Opinião

O Direito em busca de qualidades: o constitucionalismo pós-moderno

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27 de abril de 2021, 15h25

Acaba de ser lançada, pela prestigiosa Editora Revista dos Tribunais, a obra Direito Constitucional Pós-Moderno, versão comercial da tese apresentada por Georges Abboud para a obtenção de livre-docência na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Nós, coautores desta resenha, fomos alunos do professor Georges Abboud e hoje temos a honra de o acompanhar em pesquisas e projetos diversos. Podemos dizer, sem risco de exagero, que os livros e artigos escritos por Abboud foram decisivos para que tenhamos nos encontrado enquanto pesquisadores. Não há aluno que não se sinta particularmente influenciado por seu magistério, marcado por uma abordagem crítica, holística e responsável do direito.

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A obra que ora resenhamos pode ser vista como uma síntese parcial das pesquisas de Abboud e trata com impressionante refino, complexidade e elegância algumas das preocupações sobre as quais o autor já discorria com propriedade em outros títulos de sua autoria ou organização.[1]

As publicações de Abboud estão costuradas por um fio condutor comum: a luta pela autonomia do direito e o reconhecimento de sua relevância para a manutenção de um Estado Constitucional. Porém, em Direito Constitucional Pós-Moderno, Abboud dará um passo adiante, para resvalar um tema urgente e necessário: as limitações do direito perante as questões pós-modernas, que são tipicamente atravessadas por um alto grau de incerteza e de complexidade e para quais são insuficientes as respostas que o arquétipo jurídico tradicional é capaz de oferecer. Perante essa nova sorte de problemas, Abboud acusa a necessidade de o direito se reinventar, sem, contudo, negociar a autonomia que, a duras penas, conquistou frente à política, à economia e à moral. Apoiado nos escritos de Lenio Streck, o autor erige à categoria de mote de sua teoria a luta contra os predadores do direito.

Estruturalmente, o livro está organizado em três partes distintas, que representam, cada qual, um paradigma político-jurídico diverso.

A primeira, intitulada "Paradigma da Degeneração", realiza uma incursão histórica rica e detalhada em um dos regimes mais sombrios da história humana: o nazifascismo. Abboud erige a dogmática do direito nazista à condição de antiparadigma da autonomia do direito, uma verdadeira antítese das missões que o constitucionalismo, desde sempre, propôs-se a concretizar.

Essa (re)construção histórica cumpre especialmente as funções de (i) detalhar a maturidade institucional-constitucional precoce atingida pela República de Weimar (1919); (ii) resgatar as contribuições do positivismo jurídico, injustamente obscurecidas pela noção (equivocada) de que essa corrente agira para permitir a ascensão do regime hitlerista e (iii) demonstrar o grau de sofisticação diabólica que a teoria do direito nazista atingiu, corroendo, "das vísceras à epiderme", os cânones mais basilares do juspositivismo.

As conclusões desse esforço histórico são surpreendentes e estão em consonância completa com o que de melhor se tem escrito hoje em dia sobre o período, especialmente com as obras do recém-falecido Michael Stolleis.

A corrupção do direito germânico se deu com o apoio convicto das elites jurídicas, que, subscrevendo à cartilha nazista, não pouparam esforços para substituir a lei democrática pela lei do sangue. Juristas dos mais variados, como Larenz, Forsthoff, Koellreuter e Schmitt, assumiram o seguinte intento: promover uma revolução interpretativa do direito. Não seria necessário acabar com todas as leis, se pudessem modificá-las a ponto de torná-las irreconhecíveis, a partir de uma interpretação sem limites.

A exposição do Paradigma da Degeneração, inspirada na obra de Bernd Rütters, não busca fazer da Alemanha nazista um exemplo para todos os tempos. Abboud não nega que o nazismo foi espécie de totalitarismo, mas sublinha as especificidades dessa tragédia, muito ligadas à cultura e ao espírito românticos do povo alemão. E é depurando o que foi próprio ao nazismo que parece ser possível identificar os mecanismos – práticos e intelectuais — por meio dos quais os juristas que colaboraram com o regime promoveram a degeneração do direito, despindo-o de sua autonomia e o oferecendo como presa fácil à política.

