Garantias do Consumo

Jabuti no telhado dos consumidores

Autores

  • Mariângela Sarrubbo Fragata

    é advogada professora da PUC-SP e membro do conselho diretor do Idec da diretoria do Brasilcon e do conselho curador da Fundação Procon.

  • Marcelo Gomes Sodré

    é advogado professor da PUC-SP diretor do Brasilcon doutor em Direitos Difusos pela PUC-SP assessor da comissão que redigiu o Código de Defesa do Consumidor conselheiro do Idec e ex-diretor do Procon-SP.

28 de abril de 2021, 8h00

Tempos difíceis. A última, ou já penúltima, das dificuldades para os consumidores tem nome e sobrenome: pretensão resistida. Sob o manto de resolver os problemas dos consumidores e racionalizar a administração da Justiça, esconde-se uma proposta legislativa que deixa os vulneráveis em situações mais difíceis. Novamente. Como uma boa petição inicial, vamos primeiro aos fatos, depois ao direito e, por fim, ao pedido.

Com a justificativa de enfrentar o problema da grande judicialização das demandas pelos consumidores, as novidades factuais caem como uma chuva de verão: 1) uma nova proposta de decreto regulamentando os serviços de atendimento aos consumidores (SACs) das empresas; 2) uma proposta de decreto sobre mediação dos conflitos de consumo mudando a forma de utilização da plataforma consumidor.gov; 3) grupos de trabalho preparando estas propostas no âmbito do Conselho Nacional de Defesa do Consumidor sob sigilo imposto por decreto federal [1]; e 4) gran finale, um jabuti no telhado dos consumidores por meio de emendas [2] à Medida Provisória de nº 1.040 que "dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas e moderniza o ambiente de negócios no país [3]". Frisemos: o tema da medida provisória é modernizar o ambiente de negócios no país. A MP não trata do tema da defesa dos consumidores. Mas, tal qual um surpreendente e espertinho jabuti, surge agora na forma de emendas a proposta de excluir o direito de as pessoas exercerem seus direitos quando julgarem oportuno: para poder entrar com uma ação judicial será preciso que o consumidor, ou qualquer cidadão, comprove, como condição, a resistência do fornecedor em relação a atendê-lo. Cria-se uma instância. Acredito que para os fornecedores o ambiente de negócios efetivamente melhore. Para os consumidores será mais um ataque aos seus direitos.

Tratemos da preliminar do Jabuti no telhado. Ninguém sabe quem colocou lá, mas que ele está lá, está. Tanto a legislação, a doutrina e a jurisprudência são claras ao definir que a Congresso Nacional não pode incluir, em medidas provisórias, emendas parlamentares que não tenham pertinência temática com a própria norma. Esta irregularidade tem até nome: contrabando legislativo. A ministra Rosa Weber foi muito feliz ao demonstrar que atos como estes são, além de inconstitucionais, antidemocráticos:

"O que tem sido chamado de contrabando legislativo, caracterizado pela introdução de matéria estranha a medida provisória submetida à conversão, não denota, a meu juízo, mera inobservância de formalidade, e sim procedimento marcadamente antidemocrático, na medida em que, intencionalmente ou não, subtrai do debate público e do ambiente deliberativo próprios ao rito ordinário dos trabalhos legislativos a discussão sobre as normas que irão regular a vida em sociedade [4]".

Referida decisão do STF faz referência a outros inúmeros julgados [5] e, também, de doutrina abalizada. Fiquemos, em nome todos, com a doutrina de um dos ministros do próprio STF:

"A medida provisória pode ser emendada no Congresso, não mais perdurando a proibição nesse sentido que havia no regime do decreto-lei, na ordem constitucional pretérita. As emendas apresentadas devem, porém, guardar pertinência temática com o objeto da medida provisória, sob pena de indeferimento" (MENDES, Gilmar Ferreira; BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional. 8a ed. rev. e atual., São Paulo: Saraiva, 2013, p. 884-5, destaquei).

