Opinião

A implantação de uma nova cultura de solução de litígios na Administração

Autores

  • Fernando Villela de Andrade Vianna

    é advogado sócio da prática de Direito Público Regulação e Infraestrutura do Vella Pugliese Buosi e Guidoni (VPBG) master of laws pela New York University membro da Comissão de Direito Público da OAB/RJ e vice-presidente de Direito Aeroportuário e Árbitro do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA).

  • Gustavo da Rocha Schmidt

    é professor da FGV Direito Rio presidente do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution (RBADR) doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio master of laws pela New York University of Law mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio advogado sócio fundador de Schmidt Lourenço & Kingston — Advogados Associados procurador do município do Rio de Janeiro e ex-presidente da Comissão de Arbitragem dos Brics da OAB Federal.

30 de abril de 2021, 20h35

Com a recente promulgação da Lei Federal nº 14.133/21 (nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos — LLCA), é possível afirmar que o Congresso Nacional concluiu, no campo legislativo, o processo de reformulação do sistema de resolução de conflitos com a Administração Pública.

Até recentemente, o único caminho para a resolução de um litígio com os entes públicos, na prática, era o Judiciário. Esse cenário, contudo, mudou significativamente nos últimos anos. A mudança, que se iniciara com a edição de leis esparsas, a exemplo da Lei Federal nº 9.478/97 (Lei do Petróleo), da Lei Federal nº 8.987/95 (Lei de Concessões), da Lei Federal nº 11.079/04 (Lei de PPPs) e da Lei Federal nº 12.815/13 (Lei dos Portos), ganhou força em 2015 com a edição do novo Código de Processo Civil (Lei nº 13.015/2015, e, sobretudo, com a entrada em vigor da reforma da Lei de Arbitragem (Lei nº 13.129/2015) e da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015). Hoje, são várias portas de entrada e, também, diferentes portas de saída. É nesse sentido que se fala em "tribunal multiportas" ou "sistema multiportas". Na dicção de Antonio do Passo Cabral e Leonardo Carneiro da Cunha, é "como se houvesse, no átrio do fórum, várias portas; a depender do problema apresentado, as partes seriam encaminhadas para a porta da mediação; ou da conciliação; ou da arbitragem; ou da própria justiça estatal" [1].

Nessa linha, aderindo ao sistema multiportas de solução de conflitos, o caput do artigo 151 da LLCA confere ampla autorização legislativa para a adoção da conciliação, da mediação, do comitê de resolução de disputas (dispute boards) e da arbitragem nos contratos públicos firmados entre órgãos e entidades da Administração Pública e parceiros privados. Mais do que isso, o legislador foi extremamente feliz ao deixar em aberto a possibilidade de emprego de outros meios alternativos de resolução de controvérsias, já existentes ou que possam vir a ser criados no futuro, permitindo que sejam incorporados aos contratos administrativos, oportunamente, em compasso compatível com o dinamismo das relações jurídicas.

Não se pode desconsiderar, ademais, que, em setembro de 2019, após a realização de diversos road shows por representantes do Ministério da Infraestrutura e do Conselho do Programa de Parcerias de Investimentos em distintos países e ter colhido a opinião de investidores internacionais, o governo federal editou o Decreto Federal nº 10.025/19 com a intenção de regulamentar de forma mais concreta a adoção especificamente da arbitragem nos setores portuário e de transportes rodoviário, ferroviário, aquaviário e aeroportuário.

Ali, o país reafirmou o seu compromisso em reduzir o "risco judicial brasileiro", assim enxergado pelo capital estrangeiro, consubstanciado nos elevados custos de transação decorrentes principalmente do binômio tempo x dinheiro em litígios de alta complexidade envolvendo contratos públicos, seja para obras de infraestrutura, seja aqueles de longo-prazo, a exemplo dos contratos de concessão ou de parcerias público-privadas (PPPs).

Sob a perspectiva legislativa, portanto, o consenso majoritário caminha no sentido de que nada falta ao Brasil para que os meios alternativos de resolução de controvérsias se tornem a regra nos contratos administrativos. Mas a prática daqueles que advogam na área de infraestrutura e que negociam com órgãos e entidades da Administração Pública revela algumas sérias dificuldades para que isso se torne realidade. Com efeito, conquanto o emprego da arbitragem seja cada vez mais frequente nos contratos públicos, o mesmo não ocorre com os demais meios de solução extrajudicial de litígios, como é o caso da conciliação, da mediação e dos dispute boards.

