Opinião

A conversão em lei da MP 1.040 e os problemas da falta de debate legislativo

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1 de agosto de 2021, 11h11

O Projeto de Lei de Conversão nº 15, de 2021, visa à conversão em lei da Medida Provisória nº 1.040, de 29/3/2021, e propõe algumas modificações substanciais no texto original desta. O projeto é bastante complexo, possuindo 58 artigos e 78 páginas até o momento, com base na redação aprovada pela Câmara dos Deputados, tratando-se de uma das proposições legislativas mais disruptivas (o que não significa avanço) do Direito Comercial nos últimos anos, com inúmeras alterações nesse ramo, que englobam: a extinção da figura da empresa individual de responsabilidade limitada — Eireli (artigo 41); a previsão de que as assembleias gerais poderão ser realizadas por meios eletrônicos (artigo 43) e de que o local onde a atividade empresarial é exercida pode ser virtual (artigo 43); também temas afetos ao Direito Civil, como a prescrição intercorrente (artigo 43), e ao Direito Processual Civil, como a citação eletrônica (artigo 44).

Entre as novidades, verifica-se a intenção de extinguir a sociedade simples, sob a justificativa de "trazer maior racionalidade à definição de sociedade e à diferenciação entre os tipos de sociedade existentes em lei e ao seu local de registro", prevendo expressamente, no artigo 39 da redação aprovada pela Câmara dos Deputados, que "a partir da entrada em vigor desta Lei, fica proibida a constituição de sociedade simples". O artigo 38 põe fim à dicotomia entre sociedades simples — assim entendidas aquelas que não exercem empresa — e empresárias, in verbis: "As sociedades, independentemente de seu objeto ou do órgão em que se encontram registradas, ficam sujeitas às normas legais e infralegais em vigor aplicáveis às sociedades empresárias".

A primeira e mais óbvia crítica a ser feita ao projeto é a sua inconstitucionalidade formal, sobretudo por duas razões: ausência de urgência para tratar da matéria — extinção da sociedade simples —, um dos pressupostos formais das medidas provisórias (artigo 62 da Constituição), e o fato de o tema não constar da redação originária da Medida Provisória nº 1.040, tratando-se, no vocabulário popular, de um "jabuti", prática declarada inconstitucional pelo Supremo Tribunal Federal [1].

Aliás, a questão ora analisada parece enunciar um bom exemplo da importância de respeito ao devido processo legal legislativo, de que a vedação a inconstitucionalidades formais tem uma razão para existir. Pois, dada a inegável complexidade do tema, a extinção da sociedade simples, é recomendável que o processo legislativo tenha maturação adequada, ouvindo-se os setores da sociedade diretamente afetados por essa alteração e que tenham condições técnicas de propor aprimoramentos à sua redação. O resultado dessa aparente pressa em se proceder a tal alteração legislativa parece ser uma redação que, apesar de inúmeros acertos, deixa de se atentar a detalhes elementares envolvendo a questão.

A título de exemplo, cita-se a incoerência entre o supracitado artigo 39 do projeto e a manutenção do parágrafo único do artigo 983 do Código Civil (que prevê a possibilidade de regulação de sociedades por leis especiais). Do cotejo entre referidos dispositivos, conclui-se pela possibilidade ou impossibilidade de sociedades que sejam regidas por leis especiais não serem empresárias?

Ademais, considerando que o Projeto de Lei de Conversão nº 15, de 2021, em poucas palavras, torna (ou busca tornar) todas as sociedades empresárias, haveria o risco de ocorrer uma "extinção tácita" do regime tributário conhecido como "ISS fixo". Afinal, se as leis municipais [2] e a jurisprudência [3] indicam que a presença do elemento de empresa afasta o enquadramento no ISS fixo, e se com a Medida Provisória nº 1.040 todas as sociedades se tornariam empresárias, a conclusão mais lógica é de que esse regime tributário deixaria de ser concedido aos contribuintes.

O único ponto em que a medida provisória tenta enfrentar essa questão, ainda que timidamente, é no artigo 38, §1º: "A equiparação de todas as sociedades às sociedades empresárias, na forma do caput deste artigo, não altera as normas de direito tributário aplicáveis às cooperativas e às sociedades uniprofissionais ou as normas previstas em legislação específica das sociedades cooperativas". Mas essa redação, como se observa, não enfrenta o problema de maneira adequada; nem sequer menciona o artigo 9º, §1º, do Decreto-Lei nº 406, de 1968, que instituiu o ISS fixo.

Além disso, qualquer alteração à redação desse decreto-lei precisa ser promovida por meio de lei complementar, nos termos do artigo 146, III, "a", da Constituição [4] e do entendimento do Supremo Tribunal Federal sobre a questão [5]. Isso por si só parece inviabilizar que a proposta de extinção da sociedade simples seja veiculada por meio do Projeto de Lei de Conversão nº 15, de 2021, pois, para regular a questão relativa ao ISS fixo, a qual, entende-se, deve ser tratada em conjunto com proposta que vise a extinguir a dicotomia entre sociedades simples e empresárias, é necessário lei complementar.

