Opinião

Diálogos competitivos: nossos administradores conseguirão conversar?

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30 de abril de 2021, 6h03

O diálogo competitivo vem sendo tematizado sob vários aspectos: sobre sua identificação dialógica (comparativamente aos procedimentos de manifestação de interesse), seu procedimento, seu alcance, seu vanguardismo em contratações públicas (até por sua origem europeia). Em comum a tanta doutrina alguma desconfiança quanto à sua eficácia, alguma expectativa de sua efetiva utilidade. Por ora, analisamos estritamente se a Administração Pública, por seus gestores, reúne as condições necessárias para entabular uma prosa assim proposta pela Lei 14.133/2021.

Embora o "diálogo competitivo" remeta a uma ideia inicial de ser uma arena de tratativas para celebrar contratações públicas, o instituto é expressamente definido como uma modalidade de licitação, cujo propósito é construir soluções capazes de atender às necessidades públicas de compras, serviços ou obras. E, assim sendo, seu procedimento pode ser compreendido em três fases distintas: a delimitativa do diálogo; a dialógica; e a concorrencial ou competitiva. Na primeira, a Administração Pública definirá as necessidades e as exigências que, objetivamente, delimitarão o diálogo, bem como os critérios empregados para escolha de licitantes, sendo vedada a utilização de qualquer informação que possa implicar alguma vantagem discriminatória. Essa fase, preparatória de um primeiro edital de divulgação, apresenta as condições objetivas e subjetivas para que um diálogo produtivo aconteça validamente (a contrario senso, se as premissas para dialogar não forem adequadamente colocadas, o procedimento pode não alcançar seus resultados).

A fase externa do diálogo contempla uma etapa dialógica e outra, concorrencial, competitiva. Na primeira, com duração mínima de 25 dias, a Administração Pública e os licitantes interessados estabelecerão o diálogo: a partir dos elementos editalícios, reunir-se-ão para alcançar a solução mais adequada à satisfação da necessidade pública especificada. Essas reuniões serão realizadas com cada licitante separadamente, sob compromisso de confidencialidade, sendo registradas e gravadas. Concluídos os diálogos, a Administração Pública divulgará um segundo edital, em que especificará a solução que atende suas necessidades e os critérios objetivos a serem utilizados para seleção da proposta mais vantajosa. Em prazo não inferior a 60 dias úteis, os licitantes poderão apresentar suas propostas, a serem julgadas segundo os critérios do artigo 33 da nova lei que forem mais apropriados à escolha da solução.

Com esse regramento, o diálogo competitivo distingue-se das outras modalidades justamente pela fase dialógica, na qual se revela a inspiração de um modelo pós-gerencial de Administração Pública, marcado pelo anseio de a organização estatal ser mais democrática. Nesse caso, o diálogo será efetivamente participativo apenas para estabelecer alternativa capaz de atender à necessidade de contratação ou, na verdade, para descrever o objeto de uma pretendida disputa licitatória.

Assim, o inciso III do artigo 32 da nova lei só pode ser compreendido neste contexto: ou se dialoga ou se disputa. Se houver competitividade desde o início  pelo modo aberto ou fechado  não haverá sentido para que a Administração Pública estabeleça qualquer diálogo com o mercado, porque as alternativas para contratar as obras, os serviços ou as compras já estariam disponíveis. Equivale a dizer: o veto ao inciso III do artigo 32 da Lei 14.133/2021 permitiria aplicar o diálogo competitivo a situações completamente alheias a seu principal fundamento, qual seja o de definir objetos complexos que serão disputados em fase posterior à dialógica. Embora pareça um simples contrassenso, arrisca-se aqui a relativizar o conceito de complexidade, haja vista que bens, serviços ou obras aparentemente simples poderiam ser conduzidos ao diálogo competitivo, justamente porque: 1) o critério de definição por disputa  ou melhor, de definição pelo conjunto de soluções já disponíveis  não seria relevante; e 2) os critérios dos incisos I e II do mesmo artigo 32 autorizam juízos discricionários, inclusive pelos conceitos jurídicos indeterminados que utilizam.

Na nova lei, não há um conceito exato do que seja um objeto complexo. Para efeito de diálogo competitivo, ainda mais se for uma modalidade universalmente utilizável e sem referência a patamares de valor de contratação, União, estados, Distrito Federal e os diferentes municípios brasileiros definirão "complexo" com réguas diferentes, embora alguns parâmetros possam até ser uniformizados, a exemplo da inovação tecnológica ou de especificidades técnicas.

Uma garantia de objetividade no diálogo competitivo, mais exatamente quanto a seu uso conforme a Lei 14.133/2021 e com a desejável economicidade, estaria num controle feito por tribunais de contas. Contudo, a faculdade de esse controle acontecer concomitantemente ao transcurso do diálogo foi vetada, ao fundamento da exorbitância de funções dos órgãos de controle externo. Se havia a pretensão de assegurar a integridade de discurso por um terceiro observador qualificado — ainda que controlador, o veto induz que a própria Administração Pública assim o fará, na medida em que estabelece suas tratativas com os licitantes.

Está, assim, colocado o desafio comunicacional para a Administração Pública: estabelecer o que será complexo, para efeito de buscar interlocutores qualificados no mercado, visando a construir as "alternativas" que terão sua contratação posteriormente disputada; dialogar sem reservas informacionais, exceto aquelas previstas em lei, o que implica não apenas externar a ciência dos fatos relevantes à definição do objeto de contratação, mas também não agir estrategicamente (violando a isonomia entre interlocutores e a própria impessoalidade); e compartilhar a indisponibilidade do interesse público com a esfera privada. Se a Administração Pública estiver comprometida com o objetivo de ser uma organização eficientemente democrática, nem os vetos parciais à Lei 14.133/2021 poderão constranger sua determinação em evoluir dos antigos padrões patrimonialistas para ser uma entidade responsiva às necessidades de contratações adequadas.

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