Limite Penal

Por que precisamos de bons ouvintes? Henry foi vítima de 'injustiça epistêmica'

Autores

  • Carolina Castelliano

    é defensora pública federal e doutoranda no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Rachel Herdy

    é professora da Universidad Adolfo Ibáñez (UAI) no Chile e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

30 de abril de 2021, 8h02

A morte do menino Henry Borel em um hospital no Rio de Janeiro trouxe a público uma série de informações sobre a rotina do núcleo familiar daquela criança, em especial sobre as figuras de seu padrasto e de sua mãe, ambos suspeitos da prática do homicídio e presos preventivamente por alegada interferência na investigação do caso. O que sabemos até o momento é que Henry vinha sendo submetido nos últimos meses a episódios de violência física e psicológica praticados por seu padrasto, conhecido por Dr. Jairinho.

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Se a violência por si só é um aspecto chocante do caso, sobretudo por se tratar de uma criança de quatro anos de idade, outro elemento no meio das notícias já divulgadas também causa grande surpresa e desconforto: a quantidade de pessoas para quem Henry relatou os abusos que vinha sofrendo e a falta de adoção de qualquer ação protetiva. De acordo com o que já restou apurado e divulgado, Henry teria relatado que vinha sofrendo agressões por parte do seu padrasto para ao menos a babá, a mãe, o pai, uma psicóloga e a avó materna que chegou a desacreditar a palavra do neto.

Tampouco foram suficientes, para que as palavras de Henry fossem levadas a sério, as evidências físicas da agressão por ele sofrida. Quando Henry foi levado a um hospital particular, a justificativa dada pela mãe para as lesões apresentadas, principalmente o fato de o menino estar mancando, foram de que ele teria caído da cama. Não se tem notícia se o menino foi indagado diretamente pelos médicos a respeito do motivo da lesão e se não foi, deveria ter sido. E quanto aos choros e vômitos de Henry diante da possibilidade de um encontro com o padrasto? Tais reações, empiricamente observáveis, deveriam ter sido interpretadas como sinais de que algo estava errado.

Por que o testemunho de Henry, acompanhado de outras evidências, não recebeu a credibilidade devida? (Atenção: o termo “testemunho” é aqui empregado em um sentido epistemológico)[1]. Uma possível resposta à indagação levantada poderia partir de diferentes perspectivas. Aspectos psicológicos poderiam servir como ponto de partida. Neste artigo, contudo, oferecemos uma análise epistemológica. Henry foi vítima de uma injustiça epistêmica.

Injustiça epistêmica é um conceito que se situa na interseção entre Epistemologia, Ética e Política, com importantes implicações para o Direito[2]. Este tipo particularmente epistêmico de injustiça foi identificado por Miranda Fricker no livro Epistemic Injustice: Power and the Ethics of Knowing (2007). Desde então, tem influenciado muitos trabalhos sobre feminismo, estudos raciais e deficiências, entre outros estudos que envolvem práticas de discriminação.

Fricker argumenta que existe uma forma distintamente epistêmica de injustiça, a qual consiste em causar um prejuízo ou dano a alguém especificamente em sua capacidade como sujeito de conhecimento [knower] e transmissor de informações. A injustiça epistêmica pode resultar em danos à própria identidade e à dignidade da pessoa como ser humano. Em casos extremos, como o de Henry, pode resultar em mortes perfeitamente evitáveis.

A injustiça epistêmica pode ser de dois tipos: testemunhal e hermenêutica. A injustiça testemunhal ocorre quando um falante tem sua credibilidade como testemunha reduzida por algum tipo de preconceito (da parte do ouvinte) baseado em fatores identitários (e.g., raciais e de gênero). A injustiça hermenêutica, que ocorre em um estágio anterior à comunicação ativa, manifesta-se “em um certo tipo de tentativa fracassada ou semifracassada de traduzir uma experiência inteligível, seja para si mesmo ou comunicativamente para o outro”[3]. Esse tipo de injustiça ocorre quando alguém tem alguma área significativa de sua experiência social obscurecida devido a uma lacuna hermenêutica[4]. A situação vivenciada não pode ser adequadamente expressa em nenhum termo linguístico ou conceitual corrente. Assim, em certos casos, a própria pessoa tem dificuldade de compreender inteligivelmente a experiência vivenciada e, por tal motivo, de comunicá-la a terceiros.