A seu turno, o segundo segmento do livro tem por objeto o exame do Paradigma da Decisão, repartido em três subparadigmas: o da subsunção, o da ponderação e o interpretativista.  

É na segunda parte de sua obra que Abboud, aliado à melhor doutrina nacional (e.g. Lenio Streck) e internacional (e.g. Ronald Dworkin e Friedrich Müller), realiza uma exposição crítica dos pensadores mais influentes da contemporaneidade — Kelsen, Hart, Alexy, Raz, Waluchow, dentre outros. A cada subparadigma, o autor analisa de que modo o direito se articulava e rearticulava para absorver as complexidades postas pela época, dedicando-se especial atenção ao papel exercido pela jurisdição constitucional.

Abboud realiza um verdadeiro reexame crítico do direito, acompanhado pelo estudo da Justiça Constitucional, e demonstra de que modo ambos agem perante o surgimento de novas complexidades. A conclusão perturbadora é a de que os modelos tradicionais, expostos ao longo do segmento, estão exauridos: o paradigma da decisão não mais consegue enfrentar os problemas típicos da contemporaneidade. O direito, do modo como o conhecemos, está em processo de falência iminente.

Ao oposto do que possa parecer, a proposta do autor não é conformista. Muito pelo contrário: Abboud sugere a revitalização do direito, a ser realizada por meio da intitulada proceduralização, teoria que dá nome à terceira parte da obra (i.e. "Paradigma da Proceduralização"). É nesse momento que o autor introduz um novo modo de encarar o exercício da jurisdição, que supera as deficiências inerentes aos modelos tradicionais.

O leitor será, então, apresentado a nomes de peso do constitucionalismo e da filosofia do direito contemporâneos, muito pouco conhecidos no Brasil, tais como Thomas Vesting, Gunther Teubner, Karl-Heinz Ladeur, Rudolf Wiethölter, Adrian Vermeule e Andreas Fischer-Lescano.

No ombro desses teóricos renomados, o autor reconstrói as crises da modernidade, estabelece as principais características da democracia constitucional e da sociedade contemporâneas, e traz à lume os limites do Império do Direito, propondo que o tratamento constitucional-decisório das complexidades pós-modernas seja efetivado por intermédio de um direito procedural, particularmente distinguido pela abertura à reflexão e ao aprendizado. A tese de Abboud é de uma ousadia necessária; não preconiza o abandono absoluto das teorias decisórias tradicionais, mas, sim, o consórcio entre o paradigma que conhecemos e um modelo procedural novo — este apenas atuará quando aquele se revele insuficiente (e.g. para a solução de paradoxos). Dessarte, a tese do autor não é incompatível com as construções realizadas pelos teóricos da decisão. Muito pelo contrário: cuida-se de uma proposta complementar às construções capitaneadas por Streck, Dworkin etc.

Conforme já ensinou Guitton, a cultura consiste em "cavarmos no lugar onde estamos até que encontremos a galeria escavada pelo nosso vizinho e percebamos então a convergência de todos esses esforços."[2] A obra que agora resenhamos é uma escavação. Abboud abriu uma galeria nos estudos de teoria do direito e de direito constitucional para o qual esperamos, no futuro, poder convergir em profundidade e originalidade. Mais do que isso, a partir de sua publicação, torna-se múnus de qualquer intelectual que lide com o direito enfrentar as ideias lá lançadas, seja para concordar ou para abrir fundamentada divergência.

Direito Constitucional Pós-Moderno já nasce um clássico e será, por certo, um marco para o constitucionalismo brasileiro. O leitor que se aventurar pelas páginas da obra logo se dará conta de estar diante de um livro escrito e pensado desde dentro, como uma tentativa de salvar nossas circunstâncias atuais da facilidade assassina das utopias políticas.


[1] Cf. Fake News e Regulação (RT, 2ª edição, 2020), Processo Constitucional Brasileiro (RT, 4ª edição, 2020), Discricionariedade administrativa e judicial (RT, 2014) e Introdução ao Direito (RT, 5ª edição, 2020).

[2] GUITTON, Jean. O trabalho intelectual: conselhos para os que estudam e para os que escrevem, trad. Lucas Félix de Oliveira Santana, Campinas: Kírion, 2020, p. 55.

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