Paradoxo da Corte

Considerações para a plena admissibilidade da tutela arbitral coletiva

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

27 de abril de 2021, 8h02

Avalia-se a eficiência de um sistema jurídico por dois indicadores fundamentais, quais sejam, a multiplicidade de mecanismos processuais aptos à tutela dos direitos e a tempestividade dos pronunciamentos judiciais.

Diante do princípio da inafastabilidade de acesso à jurisdição, contemplado no inciso XXXV do artigo 5º da nossa Constituição Federal, o intérprete deve envidar todo esforço hermenêutico para tornar efetiva a devida proteção das potenciais pretensões dos jurisdicionados.

É nesse contexto que aflora o debate acerca da viabilidade técnica, no rol de instrumentos processuais, da arbitragem de abrangência coletiva.

Tal questão, de inequívoca relevância, constitui atualmente objeto de análise e reflexão da doutrina especializada, bem como no âmbito de apreciação dos tribunais pátrios.

A propósito, tive a satisfação de participar, na semana passada, de importante seminário organizado pelo Canal Arbitragem e, ainda, de original coletânea recém-lançada, sob o título "Arbitragem coletiva societária", ambos coordenados por André Luis Monteiro, Guilherme Setoguti J. Pereira e Renato Beneduzi (São Paulo, Ed. RT, 2021).

Destaco, outrossim, as oportunas sugestões formuladas pelo colega Setoguti para aperfeiçoar o regramento do processo arbitral de natureza coletiva, no item 4 do substancioso relatório de 2020 da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OECD), Private Enforcement of Shareholder Rights — A comparison of selected jurisdictions and policy alternatives for Brazil, apresentado à Comissão de Valores Mobiliários (CVM) e ao Ministério da Economia, visando a subsidiar estudos em prol do fortalecimento da proteção de acionistas minoritários de companhias abertas.

É certo que a preocupação com o tema atinente ao processo arbitral de conotação coletiva, nos quadrantes do Direito brasileiro, não desponta propriamente novo, mas, sem dúvida, alcançou notoriedade depois que as primeiras arbitragens de classe foram instauradas por associações de investidores contra companhias abertas. Verifica-se, sem muita dificuldade, que se formou consistente doutrina admitindo tal categoria de processo na seara da jurisdição arbitral, podendo-se listar, como exemplo, entre outros, Arnoldo Wald, Kazuo Watanabe, Luís Olavo Baptista, Luiz Gastão Paes de Barros Leães, Modesto Carvalhosa e Teori Albino Zavascki, na esteira de um posicionamento convergente do Poder Judiciário relativo à tutela de direitos coletivos homogêneos, tanto no âmbito da jurisdição estatal quanto na arbitral.

Aliás, a respeito desse relevante assunto, também deve ser citada a pioneira monografia de Lionel Zaclis, escrita há 15 anos, originalmente como tese de doutorado, sob minha orientação, na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco ("Proteção coletiva dos investidores no mercado de capitais", São Paulo, Ed. RT. 2007).

No plano da jurisprudência, permito-me reportar a trecho de lúcida decisão proferida pelo desembargador Cesar Ciampolini, nos autos da Tutela Cautelar Antecedente n° 2090011-46.2020.8.26.0000, que tramitou perante a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ-SP: "… A admissibilidade do procedimento arbitral coletivo, portanto, merece reflexão… Reflexão acerca, por exemplo, do estímulo para que frutifiquem entre nós ações coletivas, com o fito de pacificação social, uniformidade na distribuição do direito, etc. Trata-se da incessante busca de se ter um direito processual eficaz, ligado aos direitos materiais e às garantias que deve concretizar. No caso do mercado de capitais, vital para a economia do País, as ações coletivas são, realmente, de se cogitar… Plausível possa haver a arbitragem coletiva".

Delineada, pois, segura orientação que sufraga a tese de que o nosso sistema jurídico se encontra aparelhado para admitir o processo arbitral coletivo, como mecanismo apto a garantir o acesso à Justiça a titulares de direitos individuais homogêneos submetidos à cláusula arbitral inserida em estatutos de companhias abertas.

O árbitro, a rigor, quando a lei brasileira é eleita pelas partes para reger a arbitragem, à mingua de regras específicas, não pode ter qualquer receio de aplicar as normas substanciais e processuais do nosso próprio ordenamento jurídico.