Alguns exemplos oferecidos por Fricker podem ajudar a ilustrar os dois tipos de injustiça epistêmica. Quando uma autoridade policial deflaciona o testemunho de um suspeito em razão da sua cor, gênero ou classe social, então temos um caso de injustiça testemunhal. Já em relação à injustiça hermenêutica, esta ocorria, por exemplo, quando as mulheres do passado sofriam assédio sexual e não possuíam tal categoria conceitual para que pudessem dar sentido a suas próprias experiências e comunicá-las a terceiros.

Aqui focamos nossa atenção na injustiça testemunhal. A relevância dos estudos de Fricker reside justamente na constatação de que o reconhecimento de um bom informante e, portanto, a atribuição de credibilidade às suas palavras não é uma atividade exclusivamente epistêmica, mas também social. Isso porque, as normas que regulam a atribuição de credibilidade podem espelhar as desigualdades que cercam as diferentes identidades na sociedade. Marcadores sociais – gênero, raça, classe, origem e religião – podem impactar a avaliação de um testemunho, culminando numa situação injusta em que o comunicante de uma informação “é rebaixado e/ou prejudicado em relação a sua condição de sujeito epistêmico”[5]. Tal injustiça impede que a pessoa se veja e seja socialmente percebida como conhecedora de algo.  

Não é necessário que o agente causador da injustiça seja uma autoridade embora ela possa ser considerada mais grave nesses casos. A injustiça epistêmica causada a Henry foi gerada pela atitude de parentes e pessoas próximas que deflacionaram a credibilidade do seu relato. O que importa, na identificação de uma injustiça testemunhal, é que as razões que levam ao descrédito da palavra de uma pessoa tenham relação com preconceitos identitários que operam de forma sistemática na sociedade. Gênero, raça e classe social são os exemplos mais citados. Pouco se fala, contudo, no fator etário.

De fato, os adultos sistematicamente avaliam de forma enviesada as (fantásticas) narrativas infantis – e não só no ambiente doméstico, mas também nas escolas e nos consultórios médicos. O descrédito atribuído às vozes das nossas crianças está presente inclusive nos tribunais. Segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8.069/1990), em se tratando de menores de doze anos de idade, decisões sobre colocação em família substituta (artigo 28, § 2º) ou adoção (45, § 2º) podem ser tomadas sem o seu consentimento.

A credibilidade do testemunho de crianças é situação controversa, na medida em que diferentes pontos de vista divergem sobre o seu grau de maturidade e racionalidade[6]. Entretanto, no caso aqui tratado, a questão que deve ser pontuada é o quanto o testemunho de Henry era consistente e estava cercado de demais evidências que demonstravam que suas palavras eram merecedoras de crédito: o fato de ele ter sido filmado mancando; as mensagens enviadas pela babá relatando as reclamações de Henry para a mãe; e a própria rotina suspeita de permanência do padrasto com a criança em um quarto trancado. Houve um mal ajustamento da credibilidade do testemunho de Henry, uma criança, com as evidências objetivamente existentes, o que é característico de uma situação de injustiça testemunhal[7].

