando os crimes elencados no artigo 13-A do Código de Ritos, fora esses, estará colocando em xeque o direito à intimidade e à vida privada dos indivíduos e, por consequência, a dignidade da pessoa humana.

Por essa razão, as provas colhidas pelas autoridades policiais mediante o acesso a dados constantes do aparelho telefônico apreendido, como a agenda telefônica, os contados armazenados, os horários das ligações, os registros das chamas, entre outros, despidas do manto da cláusula de reserva de jurisdição, devem ser declaradas ilícitas, pois violam o nosso ordenamento jurídico, em especial o inciso X do artigo 5º da Lei Maior, notadamente quando a investigação não estiver relacionada com aqueles tipos penais previstos no artigo 13-A do Código de Processo Penal.

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