Opinião

Evidências científicas em tempos de Covid-19 e o Supremo Tribunal Federal

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29 de abril de 2021, 20h35

A relação entre políticas públicas e evidências científicas vem sendo apreciada pelo Supremo Tribunal Federal em razão do ajuizamento de demandas questionando a condução dos programas de enfrentamento à pandemia. O presente trabalho pretende responder, com base na jurisprudência dessa corte, se o Judiciário possui instrumentos capazes de obrigar a Administração a observar evidências científicas no desenvolvimento de ações governamentais.

Para melhor compreensão da extensão e da importância da pergunta, a análise será dividida em dois momentos. Primeiro, serão realizadas considerações doutrinárias sobre a relação entre políticas públicas, evidências científicas e deliberação política. Segundo, abordaremos julgados do Supremo Tribunal Federal para construir um mapa do entendimento atual sobre a possibilidade (ou não) de exigir o cumprimento de standards técnico-científicos.

Na literatura especializada, as teorias sobre políticas públicas baseadas em evidências (PBE) ou, em inglês, evidence-based policy (EBP), inauguram um campo de pesquisa em expansão global alicerçado na aproximação entre conhecimento científico e políticas públicas eficazes. Essa perspectiva de abordagem já atraia visibilidade para discussões sobre aquecimento global, política de drogas e migração, mas a emergência da pandemia da Covid-19 elevou essa controvérsia para um grau jamais visto. Tornou-se debate cotidiano definir como administradores, legisladores e, eventualmente, juízes devem se relacionar com a ciência para tomar decisões que atinjam toda a coletividade.

As teorias sobre políticas públicas baseadas em evidências (PBE) privilegiam as ações governamentais baseadas em conhecimento técnico e expertise, rejeitando interesses clandestinos como eleitorais, corporativistas e ideológicos. Atribui-se à ciência o dever de direcionar trabalhos para problemas sociais e aproximar os debates acadêmicos à experiência cotidiana e à prática política [1].

A PBE busca avançar na compreensão dos empecilhos do diálogo entre ciência e política, exigindo alterações na forma como o conhecimento científico é produzido e transmitido, além de defender uma restruturação do modo como questões técnicas são absorvidas e gerenciadas por legisladores e administradores. Ainda propõe-se uma governança do saber para avaliar como as pesquisas científicas são realizadas, como os dados podem ser utilizados numa sociedade democrática e plural e como podem ser reduzidos os vieses técnicos e ideológicos. A transparência e a accountability são preocupações essenciais [2].

Então, à primeira vista, a resposta para o questionamento sobre o espaço da ciência nas ações governamentais parece óbvia: evidências científicas, conhecimento técnico e expertise sempre deverão guiar as decisões públicas. Apesar disso, a integração entre ciência e escolhas políticas não ocorre de forma harmoniosa ou natural, sendo necessário esforço e compromisso entre os atores na construção de um sistema transversal de produção de conhecimento e aplicação eficiente em políticas públicas.

Essa discussão toma outra proporção quando convergem duas situações conjunturais: 1) um cenário de omissão estatal diante de consenso científico sobre determinado assunto; e 2) a substituição da esfera administrativa e legislativa pelo Poder Judiciário como espaço de deliberação sobre políticas públicas. Nesse caso, devem ser discutidos quais os instrumentos jurídicos capazes de obrigar a Administração a cumprir orientações técnico-científicas sem desrespeitar a separação dos poderes.

Em consulta ao sistema de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, foram encontrados 11 julgados do plenário da corte que articulam orientações sobre como se relacionam evidências científicas [3], políticas públicas e as ações de enfrentamento à pandemia de Covid-19.

Entre as abordagens, podemos dividir os argumentos favoráveis às políticas públicas baseadas em evidências em quatro aspectos jurídicos: a) a disposição expressa no artigo 3º, §1º, da Lei 13.979/2020; b) a observância dos princípios da precaução e prevenção; c) a competência da Administração para avaliar fatos e dados científicos; e d) a responsabilização a posteriori do gestor por erro grosseiro.

A Lei 13.979/2020 estabeleceu normas gerais sobre ações de enfrentamento da emergência de saúde pública decorrente da pandemia. Entre as providências ali elencadas, destacam-se a previsão de isolamento social, quarentena, vacinação, restrição excepcional e temporária de rodovias, portos ou aeroportos, além de autorização excepcional e temporária para a importação e distribuição de quaisquer materiais, medicamentos, equipamentos e insumos da área de saúde.

Nesse contexto, o texto do artigo 3º, §1º, da Lei 13.979/2020 fixa que as medidas contra a pandemia somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde. O termo "somente poderão" indica que as evidências científicas compõem diretriz central da conduta estatal, confiando na habilidade do gestor para utilizar conhecimentos técnicos no processo de tomada de decisão.