As considerações epistemológicas de Fricker podem ser corroboradas pela noção de “credibilidade retórica” proposta por Trudy Govier. A credibilidade retórica decorre da forma como o falante é percebido pelos outros. Assim, a depender, por exemplo, do sotaque, da roupa, do tom de voz, da capacidade articulativa e do controle das emoções, o falante terá maior ou menor credibilidade retórica[8]. Nesse aspecto, Govier ressalta que standards de racionalidade e maturidade são exigidos dos falantes para serem levados a sério; contudo, tais standards nem sempre incorporam normas neutras, mas replicam relações de poder na sociedade. Falando especificamente sobre as crianças, Govier diz que, a despeito de serem de fato imaturas, “de vez em quando podem dizer a verdade e (contar) importantes histórias sobre o que aconteceu com elas”[9]. Porém, a credibilidade retórica atribuída a elas é muito baixa.

Os desenvolvimentos conceituais de Fricker e Govier foram tema de um artigo recente, de Michael Baumtrog e Harmony Peach, que serviu de inspiração ao presente texto[10]. Os autores alegam que o questionamento da sinceridade e da credibilidade dos testemunhos de crianças é uma forma de injustiça epistêmica que pode, em casos extremos, resultar em morte. Para comprovar a sua tese, abordam alguns casos terríveis de descrédito e de falta de oitiva de crianças.

Um dos casos tornou-se notório pelas cenas de crueldade e sadismo. Adrian Jones, um menino de sete anos de idade, morreu no Kansas em 2015, devido a uma série de atos bárbaros de abuso e tortura, todos provocados por seu pai, Michael, e sua madrasta, Heather. O Serviço de Proteção à Criança do Estado já acompanhava a situação de Adrian desde os seus três anos de idade, quando a sua guarda foi transferida da mãe biológica para o pai biológico. Nos registros das autoridades, consta que Adrian havia dito: “O papai me chuta”; “Sempre me prende no quarto e eu tenho que dormir sem travesseiro ou cobertor”. Consta também que Adrian afirmou às autoridades que o pai o chutou atrás da cabeça até que “um pequeno osso saiu”[11]. Tudo isso é pouco para o que efetivamente ocorreu – mas vamos poupar os detalhes deste terrível crime.

A partir de outros casos noticiados pela mídia, é possível perceber o quanto as violências e abusos praticados contra crianças geralmente são perpetuados dentro de um cenário maior de negligência. Não só a palavra da criança não é levada em consideração, mas às vezes sequer há um ato de comunicação propriamente dito. Essa é a situação, também recente, do menino de onze anos, que foi encontrado acorrentado pela polícia militar dentro de um barril na cidade de Campinas. O menino estava sem receber alimentos há cerca de quatro dias e era privado da possibilidade, inclusive, de se sentar. Nesse caso concreto, o próprio Conselho Tutelar admitiu que vinha acompanhando denúncias de maus-tratos contra a criança há mais de um ano. O acompanhamento, contudo, não evitou a escalada da violência para os níveis noticiados pela mídia. Os relatórios e registros das visitas não foram divulgados. Não surpreenderia a informação de que o menino acorrentado nunca tenha sido instado a prestar testemunho diretamente aos conselheiros. A falta de credibilidade retórica de uma criança contribui para essa falha de interação, sendo que o fato de o menino ser considerado hiperativo pode ter prejudicado ainda mais a sua já deficitária credibilidade.

Ainda não sabemos detalhes sobre o caso recentíssimo da menina Ketelen Vitória Oliveira da Rocha, morta no último sábado, no Estado do Rio de Janeiro, em razão de uma série de agressões físicas e psicológicas causadas por sua mãe e madrasta. O que sabemos é que sua avó materna presenciava as cenas de maus-tratos e tortura, mas não as denunciava porque ela mesma era vítima de maus-tratos e ameaças por parte da filha. Mas e os educadores de Ketelen? Será que sua professora ou seu professor nunca ouviram qualquer relato de sua parte? Será que nunca observaram qualquer sinal físico de agressão? E outros parentes? Ketelen nada relatou a eles?

