Público & Pragmático

Prevenção à corrupção e consensualidade sancionadora: exigências pragmáticas

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1 de agosto de 2021, 8h00

Não há muito tempo, aventar uma atuação preventiva à corrupção [1] por parte dos órgãos e instituições de controle da Administração Pública e/ou a cogitar a coexistência entre sanção e consenso para esses ilícitos parecia algo inconcebível à cultura jurídica nacional, construída sobre fortes bases positivistas, estagnada no controle estanque e a posteriori da gestão pública, forjado sob a "aura imaculada" do binômio indisponibilidade do interesse público e obrigatoriedade sancionatória.

Entretanto, o giro pragmático-científico do Direito Público vivenciado no Brasil — notadamente a partir do final do século 20, com a ascensão do modelo gerencial de administração pública e, mais recentemente pela ideia de Nova Governança Pública [2] —, marcado pelo contextualismo, consequencialismo e antifundacionalismo, evidencia a ineficácia dos sistemas tradicionais de controle da gestão pública e da corrupção, bem como reclama a urgente necessidade de se repensar e executar meios alternativos de prevenção e repressão desses desvios.

O cenário nacional contemporâneo escancara um quadro de corrupção sistêmica, endêmica e institucionalizada, bem como de uma sociedade marcada pela polarização político-ideológica, pela desinformação e pelo descrédito das instituições públicas (especialmente aquelas que comportam poder sancionador), na qual a conflituosidade é pulsante em "espirais de conflito" [3] e marcada pelo acesso reativo e repressivo à Justiça, como única instância formal de resolução de querelas sociais individuais e coletivas que entrou em colapso, mostrando-se, absoluta e empiricamente, ineficaz.

Para se ter uma ideia mais concreta dessa situação — como se propõe pelo pragmatismo da abordagem —, segundo o relatório "Justiça em Números 2020", ano-base 2019, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, a cada grupo de cem mil habitantes, 12.211 ingressaram com uma ação judicial. Embora se tenha detectado um aumento da produtividade do Poder Judiciário, a taxa de congestionamento jurisdicional, que mede o percentual de processos que ficaram represados sem solução, comparativamente ao total tramitado no período de um ano, ainda permanece altíssima, no patamar de 68,5% (apenas 31,5% dos processos foram solucionados).

Analisando-se especificamente a judicialização da pretensão de responsabilização cível (improbidade administrativa) e criminal por corrupção, sem se olvidar de eventuais abusos persecutórios, infere-se que a ineficácia do modelo tradicional de tutela do patrimônio público, da probidade administrativa e do direito fundamental à boa administração pública é ainda mais evidente.

De acordo com o relatório "Metas Nacionais do Poder Judiciário 2020", também publicado pelo CNJ, cumpriram-se, em nível nacional, irrisórios 51% da Meta 4, que era de identificar e julgar 70% das ações de improbidade administrativa, de ações penais relacionadas a crimes contra a Administração Pública e de ilícitos eleitorais distribuídas até 31/12/2017. Especificamente sobre improbidade, em nível estadual, onde se encontra o maior número dessas ações, o percentual foi ainda menor, de ínfimos 33,66% [4]. Some-se a essa ineficácia o fator tempo: o prazo médio de duração dos processos por improbidade até decisão definitiva é de seis anos [5].

A probabilidade de processamento e de aplicação das sanções previstas na Lei nº 8.429/92, alvo de recentes reformas criticáveis, é ínfima: segundo estudo realizado por pesquisadores da Fundação Getúlio Vargas, a chance de um servidor público federal ser acionado judicialmente por ter praticado um ato desta espécie é de 24,26%; e de ser efetivamente condenado é de 1,59% [6]!

Diante dessa constatação e da própria natureza jurídica fundamental do direito à boa governança pública, passou-se a dar maior importância à atuação preventiva e em rede de cooperação entre órgãos de controle interno e externo da Administração Pública. Grande exemplo dessa guinada de atuação foi a criação da Estratégia Nacional de Combate à Corrupção e à Lavagem de Dinheiro (Enccla), fundada em 2003, como rede de articulação interinstitucional e multidisciplinar de enfrentamento à corrupção, em cujas ações aparece como prioridade a vertente da prevenção de ilícitos.