Ainda, para mediar a relação entre ciência e políticas públicas aparecem como essenciais os princípios da precaução e prevenção. Tais princípios impõem um "juízo de proporcionalidade e a não adoção, a priori, de medidas ou protocolos a respeito dos quais haja dúvida sobre impactos adversos" (ADI 6427 MC, relator: Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020).

Dessa forma, o Supremo Tribunal Federal entende que "essa apreciação, à toda a evidência, compete exclusivamente às autoridades públicas, caso a caso, em face das situações concretas com as quais são defrontadas, inclusive à luz dos princípios da razoabilidade e proporcionalidade, sem prejuízo do posterior controle de constitucionalidade e legalidade por parte do Judiciário" (ADPF 671 AgR, relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 16/06/2020).

A resistência de algumas autoridades públicas para seguir recomendações científicas e sanitárias expedidas por organizações nacionais e internacionais tornou imprescindível a previsão de algum mecanismo de responsabilização a posteriori do gestor. Assim, foi consolidada orientação que considera "erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação ao direito à vida, à saúde, ao meio ambiente equilibrado ou impactos adversos à economia, por inobservância de normas e critérios científicos e técnicos" (ADI 6431 MC, relator: Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020).

Temos, portanto, que o Supremo Tribunal Federal adota uma posição de deferência em relação às escolhas técnicas da Administração, notadamente no âmbito das políticas públicas relacionadas à pandemia do Covid-19. Os julgados acima demonstram um entendimento contínuo sobre a impossibilidade de apreciação judicial de estudos científicos para contrapor a análise do executivo.

A capacidade institucional, ausente no cenário de incerteza [4], emerge como fundamento de autocontenção do Judiciário, pois "não cabe ao Supremo Tribunal Federal substituir os administradores públicos dos distintos entes federados na tomada de medidas de competência privativa destes, até porque não dispõe de instrumentos adequados para sopesar os diversos desafios que cada um deles enfrenta no combate à Covid-19" (ADPF 671 AgR, relator: Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 16/06/2020).

Por tudo exposto, o Supremo Tribunal Federal construiu jurisprudência que reconhece sua falibilidade na apreciação de evidências científicas em tempos de Covid-19, sem, contudo, deixar de tomar a ciência e a expertise como fundamentos inafastáveis da ação governamental. Rejeitou a revisão judicial de fatos e dados científicos para privilegiar a accountability por meio da responsabilização posterior [5].

Em crítica ao atual posicionamento do STF, não se pode deixar de alertar que uma postura de autocontenção e deferência do judiciário diante da omissão estatal envolvendo consenso científico pode resultar num quadro de proteção deficiente do cidadão. O limite entre o ativismo judicial violador da separação dos poderes e a intervenção legítima não é facilmente perceptível e depende: 1) da análise minuciosa do caso concreto; 2) do grau de certeza científica sobre a matéria; e 3) da existência (ou não) de outros instrumentos capazes de modificar a posição do gestor. Concluindo, as políticas públicas baseadas em evidências devem ocupar papel central nas atividades administrativas e legislativas, combinando conhecimento técnico, deliberação política, práticas profissionais e atuação cooperativa de todos os poderes da República [6].

 


[1] FRENCH, Richard D. Evidence-Based Policy: Four Schools of Thought. Canadian Public Administration, n. 61, i. 3, pp. 1-15.

[2] Idem.

[3] ADI 6586, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 17/12/2020; STP 101 AgR, Relator(a): Dias Toffoli (Presidente), Tribunal Pleno, julgado em 03/10/2019; ADPF 671 AgR, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 16/06/2020; ADI 6362, Relator(a): Ricardo Lewandowski, Tribunal Pleno, julgado em 02/09/2020; ADI 6427 MC, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020; ADI 6341 MC-Ref, Relator(a): Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Edson Fachin, Tribunal Pleno, julgado em 15/04/2020; ADI 6425 MC, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020; ADI 6431 MC, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020; ADI 6421 MC, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020; ADI 6428 MC, Relator(a): Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 21/05/2020; e ADI 6343 MC-Ref, Relator(a): Marco Aurélio, Relator(a) p/ Acórdão: Alexandre De Moraes, Tribunal Pleno, julgado em 06/05/2020.

[4] VERMEULE, Adrian. Laws Abnegation. Cambridge: Harvard University Press, 2016.

[5] KINGAL, Jeff A. Institutional Approaches to Judicial Restraint. Oxford Journal of Legal Studies, nr. 28, pp. 409-441, 2008.

[6] HEAD, Brian W. Three Lenses of Evidence-Based Policy. The Australian Journal of Public Administration, v. 67, n. 1, pp. 1–11.

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