E isso decorre, a nosso ver, de um compreensível problema cultural entranhado na prática dos gestores públicos, os quais, ao longo do tempo e de experiências passadas (próprias ou de colegas), criaram certa aversão a soluções negociais voluntárias, ante os riscos que geram de questionamentos por parte dos órgãos do controle externo. Confrontado com duas opções, quais sejam, cumprir uma decisão judicial ou sentença arbitral de R$ 100 milhões ou negociar e determinar o pagamento de R$ 50 milhões, mediante acordo amplamente benéfico para o ente público, o gestor público invariavelmente optará pela primeira solução. Afinal de contas, os órgãos de controle não penalizam o cumprimento de uma ordem jurisdicional, como corolário do princípio da inexigibilidade de conduta diversa, em todo aplicável aos processos administrativos nos tribunais de contas, mas farão uma análise criteriosa e com elevado grau de suspeita ex ante de uma opção com "risco de ter gerado um dano ao erário".

Não são raras as oportunidades nas quais o gestor público exige um provimento jurisdicional para tomar determinada "decisão" plenamente justificável no contexto fático-jurídico do caso e que poderia se resolver na esfera administrativa. Até porque, na visão dos gestores, enquanto o pagamento compulsório é "dinheiro público", o voluntário traz implícito o risco de responsabilização com o seu patrimônio privado, a teor do artigo 70, parágrafo único [2], da Constituição e da Lei Federal nº 8.443/92 (Lei Orgânica do TCU). Com isso, o próprio erário e o interesse público são sacrificados, inclusive com prejuízos de longo-prazo para o "risco Brasil" e sua precificação pelo mercado, que sempre embute o custo de litígio elevado com a Administração Pública. Não há almoço grátis.

Trata-se de um viés de comportamento tão enraizado no processo decisório de gestores públicos que a teoria publicista contemporânea passou a denominá-lo de paralisia decisória ou "apagão das canetas" [3], um fenômeno inserido no que vem se convencionando intitular "Direito Administrativo do medo". É verdade que a alteração promovida na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB) pela Lei Federal nº 13.655/18, na parte em que incluiu disposições sobre segurança jurídica e eficiência na aplicação prática do direito público, buscou introduzir formas de proteção aos gestores públicos, a fim de reduzir os riscos jurídicos que assumem nas decisões que tomam no bojo da gestão da res publica. Pode-se citar, a título ilustrativo, o artigo 21 da LINDB, que passou a exigir a indicação das consequências jurídicas e administrativas no caso de decisão que, nas esferas administrativa, controladora ou judicial, venha a decretar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, bem como o artigo 28 da mesma lei, que prescreve que o agente público só responderá pessoalmente por suas decisões ou opiniões técnicas em caso de dolo ou erro grosseiro.

São inegáveis, nesse sentido, os avanços do quadro normativo voltados à proteção ao gestor público. Ainda assim, temos a percepção de que esse viés comportamental só poderá ser corrigido mediante uma verdadeira mudança cultural, principalmente por parte dos órgãos de controle. É dizer: não basta a proteção oferecida pelas leis. É indispensável, sobretudo, que a sua aplicação prática seja condizente com a intenção legislativa.

O passado recente oferece dois bons exemplos de mudanças culturais nas relações público-privadas. A primeira decorre da Lei Federal nº 12.527/11 (Lei de Acesso à Informação), que reestruturou a forma de compreendermos o direito ao acesso a informações e que os cidadãos, não os órgãos e entidades da Administração Pública, são os verdadeiros titulares de tais dados. Para recordar a célebre frase do justice da Suprema Corte dos Estados Unidos Louis Brandeis, em seu artigo "What Publicity can do" [4], "[p]ublicity is justly commended as a remedy for social and industrial diseases; sunlight is said to be the best of desinfectants". A segunda decorre da Lei Federal nº 12.846/13 (Lei da Empresa Limpa), que dispõe sobre a responsabilização administrativa e civil de pessoas jurídicas pela prática de atos contra a Administração Pública, nacional ou estrangeira, e que representou mais um influxo moralizador das relações entre parceiros públicos e privados. Tanto isso é verdade que a LLCA, nos artigos 25, §4º e 60, por exemplo, exige a implantação de programas de integridade pelo licitante vencedor no prazo de seis meses, contado da celebração do contrato, no caso de obras, serviços e fornecimentos de grande vulto (acima de R$ 200 milhões), bem como estabelece a existência de um programa dessa natureza como critério de desempate em licitações públicas.

Concluído o arcabouço jurídico dos meios alternativos de resolução de controvérsias na Administração Pública, com a recente LLCA, propõe-se que, daqui em diante, se confira uma maior atenção aos métodos não adversariais de solução de litígios, em especial a conciliação e a mediação, como forma de equacionar de forma célere, com menores custos de transação e com maiores chances de preservação das relações contratuais, os litígios entre parceiros públicos e privados. Com algumas medidas de cautela e de checks and balances no âmbito do controle interno da própria Administração Pública, é possível conferir segurança jurídica para os gestores públicos e, ao mesmo tempo, demonstrar a vantajosidade de eventual negociação voluntária para o erário.

