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A Justiça Eleitoral, os processos democráticos e o voto impresso

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2 de agosto de 2021, 12h48

Tem sido travado nas últimas semanas um intenso debate político no Congresso Nacional e no Poder Judiciário sobre a necessidade ou não da adoção do voto impresso como instrumento de combate às fraudes eleitorais e condição de legitimidade eleitoral. A volatilidade desse debate tem sido aumentada por acusações, sem prova, da ocorrência de fraudes nas eleições anteriores e ameaças de interrupção ou invalidação dos próximos pleitos caso o voto impresso não seja adotado.

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Não pretendo, até por falta de competência técnica, avaliar a consistência da segurança das urnas eletrônicas. Quero olhar em uma perspectiva mais sistêmica, na qual a segurança do nosso sistema eleitoral não é apenas baseada na qualidade das urnas eletrônicas, mas em um processo eleitoral planejado, executado, controlado e aperfeiçoado no curso do tempo por uma estrutura institucional independente e impessoal em relação aos atores e interesses políticos concretos.

Refiro-me aqui à Justiça Eleitoral, composta por um complexo sistema federativo e interinstitucional, do qual participam juízes e promotores Estaduais, desembargadores, ministros do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal e advogados, todos funcionando em uma dinâmica de alternância a cada dois anos. Esse sistema é o fundamento da segurança de um sistema eleitoral eficiente como o brasileiro, já que impede a cristalização de interesses políticos nos processos democráticos de escolha e garante a lisura do processo político. A urna é uma derivada desse sistema multifacetado e independente (e não seu fundamento).

A Justiça Eleitoral foi criada em 1932 pelo Decreto 21.076, baseada na ideias do fundador do Partido Libertador, o gaúcho Joaquim Francisco de Assis Brasil. Vigorava durante a República Velha um sistema eleitoral controlado pelo próprio entes estaduais no qual a Assembleia Legislativa conduzia todo o processo de eleição, em que a intimidação, fraude e violência política eram uma prática comum. É já folclórica a reeleição de Borges de Medeiros à presidência do Estado do Rio Grande do Sul, em 1922. Quando a comissão composta pelos deputados Getúlio Vargas, Ariosto Pinto e José Vasconcelos Pinto, ao chegar com a notícia de que Borges de Medeiros não havia obtido os ¾ de votos necessários à reeleição (exigência curiosa, contida no § 3º do artigo 18 da Constituição do Estado do Rio Grande do Sul, de 1891), foi recebida com a seguinte frase pelo então presidente do Estado: "Já sei, vieram me dar os parabéns pela nossa retumbante vitória". Os três deputados, incapazes de contradizer o líder maior do Partido Republicano, retornaram à Assembleia Legislativa para recontar os votos e dar a vitória a Borges de Medeiros (fato contado em Neto, Lira, Getúlio: "Dos anos de formação à conquista do poder (1882–1930)". São Paulo, Companhia das Letras, 2012, pág. 174-175).

O fato é que o exemplo acima relatado, derivado de um sistema político eleitoral controlado pelos próprios interessados no resultado, não era exclusivo do Rio Grande do Sul e as pressões pelas fraudes permanecem até hoje. Veja-se, como exemplo fora do Brasil, o diálogo amplamente divulgado do ex-presidente Donald Trump, pressionando a Junta Eleitoral do Estado da Georgia para que alterasse o resultado da apuração eleitoral a seu favor. O que impediu isso não foi apenas a conduta ética dos integrantes do Partido Republicano a preservar o resultado efetivo da contagem, mas, mais importante, um sistema de freios e contrapesos que coloca todos em xeque e uma história de cidadania política no país que impede a hegemonia de apenas um partido político. Mesmo assim, isso não impediu que, após a eleição, as leis do Estado da Georgia fossem aprovadas para reduzir a presença da comunidade negra no processo eleitoral .

De qualquer forma, o fato é que no Brasil a alternativa construída para preservar o resultado eleitoral legítimo foi a instituição da Justiça Eleitoral, cuja integridade foi desde o início demonstrada pelo magistrado gaúcho Moisés Antunes Viana, assassinado em 1936 por resistir à prática de intimidação e de violência na adulteração do processo eleitoral, conforme os moldes adotados na República Velha.

Portanto, o sistema independente da Justiça Eleitoral, com atribuição de coordenar de forma imparcial os processos eleitorais, e não apenas julgar os litígios deles decorrentes como ocorre em outros países, é o principal afiançador do resultado final. A urna, seja ela por voto no papel, seja ela eletrônica, é uma derivada desse sistema que vem sendo adotado no Brasil por quase 90 anos. É isso que garante a legitimidade dos processos eleitorais.

É importante que se registre, nesse passo, que o voto impresso representa um efetivo retrocesso na integridade do resultado eleitoral, pois possibilita o retorno do voto de cabresto, permitindo que cada voto seja controlado pela intimidação, violência ou simples compra. Essa possibilidade de fraude é antiga no Brasil, presente desde as origens de nossa experiência democrática e ela persistirá enquanto o sentido de cidadania não estiver impregnado em cada brasileiro e brasileira.

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