Opinião

No "novo normal", a autodefesa não pode ser objeto de birra estatal

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28 de abril de 2021, 7h04

O exame sobre o ensino jurídico, ao contrário do que se possa imaginar, não constitui uma das mais fáceis fainas. Afirmar, por exemplo, que ele se encontra em crise permite que o juízo valorativo seja colocado em xeque, quando se leva em consideração o próprio conceito de crise, tal como apresentado, a partir da sua história, por Rubens Casara [1].

O afastamento da ideia de crise tem como lastro a hipótese — e que veio a ser comprovada — trazida por Aurélio Wander Bastos [2], no sentido de que, desde a instituição das primeiras faculdades de direito no Brasil nas cidades de São Paulo e Olinda, subsistiu uma continuidade na formação do jurista.

Diante desse cenário, ainda mais quando se considera a proclamação solene do Estado Democrático de Direito no Texto Constitucional, afirma-se que a formação jurídica se encontra deficiente, isto é, incapaz de incutir valores democráticos nos bacharéis, que ainda insistem, tal como apontado em estudo elaborado por Danilo Pereira Lima [3], compreendê-lo como uma ferramenta de exercício do poder ou mesmo de perpetuação daqueles que o já detêm.

Independentemente de como venha a ser julgado o ensino jurídico, vale dizer, se inserido em um momento de crise ou em um projeto maior de insuficiência na consecução de seus propósitos, o emprego de novas tecnologias e formas de comunicação podem, e principalmente devem, ser manejados como forma de fomentar um debate público na comunidade jurídica. Quem sabe, fora das estruturas acadêmicas formais, se possa obter uma superação da mentalidade autoritária.

Com esse pano de fundo, justifico uma reflexão elaborada a partir de recente episódio do podcast Criminal Player [4], quando Aury Lopes, Alexandre Morais da Rosa e Bruno Cassiolato discorreram sobre a possibilidade de o réu foragido participar de forma virtual de atos do processo penal. Essa questão, na verdade, veio a ser objeto de apreciação pela 16ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo [5], quando foi decidido que não haveria direito a exercício, ainda que de forma virtual, do exercício da autodefesa pelo réu foragido.

No simbólico julgamento realizado no episódio do citado podcast, a maioria foi formada no sentido de que, ainda que o réu se encontre foragido, a autodefesa pode ser exercida no âmbito virtual, ou seja, no sentido contrário do que veio a ser decidido pelo TJSP.

A despeito das considerações trazidas por Bruno Cassiolato, os argumentos aduzidos pela maioria se mostraram mais consistentes e adequados a uma lógica em que o processo penal é concebido como local de controle do exercício do poder punitivo e que o contraditório constitui elemento essencial para a obtenção das decisões judiciais. Se não bastasse isso, a tentativa de distinguir os conceitos de comparecer e aparecer se mostra inócua em razão do posicionamento assumido pelo Superior Tribunal de Justiça que permite a citação penal pelo aplicativo WhatsApp [6].

Até mesmo em razão do espírito provocador do vogal, Alexandre Morais da Rosa, a questão da participação da autodefesa do réu foragido ganhou um elemento ainda mais interessante, a saber: se admitido o exercício dos direitos de audiência e de presença do foragido, poderá ser pleiteado o fornecimento de um link secreto e não rastreável?

Não se trata de uma invencionice ou mesmo uma "discussão bizantina" promovida por Alexandre Morais da Rosa, pois a 2ª Câmara de Direito Criminal do Tribunal de Justiça do estado de São Paulo [7], apesar de admitir a participação do réu foragido, não assegurou o fornecimento de link secreto e não-rastreável.

Não resta dúvida de que essa segunda decisão, e que não veio a ser apreciada no julgamento simbólico realizado no episódio do Criminal Player, constitui um avanço ao caso que impediu o exercício da autodefesa, pois seria uma participação incompatível com a condição de foragido. Com essa evolução decisória, foi suplantada uma equivocada construção argumentativa que despreza o fato de o réu foragido gozar do estado de inocência e, por via de consequência, nenhuma presunção pode atuar em seu desfavor; logo, a construção da ideia de renúncia tácita ao direito de participar ou mesmo acompanhar os atos instrutórios somente demonstra a incompreensão de um dos pilares do devido processo legal.