Entre as medidas de cautela, pode-se sugerir a edição de um guia orientativo [5] (guidelines) da Administração Pública, aplicável a todos os órgãos e entidades, com critérios e procedimentos a serem observados, a exemplo: 1) da criação de uma comissão de negociação no âmbito do órgão ou da entidade estatal para cada caso concreto, cujos membros sejam distintos daqueles responsáveis pela fiscalização e acompanhamento do contrato administrativo, como forma de tratar de forma colegiada e isenta sobre tema tão complexo. Lembre-se que modelo parecido já é adotado no âmbito das negociações de acordos de leniência de que trata a Lei Federal nº 12.846/13; e 2) da obrigatoriedade de a conclusão da negociação ser precedida de parecer jurídico que considerará, inter alia, a probabilidade de perda, os riscos jurídicos, como penalidades, mora e custos do litígio, bem como o interesse público subjacente no acordo que preserve a relação contratual e a conclusão do seu objeto. Esse parecer seria uma verdadeira análise de custo-benefício da via consensual, a ser apresentado para fins de controle interno ou externo dos atos.

Além disso, propõe-se a realização conjunta de encontros acadêmicos e de amplo debate entre a Administração Pública, os órgãos de controle e as Câmaras de Mediação e Arbitragem, tudo com a finalidade de fomentar a reflexão, o conhecimento e o uso dos meios alternativos de resolução de controvérsias, principalmente aqueles de caráter consensual e preventivo de litígios.

O que denominamos de mudança cultural passa invariavelmente por exorcizar o que se passou a interpretar como "presunção de má-fé" [6] no âmbito dos procedimentos de controle externo da Administração Pública. Caso contrário, o viés comportamental (aqui, a paralisia decisória) continuará influenciando as decisões de gestores públicos, em desestímulo ao emprego das alternativas consensuais, em prejuízo ao próprio erário, ao interesse público e à ratio legislativa de incentivar o uso dos meios consensuais de resolução de controvérsias. É preciso buscar o equilíbrio entre controle externo e segurança jurídica para os gestores públicos.

 


[1] CABRAL, Antonio do Passo & CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negociação direta ou resolução colaborativa de disputas (collaborative law); "Mediação sem mediador". In: Zanetti Jr, Hermes & Cabral, Trícia Navarro Xavier. Justiça Multiportas: Mediação, conciliação, arbitragem e outros meios de solução de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2006, p. 710.

[2] "Artigo 70. (…) Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária".

[3] Em síntese, a paralisia decisória se traduz como consequência do medo de gestores públicos de decidir em razão dos excessos cometidos por órgãos do controle externo. Vide, a respeito do tema: Santos, Rodrigo Valgas dos. Direito administrativo do medo: risco e fuga da responsabilização dos agentes públicos, Revista dos Tribunais, 2020; Motta, Fabrício e Nohara, Irene. LINDB no direito público: lei 13.655/2018, Revista dos Tribunais, 2019.

[4] BRANDEIS, Louis D. What publicity can do. Disponível em: 1913_12_20_What_Publicity_Ca (rackcdn.com). Acesso em: 26/4/2021.

[5] Esse guia encontra sua base normativa no artigo 22 do Decreto nº 9.830/19.

[6] No âmbito do TCU, há decisões no sentido de que "a boa-fé não pode ser presumida, devendo ser demonstrada e comprovada a partir dos elementos que integram os autos". Na visão do Tribunal, "tal interpretação decorre da compreensão de que, relativamente à fiscalização dos gastos públicos, privilegia-se como princípio básico a inversão do ônus da prova, pois cabe ao gestor comprovar a boa aplicação dos dinheiros e valores públicos sob a sua responsabilidade". Vide, por exemplo, Acórdão nº 763/2007 — Segunda Câmara e Acórdão nº 4667/2017 — Plenário. Mais recentemente, no Acórdão nº 10237/2020 — Segunda Câmara, a Corte Federal de Contas reafirmou esse entendimento ao afirmar que "a boa-fé, no âmbito dos processos do TCU, não decorre de presunção legal geral. Deve estar corroborada em contexto fático e de condutas propício ao reconhecimento dessa condição em favor dos responsáveis."

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    é advogado do escritório Siqueira Castro – Advogados na unidade do Rio de Janeiro e Master of Laws (LL.M.) em Regulação do Comércio pela New York University.

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    é advogado, presidente do Centro Brasileiro de Mediação e Arbitragem (CBMA) e da Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution (RBADR), professor da FGV Direito Rio, doutorando em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio, master of laws pela New York University of Law, mestre em Direito da Regulação pela FGV Direito Rio, sócio fundador de Schmidt, Lourenço & Kingston - Advogados Associados, procurador do Município do Rio de Janeiro e presidente da Comissão de Arbitragem dos Brics da OAB Federal.

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