Nesta decisão, o STF nada mais fez do que reconhecer o que o próprio Congresso Nacional já havia regulamentado por meio da Resolução nº 1/2002, que estabelece no § 4º do artigo 4º:

"É vedada a apresentação de emendas que versem sobre matéria estranha àquela tratada na medida provisória, cabendo ao presidente da comissão o seu indeferimento liminar".

Maior clareza, impossível. Há aqui uma decisão preliminar que se impõe: indeferir o andamento destas emendas por exercerem um contrabando legislativo antidemocrático, nas palavras do STF. Um tema de tal importância deveria ser objeto de amplo debate público por meio de um projeto de lei ao invés de ser aprovado de forma rápida e sem as devidas discussões.

Passada a preliminar, vamos ao mérito. E, como veremos, a gravidade do tema só aumenta. As emendas propõem uma alteração genérica no artigo 17 do CPC, que trata do interesse processual. E em que pese o jabuti estar colocado sobretudo no telhado do consumidor, depreende-se do exame das emendas apresentadas à MP, que a alteração da possibilidade de demandar é colocada para toda e qualquer pretensão de direito patrimonial disponível. Se aprovada a proposta, o embaraço passará a existir para qualquer ação judicial desta natureza e não somente para aquelas que tenham por objeto uma relação de consumo. Será que as consequências desta proposta foram pensadas? Seria o caso da chamada análise de impacto legislativo, o que nos parece, não ocorreu.

A inconstitucionalidade da proposta de emenda à medida provisória salta aos olhos, também, por sua flagrante contrariedade ao princípio do livre acesso ao Poder Judiciário, conforme estabelecido no inciso XXXV da CF: "A lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". As emendas impõem o reconhecimento de carência de ação pelo fato de não restar comprovado ter o autor sofrido resistência do devedor em face do direito demandado. Isso não é razoável, pois o direito é reconhecido como tal a partir do nexo de causalidade entre a ação/omissão e o dano sofrido que, em conexão com a possibilidade jurídica do pedido, viabiliza o acesso ao Poder Judiciário. As emendas ferem direito material indisponível presente na Constituição Federal. Este é um direito fundamental. A criação de um mecanismo, que obriga o cidadão que se sente prejudicado por um terceiro a procurá-lo para tentar compor seus direitos, pode levar a constrangimentos inimagináveis. Pensemos em uma hipótese: uma pessoa é humilhada e agredida em público por outra. Ela precisará tentar uma composição com o agressor — notificando-o, antes de ajuizar uma ação de responsabilidade civil? Inconcebível.

Parecer do Ministério da Economia [6], que recomenda a medida, faz menção ao que ocorre em alguns países, todos muito desenvolvidos. De início, pode-se afirmar que o Brasil está longe de se assemelhar a estes países indicados como referência, se examinado, por exemplo, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH, 2020) dos países citados [7]: EUA (17º lugar), Inglaterra (13º lugar), Singapura (11º lugar) e Austrália (oitavo lugar). O Brasil ocupa a seguinte posição: 84º lugar. Imaginar que os direitos são exercidos de forma semelhante em países tão distantes é no mínimo um descuido. O estímulo à procura do devedor, antes do Judiciário, é sempre aplaudido, porém, não pela via da inconstitucionalidade e nem pelo caminho mais longo e tortuoso da obrigatoriedade. Incentivo é a palavra que deve ser concretizada. Incentivar é uma coisa, impor é outra.

Uma das justificativas da proposta da Emenda 160 é expressa: "Tal proposta decorre diretamente de estudo realizado entre o CNJ e a PUCRS, em que se buscou propor soluções que remediassem a excessiva judicialização brasileira". Porém várias das sugestões lá apresentadas não foram consideradas. Vamos externar apenas uma delas: "Nos casos de empresas muito demandadas, o valor das condenações deveria ser elevado para um valor superior ao que seria por ela gasto para evitar as demandas (caso isto seja possível) [8]". Interessante notar que o estudo serve para justificar algumas propostas, mas se ignora o estudo em relação a outras.

