Opinião

Sem brasileiras, CPI da Covid-19 não tem legitimidade

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29 de abril de 2021, 18h45

Não é mais novidade para ninguém que as mulheres existem em maior número no Brasil. Correspondem a 51,8% da população, de acordo com o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e 52,5% do eleitorado, segundo o Tribunal Superior Eleitoral. Pode até parecer uma margem pequena, mas significa oito milhões de votos a mais.

Já em 1991, ou seja, há mais de uma geração, o Ministério da Educação apontou que as brasileiras ultrapassaram os brasileiros em cadeiras universitárias. Em 2004, foi a vez do curso de medicina, geralmente o mais disputado, a ter mais alunas que alunos. No esticado percurso da pandemia, a força de trabalho feminina e a desigualdade estrutural entre gêneros foram escancaradas. As pesquisadoras Cristiane Soares e Hildete Pereira de Melo mostraram, em estudo recente, que as trabalhadoras da saúde somam 72%, mas recebem apenas 37% do que ganham os trabalhadores em cargos semelhantes.

Apesar do indiscutível protagonismo da linha de frente do combate à Covid-19, são elas as mais vulneráveis no mercado de trabalho, as que mais perdem empregos, as que mais sentem o acúmulo dos afazeres domésticos, as que mais se desdobram no cuidado com a prole e os idosos, as que mais se desgastam com o ensino remoto e a insegurança alimentar. São ainda elas as que mais vivem com o medo e a sombra da violência doméstica e as lacunas da assistência estatal.

No Brasil, a pandemia é um quebra-cabeça que, quando pronto, revela a imagem de uma tragédia grega. Entre negacionismo da ciência, remédios sem eficiência, fuga das vacinas e ausência de políticas sólidas de distanciamento social e auxílio econômico, o país esforçou-se na inoperância para alcançar o segundo lugar em número de mortes. Em três meses, as duas doses de imunizantes chegaram aos braços de somente 6,2% da nossa população.

A pressão popular, então, chegou. Quando nem mais milhões de panelas em isolamento surtiam efeito, a voz da sociedade foi ouvida por meio de choros e desesperos em portas das unidades de saúde. O Senado ressurgiu das telas de audiências virtuais e instalou em 27 de abril, por conta de decisão do Supremo Tribunal Federal, uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) para apurar ações e, mais ainda, omissões do governo federal na gestão da pandemia.

A CPI, destinada a averiguar a atuação do Poder Executivo federal nessa hecatombe, conta com 11 membros titulares e sete suplentes. A representação dos escolhidos, a partir de determinadas perspectivas, é vasta. Estão em 13 dos 16 partidos políticos presentes na atual legislatura e vêm de 13 estados da federação. Mesmo com tanta diversidade ideológica e regional, não há nenhuma senadora.

O Senado conta com 12 senadoras de oito partidos políticos entre os 81 eleitos. Praticamente 15% do total. Ainda assim, nenhuma mulher foi indicada para integrar o fórum que irá avaliar a catástrofe que elas sentem mais intensamente na pele.

A comissão vai se debruçar sobre os acontecimentos sem que haja titular ou suplente que conheça, intrinsecamente, o dilema da dupla jornada, os horrores da violência obstétrica e o peso da divisão sexual do trabalho. Nenhum dos membros saberá o que é a dura realidade de quem opta pelo espaço público quando a sociedade lhe reserva incondicionalmente o privado. Nenhum terá conhecimento, por experiência pessoal, o que é ser visto como menos quando é você quem mais faz.

O senador Renan Calheiros, em seu bonito discurso, afirmou que a cruzada da CPI é "contra a agenda da morte". Disse ainda que é para "contrapor o caos social, a fome, o descalabro institucional, o morticínio, a ruína econômica e o negacionismo".

Pergunto-me se é possível combater a agenda da morte, do caos social e da fome sem incluir no processo decisório as representantes do segmento mais atingido, mais envolvido na árdua batalha da saúde e mais esquecido no planejamento governamental. Aqueles, ou melhor, aquelas que dão humanidade ao retrato melancólico de um Brasil que se dissolve em retrocessos e desesperanças.

Uma CPI sem brasileiras é uma CPI sem plena legitimidade. Ela reforça o que dados que já nos mostram: a cidadania das mulheres ainda não foi compreendida pelos homens. Muito menos incorporada pelas instituições.

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    é advogada, doutora em Direito Político e Econômico, professora da Escola de Direito do Brasil (EDB), coordenadora e autora das obras Women’s Rights International e especialista em compliance de gênero.

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