Não se realizará exame sobre o cabimento, ou não, do Habeas Corpus como ação adequada para o fornecimento do link secreto e não-rastreável, mas sim sobre a viabilidade dessa pretensão independentemente da forma como veio a ser materializada. Há, inclusive, de se indagar: por qual razão se pleiteia o fornecimento de um link secreto e não-rastreável? Justamente para assegurar que o exercício desse direto não configure uma forma de se conhecer o paradeiro do réu.

Não se trata de postura típica do abuso do direito, até mesmo porque, ao contrário do que se sucede no âmbito do processo civil, não há de se exigir qualquer comportamento colaborativo do réu com a persecução penal. Com relação ao magistrado, até mesmo como forma de assegurar a imparcialidade, não poderá condicionar a fruição de um direito à obediência de uma decisão judicial anterior, isto é, somente pode exercer a autodefesa se permitir que o mandado de prisão venha a ser cumprido. Não se trata de um acordo, que, caso descumprido, permite a vendeta estatal com a limitação da autodefesa.

O principal ponto a ser destacado passa pela compreensão de facetas importantes da autodefesa, mais especificamente o direito de presença e de direito de audiência. Adauto Suannes, com arrimo na doutrina de Ada Pellegrini Grinover, destaca para a relevância do direito de o réu ter his day in court [8]. Quer seja quando problematizada a questão no âmbito estadunidense, quer seja no momento da confecção do livro de Adauto Suannes, não se poderia imaginar a possibilidade de audiências serem realizadas de forma remota, ainda mais diante um cenário de grave crise sanitária. Permitir que esse direito de ter seu dia na corte por meio virtual se mostra plenamente adequado a esse pensamento.

Como já dito, o fornecimento de link secreto e não-rastreável permite que a autodefesa possa ser exercida de maneira serena, sem qualquer ameaça ou, caso seja permitida a inspiração hollywoodiana, preocupada em se usar o menor tempo possível para que não seja localizado o local do sinal. Nesse momento, uma lição doutrinária elaborada pelo clássico João Barbalho Uchoa Cavalcanti no início do século 20 se mostra imprescindível, a saber:

"(…) Com a plena defesa são incompatíveis, e, portanto, inteiramente inadmissíveis os processos secretos, inquisitoriais, as devassas, a queixa ou o depoimento de inimigo capital, o julgamento de crimes inafiançáveis na ausência do acusado ou tendo-se dado a produção das testemunhas de acusação, sem ao acusado se permitir reinquiri-las, a incomunicabilidade depois da denúncia, o juramento do réu, o interrogatório dele sob coação de qualquer natureza, por perguntas sugestivas ou capciosas" [9].

Ainda que se trate de réu foragido, não se pode negar que a possibilidade de ser preso a qualquer momento, caso ocorra o rastreamento do link, constituiu uma ameaça séria ao seu depoimento, o que já permite invocar a citada e vetusta lição de direito constitucional que tem eco em posicionamento elaborado por Aury Lopes Júnior mais de um século depois sobre a impossibilidade de coações se aproximarem da figura do interrogatório [10]. Além disso, essa situação em que pende sobre o réu uma verdadeira espada de Dâmocles aponta para o risco de vulneração ao disposto no artigo 8º, item 2, alínea "c", Convenção Americana sobre Direitos Humanos, pois a concessão de tempo necessário para o exercício de uma plena autodefesa poderá ser afetada.

A participação do réu, ainda que seja foragido, na audiência virtual confere maior legitimidade à decisão judicial, pois assegurará um contraditório mais robusto, inclusive com a possibilidade, quando da inquirição das testemunhas, de um caráter mais fortalecido do direito ao confronto.

O chamado "novo normal' trouxe situações inéditas; porém, isso não permite que direitos e garantias fundamentais venham a ser esvaziados. As novidades devem ser usadas para fortalecer os valores democráticos, o que, aliás, é realizado com o emprego de um podcast como forma de fomentar um debate público sobre determinada situação jurídica. No caso em exame, ainda que se trate de réu foragido, caso subsista o seu interesse em participar da audiência de instrução, deverá o Poder Judiciário assegurar a fruição de direitos próprios da autodefesa com o fornecimento de link secreto e não-rastreável. As sentenças, independentemente do teor — condenatórias ou absolutórias — se mostrarão mais legítimas. A participação do réu não pode ser objeto de qualquer coação, ainda que saiba que sua condição de foragido implica em situações de risco de aprisionamento a qualquer momento. Porém, isso não assegura ao Poder Judiciário adotar uma postura pueril; afinal, a birra não pode se fazer presente no cotidiano forense.