E agora tratemos do tema sob o ângulo da proteção dos consumidores. As primeiras perguntas a serem respondidas nos fornecem o âmbito da investigação a ser feita: por que o brasileiro ajuíza tantas ações nos tribunais? Por que, por nossas bandas, os consumidores reclamam em grau tão acentuado? Somos todos "espertinhos" e queremos "lucrar" em cima das empresas? Não é mais lógico perceber que é o atendimento inadequado que leva os consumidores a pleitear. Ninguém pleiteia em juízo por diversão. Exceções podem existir, mas devem ser tratadas como tal. A regra é que os consumidores são vulneráveis e assim devem ser rigorosamente tratados. Culpá-los pela judicialização é inverter a ordem da realidade. O Brasilcon já se manifestou de forma contundente a respeito de propostas desta natureza:

"Neste sentido, o Brasilcon conclama todos os componentes do sistema nacional de defesa do consumidor para, em esforço mobilizador conjunto, pugnar pela rejeição da proposta de Emenda nº 160 que, a olhos nus, não trata de 'desjudicialização', senão de desencorajamento dos vulneráveis na busca dos respectivos direitos [9]".

Recentíssima pesquisa de opinião [10] sobre os SACs sugere algumas respostas: somente 28% da população brasileira está satisfeita com o atendimento recebido. Ou seja, 72% estão insatisfeitos. E por que estão insatisfeitos? São várias as causas, mas as principais são: 1) a falta de resolutividade (51%), agibilidade (38%) e acessibilidade (26%) dos atendimentos feitos nos SACs. E quando perguntados sobre as formas de atendimento, as respostas são claras: 57% usam o sistema telefônico para serem atendidas quando se trata de reclamar ou de cancelar um serviço e 96% querem ter acesso a pessoas (e não robôs). Além disto, 93% querem atendimento gratuito (0800) e 88% acham que o máximo de dias para a solução de uma reclamação deveria ser de três dias (não legislação hoje é de cinco dias, a proposta governamental amplia para sete dias). E o que já sabemos há muito tempo: 99% se irritam totalmente quando a ligação cai no meio do atendimento. Se os consumidores estivessem satisfeitos, não postulariam em Juízo. Pesquisas como esta devem ser incentivadas e debatidas.

Por outro lado, as emendas à MP se referem a reclamações prévias junto aos Procons e à plataforma consumidor.gov. Mais uma vez, ignora-se a realidade: no ano de 2019 (último ano típico), os Procons de todo o Brasil realizaram 2.598.575 atendimentos [11]. É muito. Ou seja, não é necessário nenhum estímulo para que as pessoas procurem os Procons, por uma simples e objetiva razão: a população já se socorre dos Procons. O que se propõe com as emendas apresentadas é simplesmente atolar os Procons, que, como o Judiciário, também é financiado com dinheiro público. É vestir um santo, desvestindo o outro e tudo isto sem uma discussão democrática. No caso do consumidor.gov é pior ainda. Na proposta inicial, produzida no âmbito do governo federal, as empresas poderiam se utilizar desta plataforma para propor uma arbitragem de consumo. A justificativa para esta proposta é que seria mais barato para o poder público e mais rápido para o consumidor. Se isto for verdade, pergunta-se: mas a custo do quê? Do direito do próprio cidadão na medida em que os árbitros seriam custeados pelas empresas. É isto mesmo: de um lado, árbitros pagos pelas empresas (que estarão representados pelos seus advogados) e, de outro, consumidores sem assessoramento técnico. Baixo custo para o poder público, bom para as empresas e muito caro para os consumidores, posto que estariam renunciando a direitos, o que nos parece grave.