As tentativas malsucedidas de Henry de ter o seu testemunho levado a sério indicam que, mais do que um problema com o informante, a dificuldade estaria, na verdade, com os ouvintes. Portanto, o que o caso concreto nos ensina é que às vezes o compartilhamento de informações pode ser impactado não por falta de virtudes básicas do falante, como precisão e sinceridade, mas por ausência de certas virtudes na figura do ouvinte. Isso porque, para se evitar uma injustiça testemunhal, o que se espera é “a disposição dos ouvintes de evitar preconceitos em seus julgamentos de credibilidade”[12]. Já em relação à injustiça hermenêutica, o que se espera do ouvinte é uma virtude que se manifeste como um “estado de alerta ou sensibilidade à possibilidade de que a dificuldade que um interlocutor está tendo de apresentar algo comunicativamente inteligível não se deve ao fato de a informação ser absurda ou por ser ignorante”[13], mas por algo objetivo, que no caso seria um tipo de lacuna nos recursos hermenêuticos daquela pessoa.

            Nas trocas comunicativas que envolvem o testemunho de uma criança, cabe ao ouvinte adulto – seja ele parente ou autoridade – ajustar a sua escuta para suspender os standards de racionalidade e maturidade que geralmente guiam suas práticas epistêmicas. Essa conduta é determinante para uma adequada atribuição de credibilidade à fala da criança. O caso do menino Henry sinaliza uma relação de dependência entre os dois pólos da troca comunicativa, pois a identificação de um bom informante somente pode ser feita por um bom ouvinte, que ostente a virtude de ouvir sensivelmente o que lhe é comunicado, levando em consideração as especificidades de seu interlocutor.

 


[1] Do ponto de vista da Epistemologia, o testemunho não se reduz a declarações feitas por terceiros em juízo e sob compromisso de dizer a verdade; mas inclui todo e qualquer ato de comunicação que possui a intenção (ou que é tido como possuindo a intenção) de transmitir informação (Lackey, Jennifer. Testimony: Acquiring Knowledge from Others. In: Goldman, Alvin; Whitcomb, Dennis. Social Epistemology: Essential Readings. New York: Oxford University Press, 2011, p. 72.). Esta definição de testemunho inclui os relatos de Henry a seus interlocutores.

[2] Algumas dessas implicações já foram tratadas por Janaina Matida em artigo publicado nesta coluna.

[3] FRICKER, Miranda. Epistemic justice as a condition of political freedom? Synthese, The Epistemology of inclusiveness, v. 190, n. 07, pp. 1317-1332, 2013, p.1319.

[4] FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice. Power and the ethics of knowing. New York: Oxford University Press, 2007, p.158.

[5] FRICKER, Miranda. Evolving concepts of epistemic Injustice. In: KIDD, Ian James; MEDINA José; POHLHAUS Jr., Gaile (org.). The Routledge Handbook of Epistemic Injustice. New York: Routlegde, 2017, p.53.

[6] Ver BAUMTROG, Michael; PEACH, Hamorny. They can't be believed: children, intersectionality, and epistemic injustice. Journal of Global Ethics, v. 15, n.3, pp.213-232, p.216.

[7] FRICKER, Miranda. Fault and no fault responsibility for implicit prejudice. A space for epistemic ‘agent regret’. In: BRADY, Michael S.; FRICKER, Miranda (ed.). The epistemic life of groups. Essays in the epistemology of collectives, Oxford University Press, 2016, p.38.

[8] Govier, Trudy. When Logic Meets Politics: Testimony, Distrust, and Rhetorical Disadvantage. Informal Logic, 1993, p. 94.

[9] Idem, p. 97.

[10] BAUMTROG, Michael; PEACH, Hamorny. Op.Cit.

[11] Idem, p. 221.

[12] FRICKER, Miranda. Epistemic of injustice…, p. 117.

[13] Idem, p. 169.

Autores

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    é defensora pública federal e doutoranda no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

  • Brave

    é professora de Teoria do Direito na UFRJ, doutora em Sociologia pelo Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj) e co-líder do Grupo de Pesquisa Epistemologia Aplicada aos Tribunais (Great).

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