 


[1] "Em sua origem, a palavra 'crise' (do grego 'krísis') era um termo médico que retratava o momento decisivo em que o doente, em razão da evolução da enfermidade, melhorava ou morria. Há na crise tanto eros quanto tânatos, pulsão de vida e pulsão de morte, a esperança de continuidade e o medo ligado ao desconhecido. A crise apresenta-se como uma situação ou um momento difícil que pode modificar, extinguir ou mesmo regenerar um processo histórico, físico, espiritual ou político" (Casara, Rubens. Estado Pós-democrático: neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. pp. 9-10.)

[2] "(…) não tivemos rupturas educacionais na história do ensino jurídico e as tentativas de mudanças abruptas resultaram em fracassos e frustrações (…)" (Bastos, Aurélio Wander. O ensino jurídico no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. p. XIX).

[3] "A ditadura militar terminou em 1985, mas seu legado ainda continua muito presente na sociedade brasileira. Um exemplo desse legado é a relação instrumental que grande parte dos juristas continua mantendo com o direito. A cultura jurídica autoritária, que alimentou muitos juristas durante o regime de exceção, ainda se faz presente em doutrinas que pregam a relativização de direitos e garantias fundamentais; nas posturas de juízes e promotores que justificam a violação do Estado de Direito em nome do combate à criminalidade; entre advogados que não se importam com a transgressão da Constituição por autoridades públicas quando a vítima não é sua cliente; em comissões de estudo que continuam a descaracterizar o perfil de garantidor da Constituição por meio de projetos de lei que ampliam a violência estatal. Em todos esses casos há uma concepção instrumental do direito que continua a fragilizar a democracia, de forma a perpetuar na atualidade vários aspectos da cultura jurídica autoritária dos tempos da ditadura militar" (Lima, Danilo Pereira. Legalidade e autoritarismo. O papel dos juristas na consolidação da ditadura militar de 1964. Salvador: JusPodivm, 2018. p. 268)

[5] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Correição Parcial nº 2188428-34.2020.8.26.0000 julgada, em 19/10/2020, pela 16ª Câmara de Direito Criminal. Relator desembargador Otávio de Almeida Toledo.

[6] SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Habeas Corpus nº 641.877/DF julgado, em 09 de março de 2021, pela 5ª Turma. Relator ministro Ribeiro Dantas. Ordem concedida de ofício.

[7] TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DE SÃO PAULO. Habeas Corpus nº 2045142-61.2021.8.26.0000 julgado, em 12 de abril de 2021, pela 2ª Câmara de Direito Criminal. Relator desembargador Luiz Fernando Vaggione.

[8] "Sobre o devido processo discorreu longamente Ada Pellegrini Grinover, que esclarece: 'No due process of law, o elemento a que se subordina toda a legalidade do procedimento é a possibilidade da parte defender-se, de sustentar suas próprias razões, de ter his day in court, na denominação genérica da Suprema Corte dos Estados Unidos'". (Suannes, Adauto. Os fundamentos éticos do devido processo penal. 2. ed. São Paulo: RT, 2004. pp. 212-213).

[9] CAVALCANTI, João Barbalho Uchoa. Constituição Federal brasileira: comentários. Rio de Janeiro: Litho-Typographia, 1902. p. 323.

[10] "O interrogatório deve ser um ato espontâneo, livre de pressões ou torturas (físicas ou mentais). É necessário estabelecer um limite máximo para a busca da verdade e para isso estão os direitos fundamentais. Por isso, hoje em dia, o dogma da verdade material cedeu espaço para a verdade juridicamente válida, obtida com pleno respeito aos direitos e garantias fundamentais do sujeito passivo e conforme os requisitos estabelecidos pela legislação" (Lopes Júnior, Aury. Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Vol. I. 5. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010. p. 205)

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