Diriam alguns de boa vontade: estas emendas devem ser vistas no contexto das alterações propostas pelo governo para os SACs. Mais uma vez a situação piora. Na proposta original de decreto que o governo federal apresentou para os SACs (e que está em discussão no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor), encontramos, dentre outros, os seguintes pontos: 1) acabaria a obrigação de atendimento telefônico; 2) os SACs somente atuariam no momento pós-consumo; e 3) seria ampliado de cinco para sete dias o prazo para a resposta aos consumidores. Isto é tudo que o consumidor não quer. Além disto, a proposta parte da ideia de que os consumidores gostariam de ser atendidos por robôs e no momento pós-consumo. Pensar em prevenção? Não. Pensar em ampliar atendimentos? Não. Vejamos um exemplo: se alguém precisar uma informação nutricional de um alimento, por exemplo, o SAC não seria o instrumento para obtê-la. Mas estaria disponível, com seus robôs, para receber as reclamações de um problema já ocorrido. A proposta de incluir a pretensão resistida como uma das condições da ação judicial ignora tais fatos e joga os consumidores nos braços dos SACs das empresas, que já não funcionam a contento (como vimos acima).

Em resumo: ninguém dúvida que o ambiente que melhor se coaduna para a composição das partes são os SACs, e neles devem ser concentrados os investimentos empresariais, no que se refere à política do melhor atendimento ao consumidor. Mas isto não pode significar que o consumidor necessariamente deva se socorrer dos SACs. O estímulo virá se os SACs atenderem às expectativas dos consumidores. É o que se espera das empresas. Por outro lado, a plataforma do consumidor.gov deve funcionar como mais um, dentre outros, mecanismo de solução de demandas e não o único, como parece querer o Poder Executivo federal. Voltamos a afirmar: temas tão importantes como estes não deveriam ser debatidos no ambiente de urgência na conversão de uma medida provisória.

Oportuno frisar que a educação de consumidores e fornecedores, prestigiada pelo CDC, especialmente no artigo 4º — que pauta a transparência, o desenvolvimento econômico e a boa-fé nas relações entre consumidores e fornecedores entre os princípios da política nacional das relações de consumo — é, ao nosso ver, o melhor e mais rico caminho à desjudicialização. Bem por isso pensamos sempre no aprimoramento dessas relações, que podem, sim, ser enriquecidas pela melhoria da qualidade do relacionamento, o que não se dá pela obstrução de vias de acesso ao exercício de direitos.

O pedido final é direto e simples: indeferimento liminar das Emendas 67, 94 e 160 à Medida Provisória nº 1.040 de 2021 por sua natureza de contrabando legislativo e, no mérito, não acolhimento delas por serem inconstitucionais e inoportunas.

Exercemos o nosso direito de petição: ainda é possível fazer isto!


[1] Decreto 10.417/20: "Artigo 12 — É vedado aos membros a divulgação de discussões em curso no Conselho Nacional de Defesa do Consumidor sem a prévia anuência de seu presidente".

[2] Emendas 67, 94 e 170 à Medida Provisória nº 1.040 de 2021.

[3] Ementa da Medida Provisória nº 1040, de 2021: "Dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 — Código Civil". Como facilmente se constata, a referida MP não trata nem de temas processuais, nem de responsabilidade civil e nem da defesa dos consumidores.

[4] Ação Direta de Inconstitucionalidade 5.127, de 2015.

[5] Vê-se também ADI 5.012, j. em 16/3/2017

[6] Parecer SEI Nº 5.297/2021/ME.

[9] Nota emitida pela diretoria do Brasilcon em 8 de abril de 2021.

Autores

  • é advogada, professora da PUC-SP, diretora do Brasilcon, especialista em Direito do Consumidor pela PUC-SP, assessora da comissão que redigiu o Código de Defesa do Consumidor e conselheira do Idec.

  • é advogado, professor da PUC-SP, diretor do Brasilcon, doutor em Direitos Difusos pela PUC-SP, assessor da comissão que redigiu o Código de Defesa do Consumidor, conselheiro do Idec e ex-diretor do Procon-SP.

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