No âmbito do Ministério Público, maior demandante na persecução anticorrupção, tanto na área criminal (legitimidade exclusiva da ação penal pública), quanto na seara da improbidade administrativa, já em 2015, a Carta do III Congresso do Patrimônio Público e Social do Ministério Público do Estado de São Paulo consagrava como nortes de atuação para o MP nacional a priorização da prevenção e da resolução extrajudicial no enfrentamento à corrupção; a fiscalização da implantação e do funcionamento do controle interno; e o acompanhamento e participação nas discussões a respeito dos projetos legislativos que envolvam o aprimoramento do combate à corrupção. Além de diversos atos normativos, editados pelo Conselho Nacional do Ministério Público e por cada ramo da instituição, que recomendam a atuação especializada e prioritariamente preventiva-extrajudicial nesta área, em 2018, a 1ª Ação Nacional de Enfrentamento à Corrupção consagrou essas diretrizes. E esse movimento só vem ganhando força e com grande potencial de eficiência na pronta resposta anticorrupção esperada.

Semelhantemente, a consensualidade sancionadora também passou a ser uma tônica contemporânea no enfrentamento à corrupção, sobretudo após o grande marco de aplicabilidade dos acordos (de leniência e de colaboração premiada) no âmbito da operação "lava jato". No campo específico da improbidade, mesmo antes da previsão expressa na lei de regência, já vinham sendo celebrados acordos em que se negociavam qualitativa e quantitativamente o ressarcimento ao erário e as sanções a serem aplicadas àqueles que incorrerem nos tipos ali previstos, o que passou a ser formalizado com maior segurança jurídica depois da alteração promovida pelo chamado pacote "anticrime", que deu nova redação ao parágrafo primeiro do artigo 17 da LIA e introduziu textualmente em nosso sistema jurídico-sancionador o chamado acordo de não persecução cível.

Ainda que incipiente e com pouca expressividade no campo jurisdicional — em 2019, apenas 12,5% de processos foram solucionados via homologação de acordos —,  a consensualidade na aplicação do Direito sancionador já vem se apresentando como uma forte vertente no âmbito extrajudicial dos órgãos e instituições de controle interno, externo (com destaque para o Ministério Público) e da advocacia pública.

Em que pese não carregarem consigo a pretensão de serem a panaceia absoluta para a redução dos indicadores de corrupção, a atuação preventiva e a consensualidade apresentam-se como mais que alternativas, mas como exigências pragmáticas que podem — e devem — ser conjugadas com modernas ferramentas de gestão, como a atuação em rede articulada, a cooperação, a participação administrativa, e-governo, a transparência e o controle social, aptas a implementarem maiores níveis de governança pública e de integridade nas relações entre o Estado e os cidadãos.

 


[1] Utiliza-se o conceito mais sintético da Transparência Internacional, em que se enquadram os atos de improbidade administrativa: "abuso de poder confiado a alguém para obtenção de ganho privado".

[2] Termo cunhado por Stephen Osborne, para contextualizar e identificar um novo modelo emergente de desenho institucional de implementação de políticas públicas e de prestação de serviços públicos, idealizado como uma via alternativa aos modelos de bem-estar social e de mercado, fundado sob as bases da atuação em rede, da co-construção das políticas públicas, da cooperação, da eficiência e do consenso.

[3] Expressão concebida por Rubin e Kriesberg para designar a escalada progressiva da conflitualidade das relações humanas, em um círculo vicioso de ação e reação.

[6] ALENCAR, Carlos Higino Ribeiro de; GICO JÚNIOR, Ivo. Corrupção e Judiciário: a (in)eficácia do sistema judicial no combate à corrupção. Revista de Direito da Fundação Getúlio Vargas, São Paulo, Jan-Jun 2011, p. 75-98

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