Na realidade, como também ocorre em outras situações concretas submetidas à arbitragem, não há norma alguma a proibir a instauração de processo arbitral coletivo, com lastro certamente no microssistema de proteção de direitos individuais homogêneos, regrado pelas Leis n°s. 7.347/85, 7.913/89 e 8.078/90). Ademais, o artigo 109 da Lei das Sociedades por Ações (LSA) assegura aos acionistas o recurso à arbitragem para a solução de litígios em face da companhia, de conformidade, inclusive, com o disposto no artigo 1º da Lei de Arbitragem, que considera arbitráveis todos os litígios envolvendo partes capazes e direitos disponíveis patrimoniais, e, ainda, com a Lei Modelo da Uncitral e com a Convenção de Nova Iorque, de 1958, que não excluem da arbitragem a tutela jurisdicional coletiva.

Invoco, a propósito, a abalizada opinião de Kazuo Watanabe e Daniela Gabbay, em artigo específico, na passagem em que afirmam: "Que a admissibilidade da arbitragem coletiva é questão de lege lata e não de lege ferenda, pois está ínsito ao artigo 1º da Lei de Arbitragem que é possível usar todos os tipos de ações adequadas para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis, o que não está restrito à demanda individual… Entender pela não admissibilidade da arbitragem coletiva, mesmo havendo a aplicação do Direito brasileiro e da Lei de Arbitragem brasileira, assim como a arbitrabilidade da disputa, implicaria uma série de consequências negativas, sendo a mais grave delas a de denegação de justiça" ("Admissibilidade e adequação da arbitragem coletiva como um mecanismo de acesso à justiça no mercado de capitais e seus aspectos procedimentais", Revista brasileira de arbitragem, vol. 17, n° 68, 2020, página 75-77).

Ora, partindo-se do pressuposto de que a arbitragem se insere no ordenamento jurídico como um instrumento de garantia de acesso e de realização da justiça material, é sempre válida a experiente advertência de Cândido Dinamarco, no sentido de que: "Na medida em que a arbitragem tem realmente essa missão de abrir portas à adequada solução dos litígios, pacificando os litigantes com realização de justiça  e daí a afirmação do acesso à justiça como um bem a ser obtido mediante a atuação dos árbitros, tanto quanto do juiz togado. Daí também a repulsa às frustrações consistentes na indevida proliferação das extinções do processo arbitral sem julgamento do mérito, casos que configuram verdadeira denegação de justiça" ("A arbitragem na teoria geral do processo", São Paulo, Malheiros, 2013, página 70).

Assim, entendo que os árbitros, como protagonistas do processo arbitral, devem valer-se das normas jurídicas existentes para adaptar, dentro da flexibilidade possível, o respectivo procedimento e preencher eventuais lacunas regulamentares (artigo 21, parágrafo 1º, da Lei 9.307/96), em prol da efetividade da tutela coletiva. Assevera, com propriedade, Carlos Alberto Carmona que: "A lei… autoriza o árbitro, na hipótese de faltar regra procedimental, a decidir a respeito. Significa isso que o árbitro estará livre para empregar as regras que julgar convenientes à solução da controvérsia, devendo zelar apenas para que não sejam desrespeitadas as garantidas do devido processo legal" ("Arbitragem e processo: um comentário à Lei nº 9.307/96", 3ª ed., São Paulo, Atlas, 2009, página 289).

Tenho convicção de que a análise pormenorizada e conjugada dos sistemas de tutela coletiva e arbitral demonstra que a viabilidade da arbitragem coletiva no Brasil tem como pressuposto a previsão legal de substituição processual de uma coletividade pelos entes que detêm legitimidade extraordinária. E tal possibilidade, que não pode deixar de ser sobrelevada pelos árbitros, é expressamente admitida pela legislação em vigor (artigo 5º, inciso V, da Lei n° 7.347/89, artigo 3º da Lei n° 7.913/89 e artigo 82, inciso IV, da Lei n° 8.078/90).

Ressalte-se, como consectário natural da legitimação extraordinária, a incidência do artigo 506 do Código de Processo Civil  agora com redação aperfeiçoada , no sentido de que os efeitos da sentença não podem prejudicar quem não foi parte no processo, até porque a sentença arbitral produz a mesma eficácia da sentença judicial, nos termos do artigo 31 da Lei de Arbitragem.

É de ter-se presente que a opção pela jurisdição privada não altera a natureza do Direito material coletivo, assim como a previsão de cláusula arbitral não se presta a derrogar normas de ordem pública, como aquelas que garantem a tutela coletiva de direitos individuais homogêneos.

Ignorar a necessária aplicação de tais regras em litígios que envolvem direitos patrimoniais disponíveis, independentemente da jurisdição eleita, podem amesquinhar o escopo da jurisdição arbitral, instituída para, ao lado da estatal, prover justiça, resolvendo efetivamente os conflitos a ela submetidos.

Autores

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!