E, para tornar a redação do projeto nesse ponto ainda mais frágil, no referido artigo 38, §1º, utiliza-se a expressão "sociedades uniprofissionais". Lembra-se que não existe tipo societário com esse nome, o que inclusive revela falta de técnica na redação do dispositivo; e essa expressão é ambígua, nada dizendo de modo claro sobre o seu significado. O que é uma sociedade uniprofissional? Sinônimo de sociedade que precise de autorização por conselho de classe para funcionar? Sociedade que tenha uma única atividade em seu objeto social? Sociedade em que os seus sócios ostentem determinada qualidade?

Relacionado a isso, o projeto contém outra omissão preocupante, uma vez que não apresenta disposição sobre sociedades que na legislação vigente são classificadas como simples e, por expressa previsão legal, não podem ter natureza empresarial. Um dos principais exemplos, quiçá o único [6], é o das sociedades de advogados (artigo 16 da Lei nº 8.906/1994). Não se desconhece que o projeto não propõe a revogação do artigo 15, §1º, da Lei nº 8.906/1994 [7], entretanto, o legislador perde a oportunidade de evitar qualquer dúvida sobre a existência de antinomia nesse caso e os complexos e por vezes insolúveis debates de como solucioná-la. Parece razoável inserir um dispositivo, talvez um parágrafo no próprio artigo 38, prevendo, por exemplo, que "serão consideradas sociedades ‘sui generis’ todas aquelas que a legislação em vigor expressamente afaste do regime empresarial", o que inclusive tornaria expressa a possibilidade de afastamento, mediante lei, desse regime jurídico empresarial único.

O devido processo legal legislativo não pode ser visto como um capricho. É uma necessidade, uma condição de legitimidade do texto normativo. Assim, por melhor que seja a intenção, não parece correto que qualquer projeto prescinda do adequado trâmite, com o envolvimento da sociedade civil e com as discussões a seu respeito. Caso contrário, há o risco de se colocar em xeque o próprio ordenamento jurídico e criar-se celeumas interpretativas ainda maiores, o que, lamentavelmente, parece estar diante da comunidade jurídica mais uma vez.

 


[1] "Viola a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória." Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 5127. Relatora: Ministra Rosa Weber. Julgada em 15 de outubro de 2015. Acórdão publicado em 11 de maio de 2016.

[2] Cita-se, a título de exemplo, o Código Tributário Municipal de Curitiba: "Artigo 10 – As sociedades profissionais, que prestem os serviços relacionados no §2º, deste artigo, ficam sujeitas ao imposto na forma anual fixa, multiplicado pelo número de profissionais habilitados, sócios, empregados ou não, que prestem serviços em nome da sociedade, embora assumindo responsabilidade pessoal, desde que:
I – sejam exercentes de atividade de natureza civil, de exercício profissional que não constitua elemento de empresa; […]."

[3] "’A jurisprudência entende que o benefício da alíquota fixa do ISS somente é devido às sociedades uni ou pluriprofissionais que prestam serviço em caráter personalíssimo sem intuito empresarial’". Superior Tribunal de Justiça. Primeira Turma. Agravo Interno no Agravo em Recurso Especial 1226637/SP. Relator: Ministro Napoleão Nunes Maia Filho. Julgado em 23 de outubro de 2018. Publicado em 7 de novembro de 2018.

[4] "Artigo 146 – Cabe à lei complementar:
[…] III – estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre:
a) definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados nesta Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes; […]".

[5] "1. A jurisprudência do STF se firmou no sentido da recepção do Decreto-Lei 406/1968 pela ordem constitucional vigente com status de lei complementar nacional […].
2. É inconstitucional lei municipal que disponha de modo divergente ao DL 46/1968 sobre base de cálculo do ISSQN, por ofensa direta ao artigo 146, III, "a", da Constituição da República.
[…] Superada a questão da recepção, a única consequência lógica haurida da jurisprudência do STF é a necessidade de diploma legal com mesmo status de lei complementar de índole nacional para fins de revogar ou dispor de maneira diversa sobre a tributação dos serviços desenvolvidos pelas sociedades de profissionais em tela.
[…] ‘Indiscutivelmente, a competência para legislar sobre a base de cálculo do ISS foi incumbida, pela CARTA MAGNA (artigo 146, III, "a"), à lei complementar federal, de maneira que as municipalidades não podem dispor sobre esse aspecto tributário, pois, assim ao procederem, está caracterizado o vício formal, por invadir competência endereçada à União (RE 804.260-AgR-segundo, Rel. Min. ROBERTO BARROSO, DJe de 27/10/2017)". Supremo Tribunal Federal. Tribunal Pleno. Recurso extraordinário nº 940769. Relator: Ministro Edson Fachin. Julgado em 24 de abril de 2019. Publicado em 12 de setembro de 2019.

[6] KLOSS NETO, Guilherme. Comentários aos artigos 15 e 16. In: PIOVEZAN, Giovani Cassio; FREITAS, Gustavo Tuller Oliveira (Org.). Estatuto da advocacia e da OAB comentado. Curitiba: OAB/PR, 2015, p. 144.

[7] "A sociedade de advogados e a sociedade unipessoal de advocacia adquirem personalidade jurídica com o registro aprovado dos seus atos constitutivos no Conselho Seccional da OAB em cuja base territorial tiver sede".

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